O curso de extensão “Abordagens dos Direitos Humanos na Saúde” foi uma realização em parceria com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e as ONGs Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), CEDAPS (Centro de Promoção da Saúde), CEPIA (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação) e o IESC/UFRJ.
A iniciativa teve como objetivo debater o eixo dos direitos humanos de forma interseccional com as questões relativas à diversidade sexual, a defesa dos direitos homoafetivos, o acesso à saúde e reprodução das pessoas LGBTQIA+, exibição do filme “Basta um Dia”, de Vagner de Almeida, entre outros assuntos.
A dinâmica iniciou-se com a mesa coordenada por Marina Vilar, integrante do NUDIVERSIS – Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual – DPERJ, cujo objetivo é “não judicializar tudo, essa não é nossa intenção primária. Temos um trabalho de muita orientação, esclarecimento e apoio à população LGBT+, principalmente com as pessoas travestis e transexuais, quanto ao nome social e uma série de direitos, por exemplo”, afirmou Marina.
Em seguida, o palestrante Dr. Roger Raupp Rios (UFRGS), referência nas áreas de direitos humanos, gênero, direitos sexuais, discriminação, saúde e diversidade no Brasil, contextualizou sobre o assunto em debate. “Esses temas são muito interessantes porque, por mais que busquemos uma orientação acadêmica e científica sobre as ideias e conceitos – porque ajuda -, mas ele só é compreendido totalmente em sua historicidade. O esforço do pensamento e organização das categorias é o que dá condições de coloca-las como desafios da realidade e não uma mera distração”, afirmou ele.
Raupp Rios disse que quanto aos direitos reprodutivos e sexuais se criou um enfrentamento que levou à uma resistência, no campo da saúde, “em que as mulheres precisam reivindicar o direito individual à informação e a saúde sexual”. O professor observou ainda que os direitos sociais também começaram se judicializar através de fatores como abusos dos planos de saúde, violências estruturais na saúde, criminalização da homofobia e transfobia.
“Direitos sexuais não são os direitos de uma minoria, são os direitos que todos têm, mas estão bloqueados pelo fato de determinados indivíduos não responderem nem se afirmarem dentro da perspectiva da cis hetero normatividade”, explicou sobre a sinergia que isso encontra em outros momentos e barreiras enfrentadas por demais grupos sociais. Segundo ele, o Brasil se alinhou nos últimos anos à Europa, América do Norte e a Ásia quanto ao conservadorismo político e social, que “não é só uma reação ao que foi feito, mas uma perspectiva do que precisa também ser feito quanto a isso. Há um pânico moral, com uma outra força, que pode ser percebida em outra dimensão dentro do neoliberalismo”.
Para Rios, a pandemia dramatizou do ponto de vista individual e coletivo as identidades sexuais. Questões como previdência, saúde e família são a todo instante volatizadas. “E esse é o momento que, do ponto de vista farmacológico, precisamos olhar para o que foi a epidemia de HIV/AIDS – e ainda é – porque do ponto de vista da discriminação a coisa se aplica semelhante. Chamei o Richard (Parker, diretor-presidente da ABIA) – para conversar sobre isso no início da explosão da COVID-19. Porque voltou aquela ideia de “corpos perigosos”, “quem é ou não produtivo”, coisas que voltaram e se ouvia naquela época”, atesta.
O advogado disse ainda que a experiência concreta evidencia que os direitos sexuais, diversidade sexual e direitos humanos se conectam na subjetivação da sociedade. Isto é, as estruturam se retroalimentam, vai e volta na medida das dinâmicas e dos desafios das sociedades e afetam/impactam diretamente a saúde.
