Falar do sofrimento do luto e da morte é uma das mais caras tradições da resposta comunitária à AIDS. Foi no luto e no respeito a dor do outro que o movimento de AIDS, ao perder parentes e amigos, desenvolveu a prática de trazer esse assunto à luz . A sociedade, por sua vez, continua a esconder, negar ou minimizar a dor da perda de um ente querido. No lugar de banalizar ou negar a morte e o sofrimento, o movimento de AIDS aprendeu a falar sobre solidariedade e respeito num momento de dor e luto.
Tornou-se uma tradição a resposta comunitária à AIDS trazer a público este assunto. É em nome desta tradição que a ABIA publica o artigo de Jane Galvão, “Morrer de Covid-19: a relevância para a saúde pública de lembrar das pessoas que morreram durante uma pandemia”. Doutora em saúde pública, Jane atua no campo do HIV/AIDS desde os anos 1980 e vivenciou, portanto, os anos duros da epidemia da AIDS no Brasil e, como muitos, perdeu amigos e entes queridos.
Com a publicação deste artigo, a ABIA reitera o seu compromisso em dar visibilidade para este tema tão caro à sociedade brasileira, se solidariza com parentes e amigos por suas perdas e presta homenagens às vítimas da Covid-19. O artigo de Jane Galvão está publicado a seguir. Boa leitura!
Morrer de COVID-19: a relevância para a saúde pública de lembrar as pessoas que morrem durante uma pandemia
Por Jane Galvão
A pandemia de COVID-19 está causando um número de mortes inimaginável. Tal realidade está levando indivíduos e organizações a criar iniciativas destacando uma doença que está afetando comunidades em todo o mundo, oferecendo meios para lembrar a vida daqueles que morreram e declarar, conforme destacado pelo COVID Memorial que as pessoas não serão esquecidas e que não são apenas um número.
Temos casos de homenagem a pessoas que morreram, como por exemplo em guerras, tendo, em alguns casos, um dia para lembrar ou a criação de um memorial, ou o “Día de los Muertos” celebrado em Novembro no México e em outros países relembrando parentes e amigos falecidos. Mas um dia para evocar aqueles que morreram de uma doença específica ou iniciativas criadas para homenageá-los não são comuns.
Com COVID-19, estamos vendo iniciativas para lembrar as pessoas que morreram surgindo em diferentes partes do mundo. Talvez tenha sido o aparecimento repentino do vírus, o crescimento exponencial da infecção em países como Brasil e Estados Unidos, e o número de mortes. Ou talvez tenham sido as restrições de viagens, isolamento, e quarentena que colocaram uma camada adicional de restrição sobre a impossibilidade de visitar familiares e amigos afetados pela pandemia de COVID-19. Ou talvez foi a necessidade de silenciar o ruído gerado pela desinformação e mentiras, e a falta de resposta adequada à pandemia e, em alguns casos, algumas análises apontam para uma resposta quase criminosa por parte de governantes. Provavelmente, todos esses elementos estão sendo levados em consideração pelos criadores dessas memórias de pesar e tristeza aqui mencionadas.
Fiquei motivada para escrever este artigo quando encontrei um livro virtual, criado no Reino Unido, com os nomes e fotos de pessoas que morreram como resultado da pandemia de COVID-19 no Reino Unido. Eu tinha lido sobre o website — uma pessoa que conheço perdeu o irmão e seu nome está no website —mas eu não conhecia pessoalmente ninguém com nome no website, mas o número de mortes aumentou tanto que cada vez mais pessoas vão conhecer alguém afetado diretamente pela pandemia.
Morrendo durante uma pandemia
O primeiro relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre o novo coronavírus indicou 282 casos confirmados em quatro países (China, Japão, República da Coréia e Tailândia) e seis mortes. Em 29 de agosto de 2021, o número de casos confirmados era de 215.714.824, em mais de 200 países e territórios, e 4.490.753 pessoas haviam morrido e, infelizmente, desde então, mais pessoas perderam a vida. No caso do Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde (21 de agosto de 2021), o número de casos confirmados seria de 20.556.487, e o número de mortes 574.209, e esses números continuam aumentando.
Um dos aspectos mais angustiantes de ter um ente querido que está morrendo de COVID-19 é a quase impossibilidade da família e dos amigos de estar com a pessoa em suas horas finais. Da mesma forma, o comparecimento a cerimônias fúnebres tem restrições, e serviços estão sendo realizados via plataformas digitais. No entanto, com criatividade e uma imensa dose de bondade humana, profissionais de saúde estão tentando aliviar a solidão e a frieza enfrentadas por pessoas que precisam ficar em hospitais cercadas por estranhos vestidos da cabeça aos pés com equipamentos de proteção pessoal, conectando virtualmente os familiares com aqueles que estão doentes ou perto da morte.
