A comunicação dos movimentos sociais no contexto de enfrentamento às notícias falsas (fake news) esteve no centro do debate do webinar promovida pela Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) no último dia 10 com o tema Políticas de Vacinas para a Covid-19.

Para a ativista e doutora em Políticas de Saúde, Renata Reis, é importante que o movimento social do campo do HIV/AIDS faça uma recuperação histórica dos avanços, reivindicações e de personagens que protagonizaram as negociações junto à Organização Mundial do Comércio (OMC). Em tempos de uma nova pandemia, as reivindicações sobre transparência, abuso de preços e escala da produção são as mesmas.

“Existe hoje uma geração que não faz ideia de que essa é uma pauta histórica e que o pouco que se tem e se preservou foi graças a luta de companheiros e companheiras do HIV/AIDS na OMC. Não é uma situação nova e é um escândalo que tenhamos chegado a esse ponto”, apontou Reis.

Como caminho, Renata propôs que as organizações que atuam na area do acesso a medicamentos e vacinas se coloquem no papel de divulgadoras e tradutoras de questões complexas como desenvolvimento, inovação e incorporação tecnológica.

“A Comunicação tem um papel importante no enfrentamento dos movimentos anti-vacina”, comentou Renata, destacando um fator agravante constatado por pesquisadores de que, apesar das fake news serem um fenômeno global, no Brasil uma notícia falsa leva mais tempo pra ser desmentida e esquecida.

Pioneirismo no enfrentamento às patentes

O movimento HIV/AIDS é o lugar de onde deve partir a defesa comunicacional do SUS público e dos seus principios de universidade, integralidade e equidade, recentemente desrespeitados pela apresentação de um plano de vacinação infantil do atual governo. Essa é a avaliação do representante da Associação Nacional de Luta Contra a AIDS (ANAIDS) no Conselho Nacional de Saúde (CNS) e membro da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS (RNP+), Moysés Toniolo.

O ativista também destacou a similaridade das ações do movimento HIV/AIDS que se converteram em conquistas no passado, que podem ser adaptadas para o enfrentamento da pandemia da Covid-19.

“O movimento AIDS é pioneiro na exigência do uso das flexibilidades do Acordo TRIPS, conquistou a licença compulsória do Efavirenz. Já sabemos os meios e os caminhos, o que nos falta é governo”, definiu.

Toniolo também criticou o Legislativo pelo bloqueio feito pelo então presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM/RJ), ao Projeto de Lei 1462/2020, que suspende o efeito das patentes de tecnologias, insumos e medicamentos relacionados ao combate à Covid-19 e para eventuais futuras pandemias. A suspensão temporária, ainda preservaria o lucro dos detentores de patente, mas garantiria a produção, compras e celeridade ao acesso de produtos genéricos pelo governo e sua chegada para a população.

Saiba mais sobre o PL1462 /2020

O ativista voltou a criticar Bolsonaro por instaurar uma crise de desinformação e fake news que estava em franco andamento no plano econômico, mas com a pandemia, se estendeu para a saúde.

“Podíamos ter um outro tipo de enfrentamento se não tivéssemos um presidente da República conduzindo de forma enviesada como a população vê a pandemia: chama de “gripezinha”; desestimula o isolamento contrariando a OMS, combate a busca por inovações tecnológicas e prescreve medicamentos ineficazes e tóxicos com o aval do Ministério da Saúde”, concluiu.

Reflexões e propostas para a Comunicação

Na abertura do debate online, o diretor- presidente da ABIA, Richard Parker, advertiu sobre o momento pelo qual o Brasil passa caracterizado pelo que chamou da “epistemologia da ignorância”, uma orientação ideológica comunicacional que se concretiza no combate ou na negação de todo tipo de conhecimento.

O debate suscitou entre os participantes a necessidade de pensar novas formas de comunicação que inicie uma virada efetiva na tendência atual com todas as suas consequências sociais desastrosas.

O jornalista e ativista Adriano de Lavor ponderou que a experiência acumulada com o HIV/AIDS ensina e estimula ações, mas tem como principal desafio um cenário completamente diverso.

“Ao mesmo tempo em que a tecnologia da informação permite este debate ao vivo em tempos de isolamento, é por esta tecnologia  que a epistemologia da ignorância se estabelece, como um projeto e uma estratégia que nos obriga a trabalhar respostas do ponto de vista técnico”.

O jornalista propôs a formação de um Fórum de Comunicação para iniciar uma frente que formule novas formas de incidência, considerando que as técnicas jornalísticas e de comunicação tradicionais não são suficientes neste cenário.

A coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW, sigla em inglês), Sônia Correa, propôs duas demandas urgentes para a comunicação dos movimentos sociais. A primeira é denunciar a posição do governo brasileiro por se alinhar aos países ricos contra a proposta de waiver da Índia e África do Sul, que contraria os próprios interesses, visto que é destes países que o Brasil precisa comprar insumos e vacinas para imunizar a população o mais rápido possível. “A notícia circulou, mas há mais trabalho a fazer”, comentou Correa.

A segunda demanda sugerida por Correa é o desafio de refletir conjuntamente sobre um marco inteseccional de resposta para revelar que os manifestantes anti-vacina são os mesmos das pautas anti-gênero, anti-aborto, anti-saúde sexual e reprodutiva e anti-direitos LGBT no Brasil e no mundo. “Começaram a fazer contra a vacina o que já fazem ao mesmo tempo contra todas essas pautas”, diz.

Mudar a percepção de risco da população

Diante da epidemia da Covid-19 e em tempos de fake news e contra-informação, o ativista Moysés Toniolo avisou que há o interesse do Conselho Nacional de Saúde em retomar com urgência discussões sobre comunicação, como aconteceu na I Conferência de Comunicação Livre em Saúde, realizada em 2017. Uma das principais tarefas seria promover a mudança da percepção de risco da população.

“Não pensem que a epidemia da Covid-19 vai ensinar ou  mudar a percepção do brasileiro depois que todos estiverem vacinados. É provável que muitos simplesmente parem de usar máscara, por mais que seja um imperativo da necessidade de proteger o outro e se proteger”, provocou.

Radicalizar o discurso

No atual momento de disfunção da governança global; onde o atual sistema de patentes não consegue atender nem os países ricos, e com a população ainda sem saber lidar com um dia-a-dia pandêmico, a ativista Renata Reis crê que é hora de radicalizar o discurso tratando medicamentos, insumos e tecnologias de combate à Covid-19 como “bem comum”.

“Não dá pra pedir nem mais nem menos: não queremos flexibilidade patentária na pandemia, queremos ‘bem comum’, aquilo que reivindicamos desde o final dos anos 90”, afirmou Reis.

Para além da relação com o jornalismo tradicional, a ativista crê que a sociedade civil precisa reformular sua atuação nas redes.

Frear a agenda conservadora

Toniolo defende a radicalização do discurso na defesa do Estado Democrático de Direito e do SUS público.

“Essa agenda está aí pra liquidar direitos. E sem o SUS, não daremos conta de combater nem o HIV/AIDS, nem a Covid-19 ou qualquer outra pandemia vindoura”.

Toniolo adverte que o objetivo deve ser inverter o que se instituiu a partir de 2019: que foi uma agenda contra os direitos humanos e, principalmente, das populações historicamente marginalizadas.

“Se não construirmos pela informação e por um amplo debate o que nós queremos como democracia, teremos no Brasil a repetição do que aconteceu em 2018, onde pessoas que são destes grupos perseguidos por Bolsonaro acabaram votando nele”,

O ativista ressalta que o Donald Trump foi derrotado em sua tentativa de reeleição para a presidência dos EUA com uma atuação massiva do movimento LGBT pedindo para que a população não votasse em Trump.

“Sem uma Comunicação que traga nitidez sobre o modelo que este governo segue, corremos riscos em 2022.

Apesar de denso, o debate em torno da Comunicação foi apenas um eixo importante entre vários outros.

Confira a cobertura das apresentações

O webinar contou ainda com a participação do assessor sênior para acesso a medicamentos do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), Carlos Passarelli, que situou o Brasil no contexto internacional e das articulações em torno da resposta à pandemia.