Por Richard Parker [1] [2]
Vinte anos se passaram desde que Herbert de Souza, o Betinho, o fundador da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), lançou o livro de crônicas A Cura da AIDS, em 1994. Como o título anunciou, ainda que fosse num tempo em que não havia tratamentos eficazes disponíveis, Betinho entendeu o quão importante era a perspectiva de uma cura da AIDS, não apenas para aqueles que vivem com HIV, mas para todos que buscavam proteger a si mesmos e também aqueles que amam: “de repente, percebi que tudo havia mudado por causa do anúncio de uma cura. Eu percebi que a ideia da morte inevitável paralisa. Eu percebi que a ideia de vida motiva… mesmo assim a morte é inevitável, como todos nós sabemos.” (Betinho, O Dia da Cura, 1994)
Na época, Betinho obviamente sabia que ainda não havia uma verdadeira cura para o HIV, mas acreditava, com total convicção, que algum dia haveria. Ele sabia do tamanho da violência que o estigma e a discriminação nos casos de HIV e AIDS podem causar no ser humano. E acreditava tão firmemente que, enquanto trabalhamos para encontrar a cura, a solidariedade é a vacina mais eficaz contra o vírus ideológico do preconceito e da intolerância. De uma forma única, Betinho acreditava na possibilidade de superar a adversidade – de imaginar um futuro que gostaríamos de viver – e de lutar todos os dias para torná-lo realidade. Mais do que qualquer coisa, ele acreditava que o Brasil poderia ser um exemplo brilhante do que há de melhor no mundo para ser oferecido em resposta à epidemia. Como ele escreveu em 1989, há exatos 25 anos: “O Brasil, através de segmentos representativos, por suas características e potencialidades, pode-se constituir num exemplo de mobilização… Difundindo uma outra visão sobre a epidemia que restaure a cura como perspectiva e a solidariedade como princípio de todo o trabalho de prevenção.” (Betinho, “Políticas Públicas e AIDS”, 1989)
De lá para cá, muitas coisas mudaram. A cura ainda não foi descoberta, mas já percorremos um longo caminho. Desde 1996, surgiram tratamentos antirretrovirais cada vez mais eficazes – no caso brasileiro, quando é garantido o acesso ao sistema de saúde pública – e capazes de transformar a infecção pelo HIV em uma doença crônica e controlável. O Brasil aprovou uma lei que garante o acesso aos medicamentos para todos e que respeita este direito humano fundamental. E, graças a lutas por acesso ao tratamento em vários países, tem sido cada vez mais reconhecido que toda vida humana é importante, e que ninguém, seja rico ou pobre, deve ter negado o acesso aos medicamentos que podem salvá-lo. Ainda não alcançamos o acesso universal em todos os países – e há muito a ser feito neste sentido – mas podemos comemorar o fato de que, neste momento, 13.6 milhões [3] de pessoas no mundo têm acesso ao tratamento de HIV. Isso, embora continuemos a lutar para que 21.4 milhões [4] de pessoas infectadas e que permanecem sem o acesso, tenham garantidos seus direitos no futuro, especialmente se trabalharmos para que isso se torne realidade.
Assim como tem ocorrido avanços, há também conquistas relevantes em relação à prevenção. E mais uma vez, a receita de Betinho para o sucesso tem sido central: as realizações mais poderosas em relação à prevenção do HIV vêm do sentimento de solidariedade, que se baseia no respeito pela diversidade e pela diferença. É baseado no espírito de solidariedade que programas de prevenção têm sido desenvolvidos por e para até mesmo as populações mais marginalizadas e estigmatizadas. E reconhecem, de forma consistente, que todas as vidas importam e que todos os grupos e comunidades merecem tanto o acesso à prevenção quanto ao tratamento. Ambos devem ser garantidos como um direito. E como Betinho previu, por muitos anos, o Brasil foi um brilhante exemplo deste espírito: desenvolveu programas de prevenção com ousadia autoconsciente, impulsionou os limites da discussão aceitável através da criação de programas de educação e prevenção – com uma visão profundamente positiva da sexualidade e da diversidade sexual – e desenvolveu programas de redução de danos para o tratamento do uso de drogas no contexto da saúde pública. Tudo isso com uma visão próxima à da prevenção geral e numa perspectiva baseada em direitos, onde se reconhece a importância de alcançar a todos a fim de reduzir as vulnerabilidades e promover a inclusão social.
Ao compreender a prevenção do HIV como um exercício dos direitos humanos e da justiça social, o Brasil liderou o caminho no desenvolvimento de campanhas educativas progressistas sobre HIV para toda a população, incluindo os jovens – um dos grupos mais expostos aos riscos em relação à epidemia – e as demais populações-chaves vulneráveis, como os gays e outros homens que fazem sexo com homens, pessoas trans, profissionais do sexo e usuários de drogas injetáveis. É necessário combater o estigma e a discriminação que mantém as populações vulneráveis longe dos serviços e apoios e construir uma resposta ao HIV e à AIDS com base no confronto às desigualdades estruturais. É preciso resgatar os princípios do direito e da inclusão, da solidariedade e da mobilização política.