Dizer adeus a um ente querido por meio de dispositivos eletrônicos é um dos aspectos mais devastadores da pandemia. Este uso inspirado da tecnologia, por desespero e amor, está acontecendo em todos os lugares sendo. Com os profissionais de saúde à beira do leito e familiares diante de telas e câmeras, as mensagens são transportadas pela distância física imposta pela pandemia.
Dizendo seus nomes, comemorando suas vidas
No auge da crise do HIV na década de 1980, uma ação ousada foi realizada para homenagear aqueles que haviam morrido, mas também para mostrar o impacto global e a devastação da epidemia de HIV e para apelar à ação: Names Project. O Projeto Nomes — que chegou a ter núcleos no Brasil — foi uma das primeiras iniciativas comunitárias criadas para lembrar que os mortos de uma doença específica não eram apenas um número, uma estatística. A idéia era trabalhar com lembranças expressas em uma colcha de retalhos onde era colocado algo que simbolizava a pessoa morta buscando sensibilizar a comunidade para a realidade da AIDS.
Com COVID-19 estamos vivenciando algo semelhante e uma série de iniciativas estão acontecendo. A seguir, destaco algumas dessas iniciativas, principalmente jornais e canais de televisão, websites e instalações de arte.
Outros exemplos a serem notados são os familiares e amigos escrevendo em plataformas digitais ou escrevendo artigos relatando suas estórias.
Jornais e televisão
Durante meses, jornais locais e canais de televisão exibiram segmentos regulares com vinhetas das pessoas que perderam suas vidas para COVID-19. O canal de notícias norte-americano CNN, onde os âncoras apresentaram vinhetas da vida de americanos que morreram de COVID-19; e a TV Globo, no Jornal Nacional, com fotos de brasileiros que morreram de COVID-19.
Quando os Estados Unidos se aproximavam de 100.000 mortes, o New York Times publicou na primeira página de sua edição de domingo (24 de maio de 2020) uma lista com nomes de pessoas cujas vidas foram perdidas devido à pandemia do coronavírus. O jornal também tinha uma seção, “Aqueles que perdemos” de março de 2020 a junho de 2021. Outras manifestações incluiram familiares e amigos que perderam entes queridos e deram testemunho, incluindo plataformas digitais.
Websites e instalações de arte
Um livro virtual (Remember me) foi criado no Reino Unido com os nomes e fotos de pessoas que morreram de COVID-19. Um website no Brasil — Inumeráveis — é dedicado a brasileiros que morreram de COVID-19.
Outro website, The COVID Memorial, é descrito como um lugar para compartilhar lembranças de entes queridos perdidos na pandemia do coronavírus e para encorajar medidas de saúde pública que podem prevenir mais mortes no futuro.
Nos Estados Unidos, a artista Suzanne Firstenberg criou uma instalação de arte ao ar livre — Na América, como isso poderia acontecer — colocando uma bandeira branca em homenagem aos entes queridos perdidos para COVID-19.
No Brasil, no Rio de Janeiro, em agosto de 2020, uma ONG (Rio da Paz) instalou 100 cruzes ao lado de sepulturas simuladas na areia da Praia de Copacabana para chamar a atenção para os 100 mil brasileiros mortos até então. Em abril de 2021, a mesma ONG usou 400 sacos para cadáveres para lembrar as 400.000 mortes de brasileiros devido a COVID-19. Também no Brasil, em São Paulo, um “Memorial da Fé por todas as vítimas da COVID-19” foi inaugurado em maio 2021.
Comentários finais
O luto global causado por COVID-19 continuará em 2021; em 10 de junho de 2021, mais pessoas tinham morrido de COVID-19 do que durante todo o ano de 2020. Enfrentar os desafios atuais exigirá determinação reforçada pela solidariedade.
No início de 2021, um declínio em novas infecções foi relatado, mas algumas semanas mais tarde, aumentos em novos casos foram vistos em quatro das seis regiões da OMS, com o número de casos explodindo posteriormente na Índia e nas Américas. Além disso, turbulência política em alguns países (ver, por exemplo, Mianmar, Somália, e Tunísia) está agravando o controle do vírus.
