A Agência de Notícias da AIDS registrou as principais intervenções da mesa sobre os cenários sociopolítico e as políticas de financiamento para a saúde durante o 19º ENONG, em Natal (RN). Um dos destaques foi o diretor-presidente da ABIA, Richard Parker, que afirmou: “A biomedicalização da epidemia de AIDS sustenta a falsa promessa do fim da doença, não temos balas mágicas e os slogans são enganosos (…)”.
O encontro marcou o fim do mandato da ABIA na função de Secretaria Política da Articulação Nacional de AIDS (ANAIDS). Além do diretor-presidente, a ABIA foi representada por Veriano Terto Jr., vice-presidente. A 19ª edição do ENONG consolidou de forma bem sucedida o esforço de mobilização do movimento AIDS no país. Para Terto Jr., o ENONG tem sido capaz de acolher e agregar as diferenças sociais, apesar do fenômeno da fragmentação dos movimentos sociais. “É um desafio fazer a convivência das diferenças e que elas encontrem pontos comuns de luta”, analisou Terto Jr.
Confira a seguir a reportagem da Agência de Notícias da AIDS:
“A biomedicalização da epidemia de AIDS sustenta a falsa promessa do fim da doença, não temos balas mágicas e os slogans são enganosos. Além disso, a meta da cura é ficção científica, o que vemos são políticas pautadas no neoliberalismo, que podem impedir a disseminação da cura quando finalmente for encontrada. Existe uma cortina de fumaça que esconde a realidade da epidemia”. A afirmação é do diretor-presidente da ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS), Richard Parker. Ele e outros representantes da sociedade civil e do governo participaram, na manhã deste domingo (12), no 19º Enong (Encontro Nacional de ONGs, Redes e Movimentos de luta contra AIDS), em Natal, do debate sobre os cenários sociopolítico e as políticas de financiamento para a saúde.
Segundo Parker, a narrativa sobre o ‘Fim da AIDS’ esconde o sofrimento de milhões de pessoas no mundo que ainda não têm acesso aos antirretrovirais ou têm, mas só conseguem medicamentos de ‘segunda-classe’. “Uma crise global crescente tem afetado as respostas frente à aids no Brasil e no mundo. A crise levanta sérias dúvidas sobre a sustentabilidade das ações. No Brasil, nos últimos anos, tivemos diversos sinais de que a resposta à aids não vai bem. O que vemos é o aumento de novas infecções, principalmente em populações-chave, o conservadorismo, a falta de vontade política dos governos, a fragilidade do SUS e de sistemas logísticos de medicamentos e, por fim, as crises nas ONGs/AIDS, ligada a falta de apoio financeiro.”
Para o especialista, é preciso lutar para garantir, por exemplo, o acesso à prevenção como um direito de todos e não um privilégio. “Temos que repensar o nosso modelo de atuação, construir alianças e reforçar a importância da mobilização social em rede. Não podemos aceitar o abandono da luta contra o estigma, o preconceito e a discriminação. No início da epidemia, os gays e outros HSH eram chamados de grupo de risco, hoje chamamos de populações-chave, a nomenclatura mudou, mas o estigma continua o mesmo.”
Parker acredita que na atual conjuntura política e econômica os desafios para as ONGs/AIDS são profundos. “As organizações não governamentais continuam sendo as instituições que mais representam as comunidades e populações afetadas pela epidemia, não podemos servir como ‘prestadores de serviços’ para um estado quase falido. Pelo contrário, temos que reforçar a importância do ativismo político e da mobilização comunitária.”
Do Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais, Ivo Brito também chamou atenção para os retrocessos no SUS. “Hoje, o que está em jogo é o acesso universal à saúde versus cobertura universal. A AIDS, por exemplo, não é mais considerada uma epidemia, é uma doença crônica, e este conceito nasceu justamente no momento em que estamos adotando a política de medicalização como resposta à AIDS, portanto, a aids é uma endemia que atinge grupos específicos. O que precisamos pensar é sobre qual modelo de sistema queremos.”
O termo cobertura universal de saúde se refere à prestação de um serviço ou de um conjunto de garantias que podem estar cobertas ou não. Isto reduz a noção de saúde. Mas quando falamos em sistemas universais estamos considerando a saúde como resultado de um conjunto de outros subsistemas essenciais, como o da educação, da habitação, do trabalho, entre outros.
Ivo disse ainda que a saúde vive retrocessos no atual governo e também em governos anteriores. “O discurso sobre sexualidade sumiu da agenda global de resposta a epidemia de aids. Outro tema que desapareceu foi o debate sobre direitos humanos. Vivemos uma situação frágil sobre os caminhos que vamos seguir. Não sabemos nem se vamos ter eleições no ano que vem.”
O representante da Central Única dos Trabalhadores no Conselho Nacional de Saúde, Geordeci de Souza, disse que todas as maldades no âmbito da saúde são pactuadas na CIT (Comissão Intergestora Tripartite). “O ministro da Saúde não está acabando com o SUS sozinho, ele tem o apoio dos secretários estaduais e municipais de saúde. Cobrem os secretários de vocês.”
Geordeci criticou a Emenda Constitucional (EC) 95/17, que congela por 20 anos os investimentos públicos. “Muitos estão dizendo que os gastos serão congelados, mas não é verdade. A cada ano vamos ver menos dinheiro na saúde e na educação. A população brasileira está perdendo direitos”, disse.
Também participou do debate o ativista Vando de Oliveira, da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids. Emocionado, o militante chamou atenção para o descaso com as pessoas soropositivas. “Há mais de 30 anos lutamos contra a aids e por uma política integral de acesso, mas o que vemos são pessoas chegando tardiamente aos serviços de saúde e já com aids. Ou seja, em 2017 vivemos situações parecidas com as de 1982.”
Vando considera que o golpe a saúde vem de muito tempo. “Já conquistamos muitas coisas, como os medicamentos e a oportunidade de continuar vivendo. O problema é que trinta anos depois temos de conviver com a falta de antirretrovirais e o desmonte do SUS. A política contra a aids deixou de ser prioridade, o financiamento não acabou, os estados e municípios estão investindo o dinheiro em outras doenças.”
Da plateia, o ativista Carlos Duarte, do Gapa do Rio Grande do Sul, trouxe uma reflexão sobre o fim da aids. Segundo ele, não existe mais recursos para investir em saúde, os recursos são para as doenças, o que contrapõem a política de prevenção. “O sistema universal de saúde trata aids, a cobertura universal trata HIV, então é certo que vamos deixar de falar em aids para falar de HIV. Até as pessoas vivendo com aids passaram a ser chamadas de pessoas com HIV. Populações vulneráveis agora são populações-chave. Cobertura universal não trabalha com vulnerabilidade e muito menos com determinantes em saúde.”
O debate durou mais de duas horas, muitos ativistas fizeram intervenções e perguntas aos convidados. Na parte da tarde, os participantes do Enong se dividiram em grupos para debater e elaborar propostas que, se aprovadas, vão compor o documento final do evento.
Fonte: Agência de Notícias da AIDS