O diretor-presidente da ABIA, Richard Parker, considerado um dos 100 cientistas mais influentes do mundo no campo da AIDS, ofereceu uma aula única sobre “Conceituação sobre Estigma, Discriminação e Preconceito” no primeiro workshop realizado pela ABIA como parte do projeto “Respondendo ao Estigma ao HIV/AIDS no Brasil”. A aula foi transmitida simultaneamente pelo Zoom e pelo canal da ABIA no YouTube (vai estar disponível em breve neste link https://www.youtube.com/user/ABIAGAPW ).
O coordenador do projeto “Respondendo ao Estigma ao HIV/AIDS no Brasil”, Juan Carlos Raxach, explicou que a aula foi apenas a primeira capacitação realizada pela ABIA em 2021. “Essa é a primeira capacitação de um total de seis, que pretendemos realizar. Hoje vamos debater questões como estigma, discriminação e preconceito que são barreiras para o enfrentamento do HIV/AIDS no Brasil”. Os próximos temas sobre saúde pública e direitos humanos, sexualidade, racismo e religiões. O 1º workshop online foi mediado por Rajnia de Vito, assistente de projetos do Observatório de Sexualidade e Política (SPW, sigla em inglês), secretariado pela ABIA.
A primeira aula ministrada por Parker teve como objetivo propor uma reflexão e um aprofundamento sobre a importância da mobilização em situações de crise na saúde – como as observadas pelas pandemias do HIV/AIDS e da Covid-19-, com foco em estigma, discriminação e preconceito no contexto da saúde coletiva.
De acordo com o diretor-presidente da ABIA, o momento que vivemos “tem muitas lições a serem aprendidas com a epidemia de AIDS que precisam ser trabalhadas” e com o propósito de apresentar alguns pressupostos para o enfrentamento das desigualdades sociais e a busca pela justiça e direitos humanos numa correlação entre o HIV e a COVID-19, dividiu a aula em três momentos: 1. Repensando estigma, preconceito e discriminação no contexto da epidemia de HIV/AIDS; 2. Lições aprendidas ao longo da resposta frente à AIDS no Brasil; 3 A necessidade (e a insuficiência) dos direitos humanos e a importância de um ‘projeto político’ para o enfrentamento de estigma, preconceito e discriminação.
“O conceito histórico é essencial para entender uma vez que o estigma tem bases ligadas ao poder e produz e reproduz desigualdades, fazendo com que essas estruturas se apresentem de forma suficientemente naturalizada e, por isso mesmo, difícil de serem combatidas”, advertiu Parker.
Esse tipo de hierarquia social, que separa indivíduos em estigmatizados e não estigmatizados, segundo Parker, está ligado à exclusão social (principalmente no contexto do HIV/AIDS), mas também pela vinculação que o conceito tem com o poder e a cultura que a sustentam. Isto é, o poder, aliado à cultura, opera – dentro e fora da epidemia – produzindo conformidades, produção cultural desigual e diferença social pela desvalorização (estigma, propriamente dita). “Tudo isso intersecciona questões ligadas ao gênero, à raça, à orientação sexual, classe e outros determinantes como categorias desfigurantes. Em suma, é a base para as chamadas violências estruturais e nos dá base para entender como tudo funciona”, afirmou.
Para o antropólogo, estigma e preconceito são dimensões de um mesmo problema que, cada vez mais, exige que as mesmas sejam pensadas juntas. Isso porque ambas oprimem, rotulam, categorizam e excluem “indivíduos através das hierarquizações sociais dentro do HIV/AIDS e em outros contextos também”. Logo, se estigma e discriminação são mecanismos de desarranjo social (opressão) foi necessário – principalmente no âmbito da epidemia de HIV/AIDS e que podem ajudar no contexto de COVID-19 – criar resistências para seu enfrentamento, como as intervenções culturais (O imaginário social e a construção de valores); intervenções estruturais (Proteções legais e Políticas públicas); programas de assistência jurídica e mobilização coletiva. “O movimento de HIV/AIDS em sinergia com outros atores afetados pela opressão social como os de LGBT, negros, feministas, aborto etc. formou uma coalização positiva contra a epidemia de AIDS”, disse Parker.
O diretor-presidente da ABIA deixou claro o caráter de mobilização política que a AIDS adotou. Um momento de grande impacto nas quatro décadas da epidemia se deu quando grandes atos e passeatas começaram a tomar as ruas, com pessoas e ativistas do movimento exigindo direitos e políticas públicas. “Foi um enfrentamento direto contra a AIDS. Uma ponte entre pessoas com HIV, redes de Direitos Humanos e alianças com movimentos de justiça social”, pontuou.
Contudo, Parker advertiu que os direitos humanos e a luta pela justiça social como plano político foi necessário, porém insuficiente. “Apesar de muitas conquistas, nossas vitórias estão incompletas. Se tem uma coisa persistente em 40 anos de epidemia são nossos inimigos. A Covid-19, esse “vírus chinês”, é mais um dos desafios dentro dessa luta contra estigma e discriminação que tem sinergia com o campo do HIV/AIDS. Nossa compreensão política deve estar atenta para avançarmos por um longo caminho ainda, porque velhos estigmas que demos por superado, voltaram nesse momento difícil nas nossas vidas e que o mundo está enfrentando”, afirmou.
CONFIRA O DEBATE
Veja a seguir alguns comentários de Richard Parker durante a sessão de perguntas encaminhadas via chat e respondidas ao vivo:
Porque a manifestação do sexo e sexualidade trazem ao HIV/AIDS, como doença crônica assim classificada na medicina, uma potencialização sobre esta patologia tão difícil de ser revertida na relação civil/social?
RICHARD PARKER: No início da epidemia de AIDS isso era um assunto mal visto e diziam que deveria ter sido deixado dentro de casa, entre quatro paredes. Mas quando escapou das fronteiras que limitam a esfera privada acabou causando uma comoção. Enfim Freud explica. Era o proibido do proibido e a AIDS mostrou isso claramente. Como homens gays foram alvos e o número de pessoas com sexualidade não assumida publicamente foi “desmascarada” pela AIDS. E isso foi um campo de grande controvérsia e batalhas. O estigma e discriminação viraram um campo de batalha para essa questão e justamente por conta do debate da sexualidade. Essa qualidade de pegar as coisas que foram relegadas aos bastidores com suas contradições foi uma característica da AIDS, assim como o uso de drogas. Esse caráter fez da AIDS um campo de batalha nos primeiros tempos. Por exemplo, tem estigma e discriminação relacionado ao COVID-19, mas não é por conta da sexualidade.
Como você vê a questão de, nas últimas décadas, termos avanços em recursos biomédicos no enfrentamento do HIV, mudanças comportamentais na forma de pensar e vivenciar a sexualidade, mas ainda termos tão forte a questão do estigma e preconceito em relação ao HIV/AIDS?
RP: Essa é uma observação muito importante. Quando Herbert Daniel e eu escrevemos esse texto estávamos na primeira onda da epidemia. Tinha colegas nossos, e até eu mesmo, que articulavam o contexto com a questão dos medicamentos para reduzir esse estigma. Quando você tira o caráter fatal você tira o estigma. Mas mesmo com medicamentos o estigma continua forte e resistente. E acho que isso tem uma outra dimensão: a sinergia com raça, etnia, gênero, pobreza e outros que criou um bicho complexo associado com o HIV/AIDS. Quando se achava que estava atacando uma dimensão, escapava, e ia para outra dimensão. Do mesmo modo, e eu acho que tem muitos problemas com as metáforas biomédicas, o vírus ideológico era muito esperto quando você o cercava com uma intervenção. O que achávamos que conseguiríamos, não avançamos tanto como gostaríamos. Caminhamos bem e tivemos sucesso, mas não como gostaríamos.
Queria que você comentasse as dimensões sociais da AIDS.
RP: Lutar contra isso num mundo onde o estigma e a discriminação são valorizados por algumas pessoas é muito mais difícil, principalmente se você é um ativista de AIDS que viveu os anos 1980 e 1990. Vemos hoje pessoas que usam suas ideologias para serem abertamente fascistas, racistas, opressivas e eu nem preciso enumerar os exemplos pois são conhecidos. A solidariedade saiu de moda na última década, assim como democracia. Hoje vivemos um tempo no Brasil onde se pede a ruptura da democracia. Estamos num momento onde essa luta é de altos e baixos. Não sabemos até onde vai. Nos EUA conseguiram tirar um fascista e conseguiram colocar alguém que quer fazer algo diferente, mas foi muito apertado. Está muito dividido e não há nada resolvido. Essa luta continua e não podemos, no campo da AIDS, na saúde coletiva, pensar que estamos lidando com questões técnicas. Na minha visão estamos lidando com questões políticas e ela tem dois lados. Não haverá hegemonia total. Terá valores que não serão de todas as pessoas como cidadania, diversidade e direitos humanos. Tem gente que acha que cidadania é para cidadãos brancos e direitos humanos para humanos direitos. Há uma distorção por conta de guerras ideológicas. Eu nunca vi uma dificuldade tão grande para enfrentar estigma e discriminação como hoje.
Qual é o papel e a contribuição da mídia dentro dessa história do HIV/AIDS?
RP: A mídia tem um poder muito grande de nos ajudar a avançar em diversas pautas. Mas ela pode ser perversa e negativa em relação aos nossos propósitos. Acho que a mídia e a “mídia mainstream” têm melhorado de forma geral. Eles cometem erros e buscam corrigir seus erros. A mídia, por exemplo, foi muito importante para colocar na AIDS na agenda política, um rosto por trás dos números epidemiológicos. E hoje faz isso com a Covid-19 mostrando o sofrimento das pessoas. Temos que ter uma relação de crítica companheira com a mídia para sermos vigilantes. É mais crítico quando vamos para as mídias sociais com essa propagação de fake news. Enfim, é uma coisa impressionante. As redes sociais livres e descontroladas são comandadas por suas próprias censuras. Já não é mais feita pelo Estado como foi na ditadura e sim pelas empresas que as dominam. A mídia é uma grande fonte de possibilidade para o bem, mas também para a estigmatização das pessoas.
Qual o papel da ciência no HIV?
RP: A ciência é uma fonte de esperança, mas também pode ser utilizada para fins não democráticos. O passaporte de Covid-19 é um exemplo de como utilizar as pessoas como ‘gado’ para deixar umas passarem e outras não. Devemos ter uma reflexão crítica e política sobre a ciência. É uma aliada de todo movimento que atua promovendo a saúde. Mas é importante ver as limitações de suas práticas. Há, por exemplo, uma gama de pesquisas feitas sobre métodos de tratamento e prevenção sobre HIV e só colocam um tipo de pessoa dentro da inclusão de seus estudos, deixando outras tantas fora.
Que estratégias utilizar para enfrentar movimentos de extrema direita?
RP: Existem políticas de identidade como ponto de partida e chegada para as suas elaborações políticas, com sucesso. Mas, infelizmente, temos tido dificuldades na construção de alianças de grupos identitários. E a extrema direita tem sido muito eficaz em deixar de lado suas diferenças para fazer alianças em questões realmente importantes para eles. Devemos voltar a priorizar políticas de solidariedade. Questões de aborto também deve ser um ponto para políticas e ativistas LGBTs, por exemplo. Devemos buscar fazer essas pontes e entender o que cada um dos grupos pensam em direitos sexuais. Saber o que poderia ser aproveitado em alianças mais eficazes. Acho que esse tipo de coisa pode nos unir para trabalhar juntos. Porque os conservadores tem feito isso com uma eficácia terrível, com resultados. E tá sendo difícil resistir.
Qual a sinergia entre direitos humanos e mecanismos legais entre estigma e pessoas vivendo com HIV/AIDS?
RP: Nos bons tempos do HIV/AIDS nos anos 1990, avançamos muito. Me parece mais difícil nesse momento que estamos vivendo por conta dessas questões que estamos analisando aqui. Seria prioritário retomá-las. Não tenho receita sobre como trabalhar nesse campo, mas o movimento de AIDS é tão fragilizado que não sabemos como responder e nos organizar para isso. Parece que estamos fragilizados porque perdemos apoio financeiro, saímos das prioridades e a pandemia nos impede se nos encontrarmos fisicamente. Estamos precisando de gente disposta a arregaçar as mangas e trabalhar ativamente neste tema. Mas como aglutinar uma massa crítica nesse momento? É minha angústia!
Como o HIV tem sido deixado de lado nesse momento? E como recuperar isso?
RP: Tem um artigo que saiu no British Council que mostrou como a AIDS foi para o segundo plano na escala mundial pela pandemia da Covid-19. E acho que isso é profundo e não vai mudar. Nós temos uma luta muito grande para retomar as questões da AIDS. Na atual gestão no Brasil, os últimos movimentos foram de apagar os programas de AIDS. Perdemos os espaços estaduais e municipais. E há uma faixa de pessoas que gostariam de apagar mesmo por questões de estigma, discriminação e por não quererem falar sobre sexualidade. É preciso uma nova aliança entre o movimento de AIDS e a sociedade civil. Isso vai ser o desafio dos próximos anos.
Você acha que é capaz de uma onda de novas infecções por HIV por conta dessa desmobilização e da falta de recursos?
RP: Tem questões mais emocionais e outras mais psicológicas nesse sentido. Você vê a depressão e uma série de coisas aumentando que criam dificuldades para a prevenção e o autocuidado. Temos que lembrar que a prevenção e a promoção da saúde sempre deram errado quando saiu do status comunitário. Quando você praticava a proteção de você e dos outros você tinha respostas comunitárias mais poderosas. Hoje o egocentrismo é a modalidade mais comum nas práticas de saúde e eu acho isso muito ruim. Abre possibilidades para retrocessos.
Como fica a questão do sigilo e da transparência no contexto das pessoas com HIV num momento em que há municípios que divulgam o nome e CPF das pessoas para vacinação?
RP: É uma pergunta importante e a resposta seria longa, não temos tempo disponível. Lembro apenas que a ABIA está terminando uma publicação com base na live sobre vacinas que fizemos recentemente. Lá tem considerações superimportantes sobre esses assuntos. Tem lições da AIDS, por exemplo, para fomentar o acesso de vacinas para os países mais pobres. Hoje estamos assistindo uma tragédia nos procedimentos de vacinação. Acho isso uma área onde precisa ter monitoramento de políticas públicas e na Covid-19 não tem algo construído para isso como fizemos na AIDS.
Reportagem: Jean Pierry Oliveira (Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens)
Edição: Angélica Basthi