ABIA realiza simpósio e destaca experiências comunitárias em evento paralelo ao congresso
Para compreender o atual cenário das doenças sexualmente transmissíveis no Brasil e no mundo, a ABIA conversou com o atual presidente da Sociedade Brasileira de Doença Sexualmente Transmissível (SBDST), Mauro Romero Leal Passos. Doutor em Ciências (Microbiologia) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Passos é titular do Departamento de Microbiologia e Parasitologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e presidente do STI & HIV World Congress Rio 2017, que começa neste domingo (09/07) na Barra da Tijuca (RJ). Nesta entrevista exclusiva, ele faz um balanço sobre a atuação dos últimos governos e qual o papel da sociedade civil no fortalecimento da resposta às doenças sexualmente transmissíveis e à epidemia do HIV. O STI & HIV World Congress Rio 2017 começa dia 9 e vai até 12 de julho, quando inicia outro evento de peso: o XI Congresso da Sociedade Brasileira de DST. Como parte da programação científica do Pré-Congresso da Sociedade Brasileira de DST, a ABIA realiza no domingo, às 14h, o simpósio “Experiências comunitárias na prevenção às DST/AIDS no Rio de Janeiro: a perspectiva da sociedade civil organizada”. Coordenada por Veriano Terto Jr, vice-presidente da ABIA e Kátia Edmundo do CEDAPS, o encontro vai promover discussões acercas das experiências dos principais integrantes de ONG’s e atores da sociedade civil para com a prevenção às DST/HIV/AIDS e as populações mais vulneráveis. Confira tudo sobre o congresso na entrevista exclusiva a seguir:
ABIA – O que significa para o Brasil, receber o Congresso Internacional de IST’s e HIV?
MAURO R. L. PASSOS: Tanto para o Brasil quanto para a América Latina este Congresso é uma oportunidade de reconhecer que há um avanço e respeitabilidade muito grandes no tema HIV no mundo, seja no campo científico, político ou de organizações da sociedade civil. Mas no campo das clássicas doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) avançamos muito pouco. Além disso, o evento vai ser uma oportunidade de juntar a sociedade civil, academia e pesquisadores para fazer esta ampla discussão.
ABIA: Como está a situação hoje das DSTs no país?
PASSOS: Há dois anos estamos com um sério problema de desabastecimento de penicilina para tratar sífilis e trata-se de uma doença que sabemos tudo sobre ela há 150 anos. Não há exames básicos na rotina para fazer testes para sífilis e gonorréia, por exemplo. No caso da bactéria clamídia – responsável pela uretrite, doença no colo do útero que causa infecção nas tubas uterinas e que leva à doença inflamatória pélvica que obstrui as trompas uterinas – muitas pessoas nem sabem o que é. E estou falando da segunda ou terceira DST que mais prevalece no mundo. Outro exemplo é a tricomoníase, um parasita que provoca o corrimento vaginal, facilita o processo inflamatório na vagina e no colo do útero e favorece a transmissão do HIV se o local apresentar uma ferida. Com um processo inflamatório, tanto o HIV quanto o vírus da hepatite B e o HPV entram mais fácil. E as pessoas nem sabem o que é tricomoníase e esta é a DST que mais prevalece no mundo. No Brasil, não temos estatística sobre tricomoníase. Se perguntarmos a qualquer pesquisador ou representante do governo os dados na doença no Brasil, não se conhece. Por outro lado, temos os números de sífilis congênita que são bem conhecidos, e os de HPV, com o avanço importante da vacinação na rede pública.
ABIA – Qual a lição a ser aprendida no enfrentamento da epidemia de HIV e AIDS?
PASSOS: O Brasil é o país do contrassenso. Nós conseguimos dar todo apoio para doenças como AIDS, que a população reage bem e o poder público reconhece a importância e consegue dar um bom apoio. Mas nós temos hoje no país mais de 15 mil novos casos de sífilis congênita. Quando quero fazer um diagnóstico de sífilis na rede pública, tenho apenas um ou dois exames disponíveis. Já no campo da AIDS, quantos países do mundo oferecem o antirretroviral no serviço público? Para doenças como AIDS, que a população reage bem e o poder público reconhece a importância e consegue dar um bom apoio. Também já conseguimos disponibilizar a vacina para HPV em pacientes que têm doenças crônicas e também que vivem com HIV. A nossa ideia não é ter competição entre doenças, mas sim aproveitar o que se consegue em uma área e que isso sirva como exemplo.
ABIA: E a AIDS também tem uma série de graves problemas. Recentemente, há um cenário de desabastecimento de antirretrovirais em alguns estados
PASSOS: Isso acende ainda mais a luz amarela. Estamos realizando um Congresso Mundial onde teremos pesquisadores de ponta internacional, fora os brasileiros. Serão cerca de 400 de representantes do mundo e do Brasil discutindo problemas. Vai ser um momento importante para sinalizarmos sobre este desabastecimento de antirretrovirais e sobre a ausência de estratégicas para o combate e tratamento das clássicas doenças sexualmente transmissíveis.