Direitos Sexuais e Liberdade Sexual
Laura Murray (NEPP-DH UFRJ), professora acadêmica e pesquisadora de gênero, direitos sexuais e reprodutivos e prostituição, foi a segunda palestrante a falar nesse primeiro momento do curso de extensão. Liberdade, autonomia e consentimento – segundo ela – apresentam conexões históricas quando se relacionam com saúde e prostituição. Isso porque existe duas dimensões: a social e a moral. E, historicamente no Brasil, esses eixos atuam como “controle da própria sexualidade. A prostituição sempre foi vista como ameaça à família e à propagação de doenças”, pontuou.
Esses pressupostos levam à uma “dupla oposição”. Quais são os caminhos legais para o combate: a Lei ou Educação ou Sexualidade? Bem, para Murray “vender e comprar sexo no Brasil não são ilegais, mas tudo que está em seu entorno, sim. O que fortalece e permite os poderes discricionários da polícia. Então se torna quase impossível se trabalhar de uma forma segura, com essa ambiguidade da lei, diante de tanta violência”, criticou.
Esse cenário fomenta, já a partir dos anos 1970, a organização da sociedade civil por meio dos movimentos das prostitutas em prol de seus direitos e contra a violência policial no Brasil. Com tamanha complexidade – diante das diferentes realidades locais o abuso policial, além da remoção de zonas de prostituição – nasce a Rede Brasileira de Prostitutas, com destaque para líderes nacionais como Gabriela Leite.
“Elas primeiro se mobilizarem contra a violência sofrida, mas logo em seguida sua luta se fundiu com o advento da epidemia de HIV/AIDS. Isso trouxe uma aproximação com o Departamento de HIV/AIDS, até então, fazendo delas também vítimas, mas protagonistas em programas de prevenção e saúde”, afirmou a antropóloga. Outro importante momento da fala de Laura Murray foi a institucionalização dos direitos sexuais nos movimentos de prostitutas, com inserções de destaque em organizações e encontros nacionais, regionais e internacionais. Mas não que isso tenha sido levado ou encarado em todas as suas dificuldades, tais como:
-Inclusão de dinheiro e bens materiais na troca sexual;
– a forma de pagamento de um serviço masculino para o feminino;
– muitas dessas mulheres não se percebam como vítimas da opressão de classe e gênero (negra e mulher, por exemplo).
Além disso, o estigma “que vem antes do Bolsonaro e sua censura, também já se encontrava. Porque muitas delas não são aceitas nos espaços de destaque para tomadas de decisões (advocacy) por fatores estruturais. Porque não há promoção de direitos e políticas para esse campo que não seja na prevenção e/ou na saúde”, advertiu.
Debate
Para avaliar a ênfase das apresentações acima, os princípios gerais de diversidade, sexualidade, direitos humanos e saúde o diretor-presidente da ABIA Richard Parker foi o principal comentarista. “Eu gostei muito da conexão que o Roger fez entre o contexto histórico e o social do campo, com a realidade complexa da política. As lutas políticas pelos direitos humanos surgiram de forma importante como um anseio e uma resposta as tensões da democracia – tanto no local como no global”, afirmou Parker.
Ainda em suas análises das apresentações, o antropólogo chamou a atenção para o “erro comum” de que diversidade sexual se trata apenas de questões LGBTQIA+, “que tem uma importância fundamental, mas é uma limitação. Porque também trata da sexualidade das mulheres, das mulheres positivas, das prostitutas e o exercício da sexualidade. Estamos tratando dessa diversidade sexual também quando falamos de diversidade sexual”, apontou.
E completou: “ainda em cima do centro dos debates sobre neoliberalismo, sistema do direito e leis, como bem dito pela Laura também, temos que nos atentar ao retrocesso visto aqui no Ministério dos Direitos Humanos, Mulher e Família – por exemplo – e em outras áreas de gênero e sexualidade, junto à saúde, que assistimos diariamente no Brasil”.
Wanda Guimarães, do CEDAPS, chamou atenção para as implicações da garantia dos direitos quando se fala das pessoas em situação de pobreza. “Porque se para nós que estamos aqui é desafiante, como pobre numa sociedade como a nossa, a vulnerabilidade é ainda maior. Espero que possamos tratar disso na nossa roda de conversa ainda hoje”, apontou.
Questionado sobre como efetivar os direitos das mulheres, Roger Raupp disse que “é preciso que as pessoas tenham acesso aos direitos, à informação, à sua individualidade e respeito a sua sexualidade e prazer, como a própria Laura colocou”. O advogado ainda chamou a atenção para o fato que “temos que pensar ainda na Interseccionalidade porque uma prostituta, uma pessoa trans, uma mulher nunca é só aquilo. Outras coisas as atravessam”.
Os alunos do curso trouxeram questões sobre falta de empregabilidade para a população LGBTQIA+ e prostitutas para o debate. A pesquisadora Laura Murray disse que “há muitas iniciativas como a Casa Nem, aqui no Rio de Janeiro, que vem buscando formas de garantir acolhimento e empregabilidade para essa população, especialmente pessoas trans. Já para as prostitutas, essa precarização não é uma coisa específica delas: há machismo, racismo, estigma e outras discriminações que atuam sobre essas pessoas. E aí é preciso projetos e ações para que a prostituição não seja apenas a única opção de empregabilidade e em situações precárias em diversos setores”, contextualizou.
Acerca da exploração sexual de menores, outro ponto levantado para discussão, Laura quis deixar claro que “não devemos utilizar o termo prostituição de menores, antes de mais nada. Pois isso esbarra no fato de que prostituição se espera que não haja menores e sim pessoas a partir de 18 anos. E é muito importante também falarmos sobre o conceito da família nisso, a partir dos abusos sexuais e estupros dentro de casa. O Brasil é um país muito diverso e em cada região há questões distintas na questão da exploração de crianças e adolescentes que devem ser levadas em conta”, contou.
Roda de conversa
O terceiro e último momento do curso e extensão foi a Roda de conversa sobre Direitos Humanos e Diversidade Sexual com foco no documentário “Basta um Dia”, de Vagner de Almeida, coordenador do Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens da ABIA.
Divididos em três diferentes salas virtuais, os 70 alunos tiveram como atividades refletir sobre como o estigma e a discriminação refletem em violências praticadas contra a população trans (e contra outros setores da população LGBTQIA+) física, estrutural e simbólica. Para isso, tinham alguns eixos como provocação:
– O maior recrudescimento ou não das vulnerabilidades desta população na última década.
– O papel da mídia em pró-diversidade sexual e diversidade de gênero.
– O impacto da pandemia de COVID-19 em relação a uma maior vulnerabilidade desta população considerando as diferenças internas da população LGBTQUIA+
– Como as vulnerabilidades podem prejudicar o autocuidado e o acesso à saúde, considerando as diferenças internas da população LGBTQUIA+ e as interseccionalidades (raça, identidade sexual, escolaridade, moradia, religião, classe social, profissão, entre outros).
– As políticas e programas/serviços de saúde ao longo da última década e o impactado (ou não) na saúde desta população.
Com, aproximadamente, de 22 a 24 alunos em cada sala o momento serviu para que maneira mais pessoal e menos universitária os jovens e adultos pudessem compartilhar anseios, dilemas, medos, dúvidas, críticas e outras apreensões e percepções sobre a realidade da população trans, saúde LGBTQIA+ e direitos humanos.
Além disso, os estudantes foram provocados a pensar coletivamente em possibilidades e como desenvolver planos de advocacy em direitos humanos abrangendo as temáticas tratadas no documentário. Com idades, gêneros, identidades, sexualidades e regionalidades diversa,s as opiniões foram múltiplas e apontaram para a judicialização de ações, sanções econômicas, investimento em educação, combate ao preconceito, estigma e discriminação e a LGBTQIAfobia, de forma geral.
Na conclusão do debate, a professora Miriam Ventura agradeceu a disponibilidade de todos/as presentes antes de encerrar o evento.
Texto: Jean Pierry Oliveira (Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens)