A epidemia do HIV e da AIDS não eclodiu apenas como uma manifestação viral. Surgiu também como um enredo social envolto em estigma, alimentado pela discriminação que atingiu globalmente as pessoas que vivem com o vírus. Esse contexto levou Herbert Daniel a afirmar que o vírus ideológico é mais difícil de enfrentar do que o vírus biológico. Na época, isso fez com que ganhasse evidência que o acolhimento, a inclusão e a solidariedade são a base da resposta à epidemia. Princípios fundamentais para vencer o preconceito e decisivos para o sucesso e reconhecimento mundial da resposta brasileira ao HIV e à AIDS.
Desde os anos 1980, a participação da sociedade civil na construção das políticas no campo do HIV e da AIDS foi marcante. Contribuiu para que o Estado brasileiro agisse tendo como referência em suas políticas a plataforma dos direitos humanos. O diálogo entre gestores públicos e movimentos sociais fez com que a dimensão social da epidemia não fosse perdida de vista. Um bom exemplo disso foram as ações de distribuição de camisinhas nas saunas do Rio de Janeiro nos anos 1990. Esse ambiente de diálogo e inclusão também possibilitou que a rede pública de saúde passasse a oferecer tratamento e atenção gratuitos.
No entanto, a história brasileira de sucesso no enfrentamento à epidemia tem perdido o brilho. O estigma permanece como um obstáculo contínuo ao longo dos quase 35 anos da doença. A isto, se agrega uma série de retrocessos que, no contexto brasileiro, projeta um horizonte desanimador e preocupante. Os recentes recuos de gestores públicos em campanhas de prevenção voltadas para populações mais vulneráveis e afetadas – como os homossexuais, as prostitutas e as pessoas trans e o fortalecimento de setores religiosos dogmáticos nos espaços políticos institucionais somados à centralidade das avançadas tecnologias biomédicas na prevenção têm levado a um afastamento dos princípios que consagraram a resposta brasileira no passado.
Nesse contexto, notícias recentes divulgadas nos meios de comunicação sobre casos de transmissão intencional do vírus, sem uma abordagem qualificada sobre o assunto, contribuem para que a discussão em torno da prevenção se deteriore por meio de um clima de pânico. Como pano de fundo, o projeto de lei 4887/2001 – já arquivado na Câmara dos Deputados, mas que busca criminalizar a transmissão do HIV. Trazer este debate de volta é preocupante, em primeiro lugar, em razão da dificuldade em se provar que uma pessoa infectou outra de forma proposital. Em segundo lugar, porque a aproximação entre prevenção e medidas penais é contraproducente, na medida em que ações punitivas excluem e fomentam o estigma.
No mais, é notório que o direito penal lida preferencialmente com o indivíduo e não com o cenário social e suas estruturais desiguais produtoras de estigmas. Conforme observou Sonia Corrêa, pesquisadora associada da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), a abordagem criminalizante da transmissão do HIV pode constituir uma violação de direitos humanos. Corroboram para essa compreensão documentos internacionais, como o Relatório da Comissão Global sobre o HIV e a Lei (http://www.sxpolitics.org/pt/?p=3734) e o Protocolo de Oslo, ambos unânimes em condenar medidas penais na busca de respostas sustentáveis à epidemia.
Por isso, é importante resgatar os princípios que nortearam a atuação do Estado brasileiro em sua vitoriosa jornada de combate ao HIV e à AIDS e retomar as raízes originais com base nos direitos humanos, na solidariedade e na inclusão. É preciso restabelecera articulação com a sociedade civil. No momento atual, em que a epidemia recrudesce atingindo, sobretudo homossexuais e pessoas trans, o diálogo e a solidariedade são fundamentais para que a prevenção seja pensada e implementada, sem deixar de respeitar as práticas e desejos das pessoas. A conscientização é necessária e alcançável na medida em que a prevenção não enverede por caminhos punitivos e que as discussões ocorram em termos plurais e reflexivos nos meios de comunicação e na sociedade como um todo. O debate e a resposta à epidemia do HIV e da AIDS não podem retroceder. Precisam urgentemente ser repaginados com a tônica da solidariedade que já se mostrou possível, eficaz e exitosa.
Richard Parker é diretor-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA)
Fonte: Agência de Notícias da AIDS