ABIA: Qual o principal objetivo do Congresso?
PASSOS: O objetivo é difundir os conhecimentos mais atuais sobre todas as doenças sexualmente transmissíveis. Será também uma oportunidade para que os pesquisadores e profissionais de saúde do Brasil tenham acesso a as informações de ponta. É uma chance muito grande porque nem sempre conseguimos reunir tantos profissionais do Brasil num evento internacional sobre HIV e DST. Outro destaque é a participação da sociedade civil organizada, de ligas acadêmicas de faculdades e também de 40 adolescentes de comunidades do Rio de Janeiro. Estão programadas atividades de educação e saúde para que estes jovens sejam motivados a respeitar a sexualidade do Outro e tomem conhecimento de práticas de prevenção.
ABIA – Que pontos que serão discutidos?
PASSOS: Abordaremos todas as doenças sexualmente transmissíveis, com enfoque para o HPV, a resistência do gonococo, a evolução da saúde global, envolvendo HIV, entre outros. No primeiro dia teremos uma plenária sobre as implicações da implementação de profilaxia pré-exposição. Também vamos debater no Congresso a transmissão materno-fetal, a sífilis congênita e uma possível eliminação da sífilis congênita na América Latina, novas tecnologias de diagnóstico para DST e HIV, prevenção do HIV, clamídia. Dados hoje mostram que o HIV avança a passos largos na 4ª idade, acima de 50 anos. Outro tema de destaque será a conferência sobre tuberculose e HIV. A tuberculose é um problema sério. Os cânceres ligados às doenças sexualmente transmissíveis também são problemas sérios. Por exemplo, hoje o câncer anal em pessoas que vivem com HIV e que tem HPV é muito maior que em outras populações.
ABIA – Pode falar um pouco sobre a relação entre as doenças sexualmente transmissíveis e o HIV?
PASSOS: Existe uma máxima na medicina e quem trabalha com doença sexualmente transmissível conhece muito bem: quem mais tem DST é quem já tem uma DST. Se alguém tem uma infecção sexualmente transmissível ou uma infecção na área genital como candidíase, que não é sexualmente transmissível, mas tem um processo inflamatório grande na vagina e no pênis que facilita a entrada do HIV e da hepatite B. A tricomoníase, que as pessoas muitas vezes não sabem o que é, causa um processo inflamatório mais comum na vagina do que na uretra masculina. Quando o sêmen cai ali e este sêmen tem HIV ou HPV ou o vírus da hepatite B, facilita a transmissibilidade. Outro exemplo: uma pessoa que vive com HIV e contrai o HPV possui mais chances de ter uma lesão mais agressiva. Há também incidências de outras doenças sexualmente transmissíveis em pessoas que vivem com HIV. Hoje temos vários casos de sífilis neste grupo. Uma pessoa que tem uma úlcera causada pela sífilis no pênis e passe perto do vírus HIV, HPV ou Hepatite B, a transmissão é muito mais rápida e efetiva. Uma doença facilita a entrada da outra e/ou pode complicar a outra doença. Ou seja, ter HIV e outra DST é uma complicação maior.
ABIA – A partir do cenário nacional atual, como a sociedade brasileira de DST se posiciona em relação ao HPV?
PASSOS: Devemos lutar para diminuir o preconceito em relação à camisinha e ao sexo seguro. Esse trabalho deve ser permanente para todas as doenças, incluindo o HPV. Outra coisa é estimular cada vez mais que a mulher busque o exame preventivo de câncer do colo do útero, que é um exame periódico. Paralelo a isso, desenvolver um longo processo de educação e saúde, discutindo sobre as doenças sexualmente transmissíveis e sexualidade sem preconceitos. É igualmente importante fortalecer esse grande benefício oferecido pelo governo federal que é vacinação contra o HPV. Infelizmente, embora tenha vacinação nos postos, a cobertura ainda é baixa. Por exemplo, temos vacinação para meninos e menos de 5% foram vacinados. É preciso mobilizar toda a sociedade fale do tema e crie o ambiente para que as pessoas procurem os postos de vacinação.
ABIA – Qual a importância de ampliar a vacinação do HPV na população vivendo com HIV e AIDS?
PASSOS: É primordial. Existem duas vacinas no Brasil: a bivalente e a quadrivalente. Ambas estão aprovadas pela Anvisa até 26 anos, mas tem país que já aprovou por bula até 45 anos. Eu luto para que no Brasil também se estenda até 45 anos. Imagina contrair HIV com 28 anos, vai ao posto se vacinar contra o HPE e é negado porque só a faixa etária é até 26 anos? Acho que é um problema de legislação que precisa ser resolvido. Nós temos que lutar para que todos, não só com o HIV, mas todas as doenças com imunossupressão e crônicas como hepatite C ou pessoas que estão na fila para transplante deveriam tomar a vacina.
