A Era Trump: Quando crueldade e destruição guiam políticas públicas

por | maio 17, 2025

Por Jane Galvão*

Neste artigo vou me deter no impacto na saúde global das medidas adotadas pela administração Trump nos primeiros 100 dias de governo. Mas, até a publicação desse artigo, mudanças podem acontecer por conta das possíveis vitórias, via as ações legais,das reestruturações ainda em andamento. As circunstâncias são fluidas e têm que ser seguidas com atenção, como episódios de uma série, nesse caso de horror, que faz lembrar o ditado: Se correr o bicho pega. Se ficar o bicho come. Mas também podemos fazer como o antropólogo Roberto DaMatta, que termina o artigo que escreveu sobre a posse de Trump e a “fúria isolacionista” do presidente, exclamando “Valha-nos Deus!”. Mas para não ficar oscilando entre o horror, a fúria, e clamando pela proteção divina, o melhor é desenvolver estratégias — como menciono na conclusão do artigo — que ampliem as parcerias e a mobilização para contrapor um presidente que, em suas próprias palavras (e em imagens falsas), está não somente governando os Estados Unidos, mas também, o mundo.

Trump, governando por ordens executivas e sob influência do Projeto 2025

Grande parte das medidas adotadas pela administração Trump estão delineadas no famoso Projeto 2025, elaborado pela Heritage Foundation, uma entidade conservadora, sendo que várias pessoas que trabalharam na primeira administração Trump estavam envolvidas na preparação do documento. Como resumido em matéria do g1“O plano estabelece quatro objetivos principais: restaurar a família como centro da vida americana; desmantelar o Estado intervencionista; defender a soberania e as fronteiras da nação; e assegurar o direito divino dos indivíduos de poderem viver livremente”. Trump, durante a campanha, negou conhecer o Projeto, o que continuou fazendo depois de eleito, mesmo quando ideias defendidas pelo Projeto estarem presentes em várias ações da sua administração. Reforçando a influência do Projeto 2025 na administração Trump, o Senado confirmou Russell T. Vought  — um dos arquitetos do Projeto — para liderar o Escritório de Administração e Orçamento (OMB, sigla em inglês). O OMB é a agência responsável por supervisionar a execução do orçamento das agências federais. Como comentou um ex-diretor do Projeto: As ações de Trump estão indo além de seus ‘sonhos mais loucos’.

Desde a posse, em 20 de janeiro de 2025, está sendo de tirar o folego a velocidade com que as medidas estão sendo anunciadas e implementadas pela administração Trump (sobretudo via ordens executivas) usando uma estratégia — que também foi empregada na sua primeira administração — chamada “flood the zone” (inundar a zona). “Inundar a zona” é um termo originalmente usado para descrever a tática no futebol americano de saturar a defesa do adversário até que um ponto fraco se abra. Na sua conotação política, está baseada na noção de que os políticos podem bombardear e sobrecarregar a capacidade de atenção do público, criando uma desorientação e, dessa forma, diminuindo a capacidade de resposta da oposição. Para as ordens executivas e outras medidas da administração Trump ver: Executive Orders – The White House; e Tracking Trump’s executive orders and actions | CNN Politics.

A ordem executiva é um recurso usado por presidentes americanos e são como declarações sobre como o presidente deseja que o governo federal seja administrado. Por exemplo: George W. Bush (2001-2009) e Barack Obama (2009-2017), ambos com dois mandatos, assinaram, respectivamente, 291, e 277 ordens executivas. Trump, na sua primeira administração (2017-2021), assinou 220 ordens executivas. Joe Biden, assinou 162 ordens executivas (2021-2025). E, no seu segundo mandato, entre 20 janeiro e 29 de abril, Trump havia assinado 143 ordens executivas. Mas o número de ordens executivas desses presidentes ainda está longe do número de ordens assinadas, especialmente por dois presidentes. Claro que o contexto político teve influência, mas Franklin Roosevelt (1937-1945), assinou 2023 ordens executivas; e Harry Truman (1945-1953), assinou 906. Mas, como menciono abaixo, essa maneira de governar tem limites.

