Um mês após a morte do ativista Jorge Beloqui, amigos, familiares e companheiros desde a sua infância se reuniram para compartilhar a saudade, relembrar as histórias e ouvir depoimentos emocionantes sobre a vida e trajetória do ativista. Beloqui faleceu no dia 9 de março vítima de uma pneumonia gravíssima que o levou a uma parada cardiorrespiratória enquanto dormia. Ele estava em visita à sua terra natal, Argentina.
A homenagem aconteceu na sede da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) e foi iniciativa de um grupo de amigos. Um vídeo com fotos de Beloqui desde os anos 1980, embalado pela voz de Carmen Miranda (Adeus Batucada) como trilha sonora ao fundo. As imagens foram carinhosamente editadas por Juan Carlos e Pedro Villarde e emocionaram cerca de 100 pessoas que participaram do encontro híbrido (presencial e online).
O diretor-presidente da ABIA, Richard Parker, fez questão de lembrar da importância de Jorge Beloqui para a história da instituição. Por 30 anos, Beloqui foi membro do Conselho Curador da ABIA e era um dos conselheiros mais atuantes. “Ele era a pessoa que a gente sempre podia contar, nos impulsionava ao exigir um compromisso ético e político. Ninguém tinha um papel igual ao dele. Posso afirmar que na história da epidemia, essa é uma das perdas que mais eu sinto”, disse Parker.
Mesmo sem palavras para dimensionar o tamanho da perda do amigo, Veriano Terto Jr., vice-presidente da ABIA, reforçou o quanto é difícil imaginar a vida sem a presença de Jorge Beloqui. “Nunca pensei que um dia estaríamos nesse lugar vendo essa trajetória do Jorge. Vamos aprender como a gente vai se conduzir daqui para frente, como tudo vai se reconfigura”, afirmou.
Ética e irreverência
O encontro reuniu amigos e familiares de várias partes do país e também do mundo (Brasil, Argentina e Estados Unidos). Mostrou o impacto que Jorge Beloqui teve não apenas na história da epidemia do HIV e da AIDS, mas na vida de muitas pessoas. Uma das lembranças memoráveis do ativista foi a revelação que por detrás do “bigodon”, sua marca registrada, havia uma pessoa bem-humorada, irreverente, carinhosa e muito acolhedora. “Foram 30 anos vivendo com Jorge. Ele foi o grande amor da minha vida, parceiro e companheiro. Era amoroso, carinhoso, piadista, irreverente, e talvez poucas conheçam essas qualidades”, atestou Marcos Blumenfeld, que participou da conversa deitado na cama de um hospital de onde se recupera de uma cirurgia.
A ética foi outra qualidade citada pelas pessoas presentes. O professor da faculdade de medicina Universidade de São Paulo (USP), Mário Scheffer, por exemplo, destacou essa e outras qualidades de Jorge Beloqui. “Tinha uma lealdade de princípios, independência crítica e a ética impressionantes. Fiquei anos na edição do Cadernos pela Vidda por causa dele. Ele esteve em momentos decisivos das nossas conquistas coletivas. Jorge vive, é imortal e nunca será esquecido”, afirmou.
Árvore frondosa
Outra professora da USP, Bete Franco, colega de Beloqui na matemática, destacou a simplicidade de Beloqui diante do profundo conhecimento que adquiriu por anos na militância. “Muita gente na USP não sabia da dimensão dele e nem do que ele representa na nossa vida e na história da AIDS no Brasil. Isso não era nítido e mostra certa humildade do Jorge em partilhar tudo isso que ele significou”.
Vera Paiva, professora do Instituto de Psicologia também da USP, anunciou que colegas irão plantar uma árvore em SP em homenagem ao ativista. Pessoas presentes sugeriram desde o tipo de árvore a ser plantada (um Jequitibá) até as qualidades que deverá expressar. “Será uma árvore apimentada, reta, dançantes, resiliente, divertida, colorida e frondosa”, disse Vera após ouvir as sugestões.
Outra homenagem sugerida foi a criação do Prêmio Jorge Beloqui feita por Simone Monteiro, pesquisadora da Fiocruz e membro do Conselho da ABIA.
“Ele prezava a justiça, a democracia, a amizade, a solidariedade e a universalidade. Ficamos com este legado. São lições para manter o Jorge vivo”, encerrou Veriano Terto Jr.
Sobre Jorge Beloqui
Atuou fortemente em defesa dos direitos de pessoas vivendo com HIV/AIDS, na luta pelo acesso aos medicamentos e contra o estigma e a discriminação. Matemático graduado pela Universidade de Buenos Aires com doutorado pelo Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa) no Rio de Janeiro, uma das mais relevantes instituições de matemáticas no mundo. Era professor sênior do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME/USP) e pesquisador do Núcleo de Estudos para a Prevenção da Aids (Nepaids-USP).
Era defensor da busca da compreensão dos fatos e verdades pela evidência científica e atuou em defesa de uma vacina anti-HIV. Teve grande atuação na exigência de padrões éticos e de excelência na pesquisa clínica tendo representado o movimento nacional de AIDS na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) nos anos 1990. Dentre suas atuações, liderou a edição do Boletim Vacinas. Beloqui foi também um lutador pela incorporação dos medicamentos antirretrovirais e para Hepatite C no Sistema Único de Saúde (SUS), além de ser dono de uma visão relevante do cenário global da resposta a AIDS no mundo.
Ao lado de outros ativistas, como Herber Dabiel, fundou o Grupo Pela Vidda-SP. Ingressou no Grupo de Incentivo à Vida (GIV) e contribuiu para a formação da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS (RNP+) no Brasil. Jorge Beloqui atuava também como conselheiro da ABIA desde o início dos anos 1990.