ABIA – O Sr. atribui algum motivo para a vacinação contra HPV ter apresentado uma procura tão baixa, principalmente entre pessoas vivendo com HIV e AIDS?
PASSOS: Não posso dizer com precisão. Mas posso imaginar que não foram feitas campanhas boas e, portanto, a população não está mobilizada. A mesma mobilização para ter acesso aos remédios e exames pode não estar acontecendo para ter acesso à vacina. Eu acredito muito nas mobilizações da sociedade civil, das ONGs, das escolas, porque normalmente essas instituições estão mais próximas do público. Creio que estes atores deveriam estar mais mobilizados para vacinação. Somos um país que tem um dos maiores programas de vacinação pública do mundo. Nós disponibilizamos um leque de vacinas que não é qualquer país que dá para população. E ao mesmo tempo temos que fazer um esforço enorme, a sociedade tem que fazer esse trabalho para fazer com que todos entendam isso.
ABIA – Como o senhor avalia o cumprimento das metas para redução da transmissão vertical do HIV e sífilis contidas no plano plurianual de 2012 a 2015, que foi aprovado pelo Congresso Nacional e que tinha como prioridade a eliminação da sífilis congênita como problema de saúde pública até 2015?
PASSOS: É preciso ter ação para cumprir as metas. Desde que me entendo como médico, isso está na pauta de todos os governos. Todos os ministros falam isso. Não basta ter metas. É preciso ir ao posto de saúde e ver se a gestante fez o pré-natal, se o teste VDRL foi interpretado ou se a paciente recebeu a penicilina na dose certa e no momento certo. Há sérios problemas da vigilância epidemiológica da sífilis congênita, por exemplo. As papeletas não são preenchidas, os parceiros das mulheres grávidas que não chamados… Outro dia, uma amiga, médica e professora da UFF, atendeu uma paciente com sífilis. Ela fez o diagnóstico, tratou, deu camisinha para a paciente e ela foi para casa. Mas o marido está preso numa cadeia pública do Rio de Janeiro e, por isso, no encontro com o marido, a agente penitenciária não deixou que entrasse com a camisinha no presídio e também não deu uma camisinha para a paciente. A cadeia não tratou o marido, não fez o diagnóstico e não recomendou o uso do preservativo. Resultado: a paciente pegou sífilis de novo. Qual meta que resolve isso? Qual plano escrito resolve? São vários problemas que devem ser vistos ao mesmo tempo.
ABIA – Como a falta de penicilina tem afetado o controle da epidemia de sífilis e como podemos resolver essa questão?
PASSOS: Já houve uma falta maior, hoje em dia é menor. O Governo Federal comprou penicilina porque tem um pacto entre os serviços de saúde federal, estadual e municipal. A penicilina está no pacto das doenças sexualmente transmissíveis para compra pelo município e pelo estado, porém eles não compraram porque faltou, porque a penicilina não é mais produzida no Brasil. Nós há mais fábricas no país e tem poucas fábricas no mundo, creio que na China e na Índia. Houve desabastecimento porque essas fábricas tiveram problemas de abastecimento. O Governo não fez um planejamento para ter o produto e acabou faltando. Penicilina é o melhor tratamento para sífilis. Faltando penicilina, não tem o tratamento, tem que usar outros remédios, que nem sempre podem ser utilizados na gravidez. Quando falta esse remédio a pessoa não trata e isso pode aumentar a transmissibilidade. O governo brasileiro e de outros países não se deram conta que devem vigiar a produção de certos medicamentos. Com o volume de sífilis no Brasil, o país não fez o devido planejamento para ter o medicamento em estoque num momento de falta da penicilina no mercado mundial.
ABIA – Qual a importância da participação da sociedade civil neste Congresso?
PASSOS: A sociedade civil é um do porta-voz importante das demandas, anseios, dificuldades e facilidades para a população entender o problema. E isso é primordial num congresso. E, por isso, é fundamental termos uma organização como a ABIA conosco. Só tenho a agradecer por esta oportunidade que vocês nos oferecem ao colaborar e participar, e , sobretudo, trocar conhecimento. São outros olhares com contribuições valiosas.
ABIA – Que mensagem o senhor gostaria de deixar para os leitores da ABIA?
PASSOS: Que tanto a mensagem desta entrevista quanto o próprio congresso sejam uma oportunidade para fazer uma reflexão e até mesmo uma crítica, sobre qual caminho devemos trilhar para concretizar o bem comum. A única finalidade da ciência é aliviar a canseira da existência humana. Então, todos precisam estar envolvidos. E o meu direito como cidadão está junto com o direito do meu vizinho, parceiro ou parceira, enfim, está conectado com o direito da sociedade.