A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) fez uma entrevista exclusiva com o diretor-presidente da ABIA, Richard Parker, uma referência emblemática para o pensamento sobre a sexualidade e sobre o impacto do HIV e da AIDS no Brasil. Na reportagem, Parker afirma que “diante dos resultados de pesquisas recentes – como por exemplo, os estudos de soro-prevalência entre gays e outros homens que fazem sexo com homens – acho que é preciso assumir o fracasso da prevenção no Brasil, pelo menos durante a última década.” Leia a reportagem completa a seguir:
Diante dos números alarmantes sobre a prevalência de HIV no Brasil, a Abrasco conversou com Richard Parker, Professor Visitante Senior do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro – IESC/UFRJ além de Diretor-Presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) e Professor Titular Emérito da norte-americana Columbia University. Parker tem sido uma referência emblemática para o pensamento sobre sexualidade e sobre o impacto causado pelo HIV/AIDS no Brasil nos últimos anos. O professor pontua na entrevista a necessidade de se construir uma “pedagogia da prevenção” capaz de reconhecer a legitimidade de todas as expressões da sexualidade e do gênero, e capaz de respeitar as realidades mais diversas, garantindo a todos o acesso à informação e aos insumos necessários para as pessoas construírem a prevenção nas suas vidas.
No domingo, 29 de julho, Richard Parker participará da mesa-redonda Saúde Global, vulnerabilidades e direitos humanos: perspectivas críticas e desafios práticos, no Auditório Marielle Franco, durante o 12º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, no Rio de Janeiro.
Confira:
Abrasco – Diante desta grave situação da epidemia no país, pode dar sua opinião sobre a falência total da prevenção dos mais vulneráveis?
Richard Parker – Diante dos resultados de pesquisas recentes – como por exemplo, os estudos de soro-prevalência entre gays e outros homens que fazem sexo com homens – acho que é preciso assumir o fracasso da prevenção no Brasil, pelo menos durante a última década. Nos anos 1990 e no começo dos anos 2000, construímos uma resposta à epidemia do HIV com base nos princípios éticos e políticos dos direitos humanos. Neste período, o Brasil demonstrou liderança mundial no enfrentamento e controle da epidemia. Já no final dos anos 2000 (e ao longo desta década) o Brasil começou a importar um modelo de ‘prevenção biomédico’, trocando a defesa dos direitos humanos e o enfrentamento das vulnerabilidades estruturais para estratégias rasas como ‘testar e tratar’ e ‘tratamento como prevenção’.
Pior ainda: diversos governos se entregaram às pressões de forças conservadoras – como, por exemplo, a bancada religiosa no Congresso Nacional que pressionou, com êxito, pela censura às campanhas de prevenção para gays, pessoas trans, e prostitutas, entre outros grupos vulneráveis. Na época, alertamos para o grande perigo que a re-biomedicalização da resposta à epidemia e o retorno do estigma e da discriminação descarada das forças conservadoras representativas teriam para o enfrentamento da epidemia. Infelizmente, as pesquisas recentes sobre soro-prevalência dos grupos mais vulneráveis confirmaram a nossa previsão com dados empíricos.
A epidemia da infecção pelo HIV continua a transitar pelas desigualdades e exclusões sociais, afetando as populações mais marginalizadas e excluídas. A única maneira de mudar isto é fazer o enfrentamento real da marginalização e da exclusão. Sem isto, não vamos reconstruir uma resposta bem-sucedida em face da epidemia nas comunidades e populações mais vulneráveis.
Abrasco – A prevalência de HIV entre homossexuais no Brasil saltou assustadoramente para 18,4%: a cada cinco cidadãos gays, praticamente um está infectado. Como “gritar” para a sociedade estes números?
Richard Parker – É fundamental que todos os setores da sociedade sejam remobilizados para enfrentar a epidemia de todas as maneiras possíveis. É preciso reafirmar a importância fundamental do acesso ao tratamento do HIV, área em que o Brasil tem sido pioneiro. Mas também temos que reconhecer que precisamos não somente do acesso ao tratamento, mas também do acesso à prevenção. O acesso ao tratamento tem que ser garantido como um direito, mas o acesso à prevenção deve ser igualmente compreendido como um direito – e um direito de todos, não somente de alguns grupos privilegiados.
É preciso construir uma “pedagogia da prevenção” (no sentido de “pedagogia” que sempre foi defendido na educação popular) capaz de reconhecer a legitimidade de todas as expressões da sexualidade e do gênero, e capaz de respeitar as realidades mais diversas, garantindo a todos o acesso à informação e aos insumos necessários para as pessoas construírem a prevenção nas suas vidas.
A remobilização de todos os setores da saúde coletiva no Brasil, que sempre pautou o enfrentamento da desigualdade e da opressão, será da maior importância. É preciso “gritar” na mídia, nas nossas comunidades, nos serviços de saúde e nos corredores e gabinetes do poder público. Temos que convencer todos estes setores que só vamos conseguir enfrentar a epidemia se assumirmos a luta política e a defesa dos direitos humanos como ponto de partida para a prevenção.
Abrasco – Na sua opinião, temos no Brasil governantes com homofobia e negligência, diante desta nova onda da AIDS?
Richard Parker – Infelizmente, a homofobia e a negligência de muitos governantes foram responsáveis pelo fracasso do enfrentamento da epidemia nos setores mais vulneráveis. Tem sido ignorada a relevância do contexto social e político no enfrentamento à epidemia de AIDS. Nos períodos de redemocratização e de renovação do espírito da cidadania, foi mais fácil avançar nestas questões. No atual momento, contudo, em razão do crescimento do conservadorismo, temos assistido o ressurgimento de estigma, da discriminação e do preconceito de todos os tipos. Vamos ter que redobrar nossos esforços para enfrentar estas raízes sociais e políticas da epidemia. Existem armas importantes biomédicas e técnicas que podem nos ajudar neste enfrentamento – como, por exemplo, PEP ou PrEP, respectivamente, as profilaxias pós e pré-exposição. Mas estas armas técnicas, sozinhas, não resolvem nada. Será somente quando conseguirmos enfrentar as barreiras e as desigualdades sociais e defender a saúde e a prevenção para todos como um direito de todos que teremos condições de reconstruir uma resposta bem-sucedida para a AIDS.
Fonte: Abrasco