Ao longo da última década, chegamos mais próximos da visão de Betinho de uma eventual cura para a AIDS. Agora temos um leque mais amplo de ferramentas que podem ser usadas para o tratamento e para a prevenção. Embora ainda ocorra a promoção do uso de preservativos como método central da prática eficaz de prevenção, hoje também é possível o acesso à profilaxia pós-exposição (PEP) – para quem necessita por qualquer motivo: seja porque o preservativo se rompeu ou porque não foi possível usar preservativos. Há ainda a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), em fase de testes no Brasil, mas que já está disponível para uso regular em muitos países. Sem dúvidas, a PrEP será uma parte cada vez mais importante do kit de ferramentas de prevenção do HIV no futuro. O tratamento ajuda na prevenção primária porque reduz a carga viral das pessoas que são HIV positivo. Portanto, o tratamento como prevenção (TasP) é uma parte central das estratégias para acabar com a epidemia de HIV em um futuro previsível. Em contextos onde a epidemia de HIV tem sido concentrada nas populações-chaves, realizar campanhas de prevenção combinada – que envolvem desde o tratamento eficaz até a promoção do uso do preservativo e mudanças estruturais para redução das vulnerabilidades – podem mover-nos notavelmente para controlar a epidemia. Com os avanços significativos que ocorreram no tratamento da infecção pelo HIV, a ciência e o atendimento clínico estão cada vez mais perto de perceber o que antes parecia um sonho utópico: a visão de Betinho de que um dia a cura da AIDS será anunciada. Não estamos lá ainda, mas hoje podemos compartilhar a convicção de Betinho de que um dia teremos a cura!
Apesar dos avanços, a forma como olhamos para a resposta ao HIV e AIDS no Brasil e no mundo em 2014, é motivo de preocupação. No Brasil, tem ocorrido o aumento de intervenções por parte dos movimentos conservadores que desejam voltar o relógio e negar a importância fundamental que Betinho deu ao princípio da solidariedade como fundamento para a resposta ao HIV e à AIDS. Nos últimos quatro anos, a bancada conservadora do Congresso brasileiro convenceu o governo Dilma a censurar e abortar campanhas importantes, destinadas a combater a homofobia e promover a democratização da informação para as populações vulneráveis da epidemia de HIV. Primeiro foi a campanha contra a homofobia nas escolas. Depois foi a campanha de prevenção de HIV para gays e pessoas jovens trans realizada durante o carnaval. Em seguida, foi a campanha desenhada por e para mulheres profissionais do sexo para promover seus direitos e prevenir o HIV. Em todos os casos, a justificativa para a suspensão foi o oposto do princípio da solidariedade: a preservação da família e dos bons costumes frente à suposta ameaça dos direitos sexuais e inclusão social.
Estes eventos nos lembram que não importa o quanto nós avançamos nos últimos 20 anos, não importa o quão perto, cientificamente, podemos estar da cura da AIDS: ainda estamos muito longe – no Brasil e no mundo – de derrotar o vírus ideológico que foi desencadeado pela epidemia do HIV. A menos que redobremos os esforços, corremos o risco de não encontrar a cura para a epidemia, mesmo depois de ter encontrado a cura para o HIV. A menos que nos comprometamos com a mobilização política de todos os setores da sociedade para a defesa do direito à inclusão social de todos grupos sociais – não importa quão diferentes seus valores e práticas possam ser da nossa – estamos destinados a falhar na derrota à epidemia de HIV, mesmo quando a cura da AIDS estiver ao nosso alcance. Isso, em última análise, é o sentido mais fundamental do princípio de solidariedade que Betinho tentou nos ensinar.
A base deste princípio está na crença na capacidade humana de compreender a dor e o sofrimento dos outros como se fosse a nossa. E porque vivenciamos como nossos, somos convidados a assumir a responsabilidade de uma luta coletiva. Uma luta que envolve a mobilização da sociedade e o enfrentamento do estigma e da discriminação. Ao comemorarmos o Dia Mundial de Luta contra a AIDS, neste 1º de dezembro de 2014, é hora de redobrar o compromisso com este princípio da solidariedade e com a visão de uma vida digna de ser vivida como ela é. Como Betinho pontuou: “De repente me dei conta de que a cura da AIDS sempre havia existido, como possibilidade, antes mesmo de existir como anúncio do fato acontecido, e que seu nome era vida. Foi de repente, como tudo acontece.”
[1] Diretor-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, professor visitante do Instituto de Medicina Social da UERJ (RJ) e professor titular de Antropologia e Ciências Sociomédicas na Columbia University (EUA). [2] A versão compacta deste artigo foi publicada hoje (01/12) no jornal O Dia, um dos principais veículos impressos que circulam no Rio de Janeiro. [3] Fonte www.unaids.org.br, acessado em 26/11/2014 [4] Fonte www.unaids.org.br, acessado em 26/11/2014