A Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) lamenta veementemente o conteúdo do Manual do Treinador, elaborado pela Fifa com o aval dos ministérios da Saúde, Educação e Esportes. O material, que vem sendo distribuído aos professores do ensino fundamental nas cidades-sede da Copa do Mundo, representa um retrocesso no debate sobre o HIV e a AIDS no Brasil.
O conteúdo mostra que os especialistas da Fifa tratam as questões relacionadas ao HIV e à AIDS de forma conservadora, uma vez que recomendam aos professores que ensinem às crianças o valor da abstinência sexual e da fidelidade ao parceiro não infectado na prevenção ao HIV e à AIDS.
O documento também utiliza uma linguagem inadequada e desrespeitosa ao associar a expressão “Jogue Limpo” às práticas ditas “saudáveis” na prevenção do HIV/AIDS – o que relembra as campanhas coercitivas do início da epidemia. Em outras palavras, o material faz alusão ao tema como algo “sujo”, menosprezando os direitos humanos das pessoas vivendo com HIV/AIDS. A abordagem infeliz planta o preconceito, a estigmatização e estimula o isolamento social desse grupo.
É lamentável que o governo brasileiro tenha permitido a circulação deste manual que pertence ao “Programa Fifa 11 pela Saúde”, cujo objetivo, ironicamente, destina-se a ser um “programa de educação séria sobre saúde”.
Diante deste cenário, reafirmamos nosso posicionamento já divulgado, em primeira mão, na reportagem “O legado da Fifa na saúde e educação”, produzida pelo portal da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz, com ampla repercussão.
E reforçamos nossa indignação ao fato de um órgão como a Fifa ter “autonomia” para reproduzir um material já utilizado em 2010 na África do Sul na contramão da defesa dos direitos humanos, sem levar em consideração as especificidades culturais, políticas e sociais de um país como o Brasil.
Além disso, embora, de acordo com o Ministério da Saúde, na versão atual os custos deste programa sejam de responsabilidade da Fifa, questionamos o uso de recursos públicos neste projeto, na medida em que os governos locais terão que ceder seus professores e alunos para participarem do programa. Sugerimos que estes recursos locais e o tempo precioso dos professores e alunos sejam mais bem aproveitados com o uso de materiais educativos culturalmente mais adequados, politicamente mais progressistas, e cientificamente mais corretos, produzidos no Brasil por especialistas que conheçam a trajetória da prevenção no país.
Enfatizamos que uma mera errata ao material, já anunciada pelas autoridades do governo, não produzirá o mesmo impacto social desta ação em curso. Portanto, a ABIA, que foi fundada em 1986 e desde então tem monitorado e incidido em políticas públicas de saúde com foco específico nas políticas de enfrentamento à epidemia de AIDS, recomenda fortemente que o material seja retirado de circulação.
Chamamos ainda atenção para o fato de que – aliada à queda da importância da AIDS para o governo brasileiro, refletida na forte influência do conservadorismo da bancada evangélica e forças fundamentalistas nas últimas campanhas – estão em curso grandes retrocessos na política de AIDS no país
Rio de Janeiro, 18 de março de 2014.