É possível citar pelo menos, três limites para ordens executivas. O primeiro, é que ordens executivas assinadas por um presidente podem ser revogadas pelo próximo presidente; por exemplo, até 5 de fevereiro de 2025, Trump havia revogado 96 ordens executivas, 91 assinadas por Biden e as demais por Carter, Clinton, Johnson e Obama. O segundo, é que uma ordem executiva pode ser vetada pelo Congresso o que, no momento, é difícil acontecer pois o partido Republicano, o partido de Trump, é a maioria no Congresso, mas tal situação pode mudar em 2026, quando acontecerá eleições para o Congresso. O terceiro limite, é o bloqueio, via ação judicial, sendo que várias ordens executivas estão sendo legalmente contestadas. Para mais informação: Litigation Tracker: Legal Challenges to Trump Administration Actions; e Trump Administration Lawsuits Tracker: DOGE, Transgender Rights and More – The New York Times.

No presente artigo, destaco a ordem executiva, assinada em janeiro, que determinou uma parada de 90 dias na assistência internacional para avaliação de eficiências programáticas e consistência com a política externa dos Estados Unidos (EUA); foi noticiado que estenderam o prazo por mais 30 dias. No texto comento como essa ordem afetou várias agências, mas destaco: a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, sigla em inglês), o Plano de Emergência do Presidente dos Estados Unidos para o Alívio da AIDS (PEPFAR, sigla em inglês), e o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS, sigla em inglês). Mas, o que está acontecendo, não é uma avaliação, mas uma retirada do apoio para organizações humanitárias e de saúde, levando a uma crise sem precedentes no acesso à saúde e outros serviços. E nada está escapando da retração internacional dos EUA, nem mesmo o Peace Corps.

(Des)ordem executiva: promovendo a destruição de agências federais e iniciativas de saúde

(Des)ordem executiva — termo utilizado no título de um evento do Geneva Graduate Institute  —, bem descreve o efeito das medidas da administração Trump. Mas antes de descrever o impacto das ordens executivas, algumas palavras são necessárias sobre Elon Musk e, nesse contexto, é importante lembrar o discurso de despedida do presidente Biden, que alertou sobre a “concentração de poder nas mãos de poucas pessoas super ricas, e as consequências perigosas se seu abuso de poder não for controlado. Hoje, uma oligarquia está tomando forma na América de extrema riqueza, poder e influência que literalmente ameaça a nossa democracia […]”. E essa já é uma realidade, como visto na inauguração de Trump, que contou com a presença de vários bilionários e milionários e tal presença continua na composição do governo.

    Algumas palavras sobre Elon Musk e DOGE

O bilionário Elon Musk — o homem mais rico do mundo que doou 288 milhões de dólares para a campanha de reeleição de Trump — foi um dos idealizadores do Departamento de Eficiência do Governo (DOGE, sigla em inglês). Durante a campanha, Trump anunciou medidas para fomentar a eficiência no governo e uma delas seria a criação de um novo departamento. Ele cumpriu a promessa com duas ordens executivas: a primeira em janeiro, que instituiu o DOGE; e, a segunda, em fevereiro, que ampliou os poderes do DOGE. Musk, na condição de “funcionário especial do governo”, ficou a frente do DOGE, com um acesso sem precedente às agências federais.

A imersão de Musk na campanha e na segunda administração Trump, via DOGE, e o potencial para conflito de interesses — considerando os negócios de Musk com o governo americano e com outros países — é, ao mesmo tempo, inacreditável e assustador. Como sumarizado em um artigo: “Ele […] está gritando ordens para funcionários públicos sem qualquer autoridade legal ou constitucional […]. Ao contrário de um funcionário público, ele não está sujeito a leis de ética ou transparência”, o que tornou Musk o burocrata não eleito mais poderoso do mundo. Para acompanhar o envolvimento de Musk em politica ver o link: Tracking Elon Musk’s Politics and Power | TechPolicy.Press.

Críticas estão sendo feitas à falta de transparência do DOGE — incluindo ao website cheio de erros e sem detalhes sobre como os cortes estão sendo feitos. A programação visual do website é de baixa qualidade e não parece o website de uma agência de governo. Algumas medidas tentaram limitar o escopo e o impacto do que Musk e DOGE poderiam fazer e análises comentam o papel de Musk e como ele, e suas empresas, podem se beneficiar da sua participação no governo; sobre esse ponto, ver um documento do Senado americano, publicado em abril de 2025.

Entre final de abril-início de maio, começou a ser noticiado que Musk iria diminuir sua participação no governo. Os motivos vão desde a impopularidade de Musk, por conta do seu trabalho com DOGE e que estaria afetando os seus negócios, até desacordos com Trump. Saindo, ficando ou diminuindo sua participação no governo, o legado de Musk já é imenso, sendo descrito como “autodestrutivo”, e como tendo criado um sistema de vigilância doméstica para o governo Trump. Mas, segundo Musk, “DOGE é um modo de vida, como budismo”. Essa é uma estranha comparação quando Bill Gates acusa Musk de envolvimento na “morte das crianças mais pobres do mundo”, uma menção às ações de Musk no DOGE. E, nessa mesma linha, o jornalista Nicholas Kristof escreveu: O homem mais rico do mundo está se gabando de destruir a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, que salva a vida das crianças mais pobres do mundo.

Abaixo destaco, o impacto da interrupção da ajuda internacional via USAID, PEPFAR e UNAIDS (e a repercussão no Brasil) — e, com menos detalhe, menciono o impacto em agências da ONU. Mas, é bom lembrar, o que Musk disse sobre esse tipo de agência: “Acho que precisamos deletar agências inteiras, em vez de deixar muitas delas para trás […]. Se não removermos as raízes da erva daninha, será fácil para a erva voltar a crescer.” E também o que disse sobre empatia — “A fraqueza fundamental da civilização ocidental é a empatia”.

    USAID

Trump, juntamente com Musk, iniciou uma campanha para desacreditar a USAID com o intuito de fechar a organização. Musk descreveu a USAID como um “ninho de vermes” e uma “organização criminosa”, e Trump afirmou que a agência é administrada por “um bando de lunáticos radicais”.

Com relação à missão da USAID (que, em 2023, tinha um orçamento de 40 bilhões de dólares), como descrito, a organização empregava cerca de 10.000 pessoas, com presença em mais de 60 países com um portfólio amplo que incluía fornecer alimentos em países onde as pessoas estão morrendo de fome e com grande parte do orçamento gasto em programas de saúde, como vacinas.

As consequências do que está acontecendo com a USAID são devastadoras com notícias que descrevem clínicas que distribuem medicamentos que estão sendo fechadas, e serviços, que atendem mulheres e meninas em situação de risco que vão parar de funcionar. Aqui é importante destacar o efeito que o desmonte da USAID está causando em programas implementados por milhares organizações com atividades bem diversas. Análise da KFF oferece uma visão geral de quanto financiamento para saúde global passava pela USAID. Um website foi criado e está seguindo os principais desdobramentos relacionados à USAID: USAIDStopWork.

Como comentado em um artigo, a legalidade de alterar o status da USAID está relacionada às suas origens. A agência foi criada em 1961, quando o presidente John F. Kennedy assinou uma ordem executiva depois que o Congresso aprovou a Lei de Assistência Externa, que determinou a criação de uma agência independente, separada da política e das forças armadas. Em 1998, a USAID foi estabelecida pelo Congresso como uma agência independente, o que, segundo análises, significa que não pode ser dissolvida, mudada ou consolidada por uma ordem executiva, para tal seria necessário um ato do Congresso. Mas discussões para reorganização estão acontecendo, sem a participação do Congresso, sendo que uma das propostas é que a USAID seria absorvida pelo Departamento de Estado, que também está passando por uma reestruturação. O Secretário de Estado, Marco Rubio, assumiu, interinamente, a coordenação da USAID.

Apesar de reações, manifestações e várias análises críticas sobre a perda que significa o desmonte da USAID e as mentiras divulgadas para justificar tal ação — e exemplos não faltam do desastre humanitário que está afetando desde campanhas para erradicar pólio no Paquistão até fechamento de clínicas que atendem pessoas com HIV na Ucrânia, e na África do Sul —, tais manifestações não levaram a uma mudança por parte da administração Trump sobre o destino da USAID. Inicialmente, uma isenção teria sido dada para a USAID seguir com atividades classificadas como para salvar vidas, mas essa isenção não foi suficiente para a USAID realizar o trabalho necessário.

As ações da administração Trump apontam que irão silenciar qualquer análise que interpretem como contradizendo as suas decisões, como atesta a demissão do Inspetor Geral da USAID após a publicação do relatório com críticas aos esforços do governo Trump para desmantelar a agência.

O impacto do  desmonte da USAID são avassaladores. O website da USAID foi tirado do ar (recurso também utilizado em outras agências) e, até a finalização desse artigo, limitada informação estava disponível no site do Gabinete do Inspetor Geral. A indicação é que quase nada resta da USAID já que, como reportado, 83% dos financiamentos foram cancelados, envolvendo 5.200 contratos; a lista dos projetos cancelados tem 368 páginas e, o que resta, continua sendo afetado.

Quando esse artigo estava sendo finalizado, foi noticiado que um juiz federal concluiu que o fechamento da USAID provavelmente violou a constituição e ordenou que algumas das ações fossem revertidas. Também circularam relatos de uma nova estrutura de ajuda internacional, e nova liderança para o que resta da USAID. Um dos nomes cogitados foi Peter Marocco, Administrador Adjunto da USAID e com ideias controversas sobre ajuda internacional mas, em meados de abril, Marocco saiu do Departamento de Estado e foi substituído por uma pessoa associada ao DOGE.

    PEPFAR

PEPFAR — um programa criado em 2003, pelo presidente George W. Bush — está passando por sérias dificuldades. Assim como a USAID, PEPFAR conseguiu uma isenção para “projetos que salvam vidas” mas, mesmo assim, vários programas de HIV estão paralisados, colocando a vida de milhões de pessoas em risco, como enfatizado por Médicos sem Fronteiras. Um outro fator é que a USAID administrava a maioria dos serviços de PEPFAR e o desmonte da USAID tem um grande impacto em PEPFAR. Um website foi criado (PEPFAR Impact Tracker) para documentar e acompanhar o impacto da suspensão do financiamento do PEPFAR.

Como destacado pelo UNAIDS, mais de 20 milhões de pessoas — dois terços de todas as pessoas vivendo com HIV com acesso à tratamento — são apoiadas por PEPFAR. A concretização das medidas propostas pela administração Trump é vista, pela International AIDS Society, como propiciando a volta do HIV, e o UNAIDS adverte que veremos pessoas morrendo da mesma maneira como aconteceu nos anos 90 e nos anos 2000.

    UNAIDS

O UNAIDS iniciou suas operações em 1996 e, desde 2002, tem representação no Brasil. O UNAIDS é responsável pela direção estratégica, a coordenação e o apoio técnico necessários para catalisar e conectar a liderança de governos, setor privado e comunidades para fornecer serviços de HIV. No momento, 11 organizações das Nações Unidas integram o UNAIDS.

O UNAIDS já estava passando por uma crise financeira e a decisão dos EUA comunicada em fevereiro em carta assinada por Peter Maroccoagravou a situação, podendo levar, como noticiado, a um corte de mais de 50% de pessoal. É importante destacar, que os EUA eram os maiores doadores do UNAIDS tendo doado, em 2023, mais de 92 milhões de dólares. O UNAIDS tem disponibilizado, online, uma atualização semanal, que é bastante útil, para acompanhar o impacto dos cortes de financiamento na resposta à pandemia de HIV.

    O abandono da ONU pelos Estados Unidos

Com o slogan Torne a América Grande Novamente (MAGA, em inglês) e em nome de América Primeiro (America First), vários cortes que afetam a ONU, principalmente nas áreas da saúde global e ajuda humanitáriaaconteceram e outros estão sendo discutidos. A ONU, no ano que celebra 80 anos de existência, está passando por reformas que vão acontecer em um cenário de cortes drásticos propostos pela administração Trump.

Em janeiro, via uma ordem executiva, Trump retirou os EUA da Organização Mundial da Saúde (OMS), do Tratado das Pandemias, e do Regulamento Sanitário Internacional; o país era o maior doador da OMS. Pedidos foram feitos para Trump reconsiderar a decisão mas, até o momento, sem sucesso. Por exemplo, uma carta foi enviada à Trump por 43 membros do Congresso norte-americano, e o Diretor-Geral da OMS apelou para que os EUA reconsiderassem a decisão. A perda dos recursos dos EUA levou a OMS a repensar sua estrutura de pessoal além de cortes em programas importantes para a saúde global e mais cortes virão. Como afirmou o Diretor-Geral da OMS, tal fato irá prejudicar os esforços para enfrentar o HIV, sarampo e outras doenças, levando a uma situação aonde todos perdem. A campanha “1 Dollar, 1 World” (1 Dólar, 1 Mundo), está captando recursos para a OMS e fomentando discussões sobre a importância do trabalho da Organização pois não dá para imaginar um mundo sem a OMS. Com relação à Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA, sigla em inglês), em fevereiro de 2025, começou a ser discutida a possibilidade dos EUA pararem a contribuição e, em maio, veio a confirmação. Assim como fez na primeira administração — Trump cortou a contribuição para a UNFPA, que era em torno de 355 milhões de dólares. Durante a administração Biden a contribuição para a UNFPA tinha sido restabelecida.

Para a maioria das agências da ONU, a retirada do apoio dos EUA está levando à reorganização institucional sendo que várias agências estão sendo pressionadas. Por exemplo, em março, a administração Trump solicitou à agências da ONU que respondessem à um questionário, com perguntas, tais como, se têm crenças ou afiliações “antiamericanas”. O mesmo questionário teria sido enviado para pesquisadores da Australia, Europa e Canadá que recebem financiamento dos EUA. Também, via uma ordem executiva, a administração Trump retirou os EUA do Conselho de Direitos Humanos da ONU (UNHRC, sigla em inglês); e decidiu parar o financiamento para a agência de refugiados da Palestina (UNRWA, sigla em inglês). Trump também está reavaliando a participação do país na Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, sigla em inglês). Os EUA saíram da UNESCO na primeira administração Trump, mas voltaram na administração Biden. Os EUA também pararam a contribuição para o Programa Mundial de Alimentos (WFP, sigla em inglês). Outras agências, como a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, sigla em inglês) teria que modificar as prioridades para adequar ao que está sendo pedido pela administração Trump para a continuação do apoio. E, assim como fez na primeira administração, Trump retirou o país do Acordo de Paris (assinado em 2016 por Obama); na administração Biden, os EUA tinham voltado a fazer parte do Acordo.

Em um ‘efeito dominó’, organizações que não são financiadas pelos EUA estão sendo afetadas pelas medidas promovidas por Trump sendo que tais medidas vão comprometer o alcance das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (SDGs, em inglês) mas, como noticiado, e segundo declarações de representantes do governo, os EUA rejeitaram os SDGs.

    Repercussões no Brasil

O que está acontecendo com a USAID, PEPFAR, e o Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, sigla em inglês) está repercutindo no Brasil, e os cortes vão afetar outros países da América Latina. Organizações da sociedade civil, como a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, a Articulação Nacional de Luta contra a Aids  e o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual, alertaram sobre as consequências das medidas adotadas pela administração Trump. As entidades destacam o programa “A Hora é Agora”, criado em 2014, que contava com apoio de PEPFAR, com o objetivo de fortalecer os serviços de saúde e auxiliando na ampliação de acesso à testagem e tratamento para HIV. Em um outro exemplo, os cortes e reestruturações que estão acontecendo no CDC estariam comprometendo programas de colaboração com universidades brasileiras.

A parada de 90 dias para reavaliar a ajuda internacional norte-americana, incluiu a Organização Internacional para Migrações (IOM, sigla em inglês) e repercutiu no Brasil. Tal parada, como noticiado, afetou atendimento aos imigrantes venezuelanos no Amazonas e em outros estados.

Os 100 primeiros dias da administração Trump

A administração Trump trouxe tempos velozes, furiosos e letais em um processo inimaginável de transformação das agências humanitárias, com palavras banidas; funcionários de agências federais sumariamente demitidos; cogitação de anexar e comprar outros países, como Canadá e a Groenlândia; invadir a Faixa de Gaza e relocar os quase 2 milhões de palestinos que vivem na área, no que a ONU chama de ‘limpeza étnica’; suspender financiamento e tentar impor medidas para controlar universidades, como Columbia, Johns Hopkins e Harvard, dentre outras; fechar agências de financiamento, como a Inter-American Foundation, criada em 1969 como uma agência independente do governo e que ficou reduzida a um funcionário; cortar apoio para saúde sexual e reprodutiva; recusar assinar declarações que consideram muito radical por promover “ideologia de gênero”; a partir de três ordens executivas, deletar e apagar referências em documentos e websites, à diversidade, inclusão e equidade, o que significa retirar referências à raça, etnia e sexo; decretar o reconhecimento de somente dois sexos; e mudar o nome do Golfo do México para Golfo da América (Google Maps reconheceu a mudança para usuários nos EUA). Essa é uma pequena amostra do que aconteceu nos primeiros 100 dias de governo, que também inclui uma longa lista do que é visto como vingança e retribuição por parte de Trump.

Essa é uma administração que está em guerra contra a ciência, incluindo publicações científicas e o sistema educacional — concretizando ideias do Projeto 2025 — o que, além de afetar a economia (incluindo conferências que não serão realizadas nos EUA, trazendo perdas econômicas), pode levar à destruição do modelo que tornou os EUA uma superpotência em ciência. Essa guerra tem várias frentes, e a confirmação de Robert F. Kennedy Jr. como secretário do Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS, sigla em inglês) — que inclui agências como o CDC, a Administração de Alimentos e Medicamentos (FDA, sigla em inglês), e o Instituto Nacional de Saúde (NIH, sigla em inglês) — é uma dessas frentes. 77 cientistas agraciados com o Nobel se manifestaram contra a nomeação de RFK Jr., como é conhecido, principalmente por suas posições contra vacinas. Mesmo com o impacto negativo de RFK Jr. na área da saúde, ele integra a lista da Time, de 2025, das 100 pessoas mais influentes em saúde, ao lado do Diretor-Geral da OMS, Dr. Tedros Ghebreyesus. Abordar as mudanças e repercussões do que está acontecendo no HHS vai além do escopo desse artigo, mas é importante destacar que as mudanças que já aconteceram, as que estão em andamento, e as que estão sendo anunciadas, não somente para o HSS mas também para outras áreas do governo, terão implicações para instituições científicas não somente nos EUA.

Outros exemplos da guerra da administração Trump contra ciência e agências federais incluem: a substituição do site oficial sobre Covid-19 com um novo website que favorece a teoria que a origem da pandemia está ligada com vazamento em um laboratório na China, e culpa pessoas e instituições, por falhas na resposta à pandemia de Covid-19; o cancelamento de estudos e pesquisas conduzidos pelo CDC e NIH; e cortes em pesquisa para meio ambiente. Para mais informação ver: Timeline: How Trump is roiling science and health | STAT; e Trump’s first 100 days: Steamrolling government, strong-arming allies, igniting trade wars | AP News.

Em 100 dias de governo (e quando finalizei esse artigo com mais de 1.300 dias ainda por vir), as ações de Trump estão tendo um impacto dentro e fora dos EUA. E, infelizmente, uma das certezas que temos — parodiando a música da Rita Lee e Roberto de Carvalho (Dias Melhores Virão) — é que dias piores virão. Do que está sendo noticiado como possível de acontecer, destaco as medidas que, caso concretizadas, afetarão fundações filantrópicas americanas (como revogar o status de isenção de impostos sem o devido processo); e os cortes previstos em saúde, que poderia incluir a Aliança Mundial para Vacinas e Imunização (Gavi, sigla em inglês). Segundo MSF, caso Gavi perca o apoio dos EUA, mais de um milhão de crianças podem morrer nos próximos cinco anos, levando a administração Trump a ser lembrada pelo número de mortes causadas por suas políticas.

Fechando os 100 primeiros dias do governo Trump, e talvez ilustrando o impacto negativo das suas medidas e apontando mudanças que estão por vir, ressalto a decisão de uma fundação filantrópica e uma ÓNG. Em maio, Bill Gates comunicou que a Fundação Gates (que celebra 25 anos em 2025) vai encerrar as atividades em 2045, previsto para acontecer 20 anos após a morte de Gates.Com a decisão de antecipar o fim da Fundação, Gates, que já doou 100 bilhões de dólares, doará, até 2045, mais 200 bilhões de dólares tendo assim doado, praticamente, todo o seu dinheiro. Também em maio, temos o comunicado do Conselho Internacional de Organizações de Serviços em AIDS (ICASO, sigla em inglês) — uma organização que foi fundamental para a mobilização frente à AIDS — e que, depois de 35 de funcionamento, vai encerrar as atividades em setembro de 2025.

A necessidade de enfrentar o silêncio, a omissão, a negação, a destruição e as trevas

Ellen ‘t Hoen e Kaitlin Mara, escreveram sobre as desastrosas ações da administração Trump para saúde global e, principalmente, para as pessoas vivendo com HIV e AIDS. As autoras terminam o artigo comentando que ainda há um silêncio em resposta às mudanças trazidas por Trump e fazem referência ao famoso pôster Silence=Death (Silêncio=Morte) — criado em 1987, no auge da epidemia de HIV nos EUA. O pôster, com um triângulo rosa, é uma referência à perseguição nazista às pessoas LGBTIQ+. Ações estão acontecendo, mas mais precisa ser feito.

Silêncio, negação, destruição, caos, desinformação, retrocesso, crueldade e trevas são algumas das palavras usadas para descrever o impacto da administração Trump em áreas tão diversas como ciência, saúde pública, meio ambiente, comércio, educação, e esportes. Nesse sentido, a letra da música (You want it darker/Você quer que seja mais sombrio), do compositor e cantor Leonard Cohen, oferece uma excelente metáfora para os tempos atuais, sobretudo quando Trump está ameaçando anexar o Canadá e Cohen era canadense: You want it darker. We killed the flame (Você quer que seja mais sombrio. Nós matamos a chama).

O fato de ter os 100 primeiros dias de governo marcados pela menor aprovação entre os 15 últimos presidentes ainda não levou Trump a repensar sua forma de governar, como demonstrado no orçamento proposto para 2026, enviado para o Congresso em 2 de maio. O orçamento proposto sugere cortes substanciais em áreas como saúde, meio-ambiente e assistência internacional, mas propõe um aumento de 13% para defesa, que ficaria com um orçamento de um trilhão de dólares.

Apesar do cenário devastador, reações estão acontecendo, como por exemplo, fundações filantrópicas — como a Fundação Marguerite Casey, a Fundação Elizabeth Taylor para a AIDS, e a Fundação Mellon — com decisões que visam contrabalançar os cortes propostos pela administração Trump. Também, reflexões estão acontecendo sobre o que significa para os países a dependência em doações internacionais e o que pode ser feito para mudar essa dinâmica. Nessa linha de ação, existem iniciativas que estão buscando repensar a ajuda global. Outro desenvolvimento relevante, é a produção, na África, de medicamento para HIV e que, pela primeira vez, terá a compra garantida pelo Fundo Global de Luta contra à AIDS, Tuberculose e Malária. É também digno de nota que, sem a presença dos EUA, o rascunho do Tratado das Pandemias, que estava sendo negociado desde 2021, foi aceito em abril e será apresentado para votação na 78ª Assembleia Mundial da Saúde, em maio de 2025. Também vale destacar o esforço de pessoas e organizações que estão sistematizando o impacto das ações da administração Trump, e disponibilizando as informação online, sendo que algumas dessas iniciativas estão mencionadas no presente texto. Também notamos a mobilização de universidades, e as iniciativas que buscam preservar os dados e documentos que estão sendo deletados de websites do governo federal.

Tais reações são necessárias para frear o excesso de destruição que está marcando a administração Trump, mas mais precisa ser feito por parte de países, instituições, sociedade civil, parlamentares, e indivíduos que terão que se mobilizar com mais determinação para quebrar o silêncio, enfrentar a omissão e criar estratégias para sair das armadilhas da negação, fúria, sadismo, destruição, da guerra contra a ciência, e das trevas e medidas antidemocráticas que as políticas propostas pela administração Trump estão impondo dentro e fora dos EUA.

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* Integra o Conselho de Curadores da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA). Doutora em Saúde Coletiva, pelo Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com Pós-doutorado em Saúde Pública, Escola de Saúde Pública, Universidade da Califórnia, Berkeley, EUA; e mestre em Antropologia Social, pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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