Pessoas em todo o mundo estão impacientes para voltar a uma vida sem COVID-19 o mais rápido possível. Mas, como o Dr. Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos lembrou, no início da pandemia, em março de 2020: You don’t make the timeline, the virus makes the timeline.
Vacinas, várias ficando disponíveis no final de 2020, são inestimáveis no enfrentamento de COVID-19; em meados de julho, 3.434.304.520 doses de vacinas tinham sido administradas globalmente. Mas, conforme destacado pelo Diretor-Geral da OMS, Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, em seu discurso de abertura, em maio de 2021, na 74ª Assembleia Mundial da Saúde: A crise da vacina é uma iniquidade escandalosa que está perpetuando a pandemia sendo que mais de 75% de todas as vacinas foram administradas em apenas 10 países.
Lidar com a iniquidade da distribuição e administração de vacinas é mais importante do que nunca, incluindo a importância da participação da sociedade civil. Dr. Tedros não citou os países, mas um artigo publicado em janeiro de 2021 menciona que os 10 principais países em termos de doses totais de vacinas administradas eram, na época: Grã-Bretanha, Canadá, China, Alemanha, Israel, Itália, Rússia, Espanha, Emirados Árabes Unidos e Estados Unidos. Para ilustrar essa situação, relatório publicado pela UNAIDS em julho de 2021, mostra que é muito baixa a administração da vacina entre pessoas que vivem com HIV. E para complicar esse cenário, variantes mais transmissíveis do SARS-CoV-2, o vírus que causa COVID-19, foram identificadas em vários países.
As consequências da desigualdade no acesso a vacina podem ser desastrosas. Um estudo apoiado pela Câmara de Comércio Internacional adverte que a economia global pode perder em torno de US $ 9,2 trilhões se os governos não conseguirem garantir o acesso das economias em desenvolvimento às vacinas para a COVID-19. Outra iniciativa lançada recentemente — Global Dashboard for Vaccine Equity — reforça essa previsão, conforme mencionado em seu website: COVID-19 vaccine inequity will have a lasting and profound impact on socio-economic recovery in low-and mower middle income countries without urgent action to boost supply, share vaccine and ensure they’re accessible to everyone now. Um outro website, criado por agências multilaterias e enfocando acesso a vacinas, foi lançado em julho de 2021.
Mas mesmo com o número crescente de casos e mortes, muitas vezes parece que é difícil para as autoridades de saúde pública expressar completamente o sofrimento causado por doenças. Nesse sentido, o impacto global causado pela pandemia deve motivar os que exercem saúde pública e pessoas e instituições envolvidas na resposta à COVID-19 para encontrar maneiras de realmente ouvir, aprender, reconhecer e colaborar com os esforços criados para lembrar os que morreram de COVID-19.
Em uma entrevista a CNN em meados de novembro de 2020, o Dr. Jonathan Reiner, Professor de Medicina da Universidade de Georgetown, disse que ler todos os nomes dos 250.000 americanos que até aquele momento haviam morrido de COVID-19 levaria, pelo menos 10 dias. Podemos imaginar, mais apropriadamente, esses nomes sendo lidos por políticos, e personalidades da TV que, por meio de suas ações, e postagens nas redes sociais, serviram para negar ou minimizar a gravidade da pandemia, usando a ignorância como um símbolo de honra, e desviar a atenção dos que morreram ou sofrem doenças graves relacionadas a COVID-19.
Richard Parker, escrevendo sobre a resposta à AIDS no Brasil nos anos 1980 e no início dos anos 1990 falou sobre sofrimento e solidariedade. Observando as interações entre famílias e profissionais de saúde durante a pandemia podemos dizer que vivemos um momento paralelo. No entanto, o número de casos confirmados e o número crescente de mortes, também podem ter o efeito de entorpecer o público. Cultivar a solidariedade e a compaixão entre aqueles que ainda não foram afetados pela pandemia pode promover o cumprimento das medidas de saúde pública e ajudar a criar um ambiente de apoio para aqueles que já sentiram seus efeitos devastadores.
Que as sinceras homenagens e memoriais àqueles cujas vidas foram perdidas nos ajudem a encontrar a necessária colaboração, determinação, solidariedade, engajamento e esperança para navegar pelos desafios que COVID-19 apresenta.
*Jane Galvão é doutora em Saúde Pública. Atualmente, é Assessora Sênior para Saúde fazendo parte da equipe da UNHR.
** Este artigo foi originalmente publicado em inglês no website do Global AIDS Policy Watch, o Observatório Global de Políticas de AIDS coordenado pela ABIA. A versão em português inclui algumas atualizações.