Atualmente, no Brasil, estima-se que exista 700 mil pessoas vivendo com HIV/AIDS em terapia com antirretroviral. Segundo o último relatório da UNAIDS[1], o Brasil encontra-se entre os países que têm estimativas robustas de aumento de novas infecções por HIV/AIDS. Entre 2007 e 2021, foram notificados 381.793 casos de infecção por HIV no país, sendo 69,8% dos casos em homens e 30,2% casos em mulheres. A maior incidência de casos (52,9%) foi registrada entre a população jovem de 20 a 34 anos.[2] Neste cenário, é importante uma política de prevenção, de acesso a medicamentos e de inclusão social para todos aqueles que convivem com o vírus HIV. No entanto, nas últimas semanas tem nos chamado atenção uma série de sinais que apontam para um aprofundamento do desmonte da resposta brasileira ao HIV, outrora reconhecida internacionalmente como um exemplo bem-sucedido.
A atual política nacional de HIV/AIDS, que contempla o acesso universal a medicamentos às pessoas vivendo com HIV, instituída pela Lei 9.313/96, corre sérios riscos. O corte de verbas do Ministério da Saúde, conforme noticiado na imprensa, realizado pelo presidente Jair Bolsonaro para conceder mais recursos ao devastador orçamento secreto, afetou diretamente o Atendimento à População para Prevenção, Controle e Tratamento de HIV/AIDS, outras Infecções Sexualmente Transmissíveis e Hepatites Virais Total, que perdeu cerca R$ 407 milhões para o ano de 2023. O programa financia a compra, a produção e a distribuição de medicamentos como os antirretrovirais, para o tratamento de pessoas com HIV, e demais doenças[3].
Um outro sinal de desmonte da política nacional de HIV/AIDS promovido pelo atual governo é a tentativa, por parte do Departamento de Doenças de Condições Crônicas e IST do Ministério da Saúde – DCCI/MS, de substituir o termo “AIDS” por “doença avançada” em uma série de documentos, materiais e apresentações orientadores de políticas, desde a realização do ENONG 2022, em Fortaleza no mês de abril[4]. Considerando que em 2021 650 mil pessoas morreram por doenças relacionadas à AIDS, a substituição do termo demonstra uma tentativa de invisibilizar os efeitos ainda catastróficos da pandemia de AIDS no Brasil, o que pode fomentar a desmobilização e o enfraquecimento da resposta nacional.
De acordo com o Ofício Circular nº 42/2022 do Ministério da Saúde, nos deparamos com um terceiro sinal alarmante, que é o estoque reduzido da lamivudina 150mg, utilizada em alguns esquemas de tratamento antirretroviral, incluindo os esquemas “simplificados”: lamivudina (3TC) + dolutegravir (DTG) e lamivudina (3TC) + darunavir (DRV) + ritonavir (RTV). O Ministério da Saúde informa que desde setembro de 2021 a prescrição dos esquemas “simplificados” está autorizada sem avaliação da câmara técnica assessora no manejo de antirretrovirais, o que gerou um aumento significativo do uso desses esquemas, acima do que foi previsto na implementação dessa estratégia. Por este motivo, segundo o MS, os laboratórios fabricantes estão com dificuldade para atender o aumento da demanda nos prazos de entrega requeridos[5].
Além disso, o Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis enfrenta dificuldades para aquisição de formulação combinada de DTG/3TC, aprovada recentemente pela Anvisa, porém ainda sem apresentação de proposta de preço e disponibilidade para atendimento da demanda do Ministério da Saúde (MS)[6]. Em março deste ano, o Ministério da Saúde alertou sobre o risco de desabastecimento e interrupção de tratamento com o Dolutegravir, devido ao baixo quantitativo em estoque, que correspondia a menos de um mês do consumo médio mensal nacional.
Com a suspensão do contrato com o Lafepe para produção do medicamento genérico, que possibilitaria uma economia de R$17.260.950,00, já atentava-se para possíveis impactos negativos, como a redução da cobertura dos tratamentos e profilaxias com o DTG na rede pública de saúde, a redução significativa dos estoques e comprometimento do atendimento regular da demanda no Brasil, e a redução da programação de compra do medicamento para atenuar o impacto no orçamento do Ministério da Saúde[7]. Não é a primeira vez que há falhas na aquisição e distribuição de medicamentos antirretrovirais no país. Em 2018, 14 estados declararam algum tipo de problema no fornecimento do “3 em 1”, esquema simplificado que combina 600mg de efavirenz, 300mg de lamivudina e 300mg de tenofovir[8].
Consideramos inadmissível uma justificativa que se refere ao aumento da demanda, uma vez que dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação demonstram o significativo aumento da quantidade de medicamentos demandada a cada ano. A quantidade adquirida (em unidades) do Dolutegravir (DTG) 50mg aumentou de 38.670.000 em 2017 para 160.500.000 em 2021, e do Lamivudina (3TC) 150mg de 6.305.160 em 2017 para 21.600.000 em 2021[9]. De acordo com tais dados, as estimativas de compra de DTG 50mg e 3TC 150mg para o ano de 2022 eram de 159.000.000 e 21.000.000 comprimidos, respectivamente. Levando em conta que de 2020 a 2021 houve um aumento de 70.500.000 comprimidos de DTG 50mg e de 6.600.000 comprimidos de 3TC, questiona-se os números projetados para 2022. Isto posto, salientamos que é de se esperar que o Ministério da Saúde, dispondo de dados substanciais das compras de ARVs dos últimos 5 anos, tivesse um controle mais eficiente das provisões.
Temos claro que é um dever do Estado promover o direito fundamental à saúde, acesso aos medicamentos e prover condições para o enfrentamento da epidemia de AIDS em nosso país, e isso passa necessariamente pelo fortalecimento institucional, pela sustentabilidade e pela consolidação do controle social. O abastecimento de antirretrovirais é um direito básico e nunca pode ser colocado em risco, esta é uma garantia de dignidade humana para pessoas vivendo com HIV, que já enfrentam diversos problemas como o estigma, discriminação e exclusão social.
Repudiamos os cortes orçamentários, o descompromisso do Ministério da Saúde, na figura do Marcelo Queiroga, e a política de morte instituída pelo atual governo. Não satisfeitos com os 680 mil mortos por COVID-19 e com as 11 mil mortes anuais por AIDS, estamos assistindo ao desmonte do maior programa de promoção da saúde e proteção dos direitos fundamentais das pessoas com HIV/AIDS, reconhecido mundialmente pelo seu sucesso. O acesso universal aos medicamentos por parte das pessoas vivendo com HIV e AIDS é uma política pública de Estado e não de governos. Assim, o presidente Bolsonaro tem liderado um governo que ignora cotidianamente os direitos humanos fundamentais e utiliza-se da estrutura governamental para destruir o Estado. Reafirmamos, por fim, que a saúde é um direito e um dever do Estado, de forma que jamais deve ter seu orçamento usurpado a fim de favorecer interesses eleitorais e privados.
Rio de Janeiro, 10 de outubro de 2022
Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI)*
*GTPI é cooordenado pela ABIA
[1] https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/2022-global-aids-update_en.pdf
[2] ROCHA, Lucas. Brasil registrou 32,7 mil novos casos de HIV em 2020, diz Ministério da Saúde. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/brasil-registrou-327-mil-novos-casos-de-hiv-em-2020-diz-ministerio-da-saude/
[3] FRAZÃO, Felipe. Governo Bolsonaro reduz verba para tratamento de aids e protege orçamento secreto em 2023. Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/governo-bolsonaro-reduz-verba-para-tratamento-de-aids-e-protege-orcamento-secreto-em-2023/?utm_campaign=redes-sociais:102022:e&utm_medium=social-organic&utm_source=twitter:newsfeed
[4] http://www.rnpvha.org.br/carta-aberta-ao-dcci-ministerio-da-saude-sobre-a-substituicao-do-termo-doencas-avancadas.html
[5] OFÍCIO CIRCULAR Nº 42/2022/CGAHV/.DCCI/SVS/MS
[6] Ibidem.
[7] Despacho SVS/NUJUR/SVS/MS (0025844199) da Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde, em 15/03/2022
[8] GONÇALVES, Juliana; CHAPOLA, Ricardo. Ligamos para todas as capitais atrás do principal remédio contra o HIV: algumas sequer têm em estoque. Disponível em: https://theintercept.com/2018/04/13/hiv-retroviral-em-falta/
[9] DEMANDA/LAI 4598315