Por Richard Parker*
Em tempos de tantos retrocessos, é difícil identificar qual o pior desastre social destes últimos anos no Brasil. Mas entre os mais impactantes, sem dúvida, foi registrado no relatório da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania Alimentar e Nutricional (Penssan). O documento mostra que o país contabilizou 33,1 milhões de pessoas com fome, no período de novembro de 2021 a abril de 2022.
Para qualquer pessoa que acompanha a história da luta contra a fome no Brasil, seria impossível pensar sobre este dado sem pensar na figura do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Em agosto, completam-se 25 anos da morte do Betinho, vítima de complicações em decorrência da AIDS. Há uma parcela significativa de jovens brasileiros que nasceram depois da morte de Betinho e que desconhecem as diversas contribuições dadas por ele – e, portanto, não percebem a falta que ele faz.
Betinho foi uma das mais importantes lideranças sociais e políticas no Brasil da sua época. A sua liderança se baseava pelo seu carisma, qualidade de raciocínio e por sua capacidade impressionante de superação. Nasceu com hemofilia, e passou a vida inteira lutando para superar desafios de saúde. Quando adolescente, quase morreu por tuberculose. Quando jovem, antes da ditadura, foi um dos líderes mais importantes do movimento estudantil. Sobreviveu a dois golpes militar (Brasil e Chile) e a 10 anos de exílio político. Como muitos outros hemofílicos na primeira década da AIDS (incluindo os seus irmãos, Chico Mário e Henfil), durante uma transfusão de sangue contraiu o vírus do HIV. Fez de todos esses problemas um combustível para lutar em defesa dos direitos humanos, da justiça social e da democracia.
A grande causa dos últimos anos da vida do Betinho, de 1993 até a sua morte em 1997, foi sem dúvida a luta contra a fome. Naquela época, o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea/1993) informava que havia 32 milhões de brasileiros defrontando-se diariamente com o problema da fome. Indignado, o Betinho fundou a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, conhecida como a Campanha da Fome, e iniciou um processo coletivo de mobilização da sociedade brasileira que durante décadas (com a participação ativo de governos de diversos partidos e ideologias) e avançou na progressivamente na diminuição do vergonhoso índice da fome no Brasil. Infelizmente, após 25 anos, e em tempos de destruição e desperdício da experiência, a fome voltou a avançar no Brasil e hoje superou os indicadores da década de 1990.
Mas a Campanha Contra a Fome foi somente a mais conhecida das diversas mobilizações em que o Betinho foi participante ativo. Em 1992, atuou no Movimento Ética na Política, que culminou no impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello. Hoje Betinho certamente seria uma das vozes que exigiria o cumprimento dos princípios constitucionais e o respeito pela democracia.
Nos anos 1980, no campo da saúde pública, trabalhou incansavelmente para banir o mercado de sangue no país. Criou a Campanha para Salvar o Sangue do Povo Brasileiro, e fez parceria com colegas do movimento da reforma sanitária para articular a aprovação do artigo 199 da Constituição de 1988 que proíbiu a comercialização de sangue no Brasil. Esta, sem dúvida, foi uma das mais importantes vitórias da primeira década da mobilização da sociedade brasileira no enfrentamento à epidemia do HIV/AIDS.
Foi nesta ocasião da campanha do sangue que ele fundou a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) e conduziu um esforço solidário entre lideranças democráticas e movimentos sociais para reagir ao pânico moral e às mortes trazidas pela AIDS. Foi Betinho quem inaugurou o protagonismo das pessoas vivendo com HIV/AIDS na luta por seus direitos e na luta contra o HIV/AIDS. A epidemia da AIDS continua a produzir vítimas fatais num patamar inaceitável: são 11 mil vidas perdidas por AIDS anualmente no Brasil.
Ao longo da sua vida, o Betinho foi exemplo ímpar da liderança e do compromisso cívico que a sociedade brasileira tanto precisa. Mostrou que a luta contra a fome, contra a AIDS e pela saúde, são lutas pela vida. Através da solidariedade as lutas (incluindo a luta em defesa da democracia e dos direitos humanos) são integradas num esforço coletivo por uma vida mais digna e um país mais justo. Se estivesse vivo hoje, não há dúvida que estaria atuando pela mobilização da sociedade civil em prol da ética na política e da justiça social e estimulando este grupo social a liderar este processo. Betinho estaria na linha de frente ao lado das entidades representantes da sociedade civil em defesa da democracia e da Constituição brasileira.
Hoje, em 2022, ano eleitoral, e em meio a tantos escândalos e retrocessos políticos, o Betinho faz mais falta do que nunca. Uma das lições principais é ter estado diante de todos os percalços da sua vida pessoal e dos enfrentamentos das violências estruturais da sociedade brasileira, e nunca ter se deixado abater. Betinho manteve a chama da esperança acesa e lutou até o fim para transformar a sociedade brasileira numa sociedade mais justa. Só nos resta nos apropriar deste legado e reagir. Que em 2022 este legado nos traga de volta a esperança para mobilizar a sociedade civil no enfrentamento dos velhos e novos desafios.
*Richard Parker é PhD em Antropologia e diretor-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA)