Não há como falar de prevenção do HIV/AIDS e das ISTs, sem falar sobre sexo e sobre a sexualidade. A premissa, que reitera a atuação da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) em defesa dos direitos sexuais, foi mais uma vez foco das discussões do 3º seminário de prevenção em HIV- Aprimorando III, sobre “Prevenção das ISTs/AIDS: novos desafios na quarta década da epidemia”. O evento reúne profissionais da saúde, pesquisadores, ativistas da luta contra AIDS e público geral até sexta-feira (28/06) no Rio de Janeiro, para debater questões diversas relacionadas ao tema.
Pela manhã, a mesa “Sexo seguro” teve como foco os aspectos comportamentais e sociais da prevenção como práticas sexuais entre gays e demais homens que fazem sexo com homens (Hsh). Quem abriu as reflexões foi Thiago Pinheiro, psicólogo e pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Pinheiro apresentou dados da sua pesquisa “Histórias e Sentidos da prevenção da AIDS e ISTs: síntese da história da camisinha”. Segundo o pesquisador, a popularização do preservativo está relacionada a eclosão da epidemia de HIV/AIDS na década de 1980, como parte dos cuidados do “sexo seguro”, conceito criado e difundido pela comunidade gay dos Estados Unidos.
“As políticas e os órgãos de saúde recriminavam as práticas sexuais desses grupos, a própria homossexualidade em si ainda era vista como uma patologia. Por outro lado, a comunidade gay sempre teve uma abordagem mais aberta sobre sexualidade e cuidados, por usarem de outros estímulos e práticas que não a penetração vaginal”, explicou. “Com os casos de HIV que iam surgindo, essas pessoas começaram a se articular para promover serviços de saúde, trocar informações, transgredindo assim esse controle dos seus corpos, e continuar tendo prazer sexual de uma maneira mais segura, buscando o cuidado consigo e com o outro”, afirmou o pesquisador.
No entanto, Pinheiro avalia que as narrativas em torno do sexo mais seguro que impulsionaram o uso da camisinha, posteriormente foram esvaziadas da sua construção comunitária “ A utilização da camisinha no sexo anal surge partir das práticas de sexo mais seguro da comunidade gay, fundamentada na experiência e no cuidado comunitário. A medida que a camisinha se populariza, e seu uso é estimulado também para casais heterossexuais, e é apropriada pelas campanhas de saúde e inscrita numa linguagem técnica, normativa. Virou um mantra ‘Use camisinha’, como se essa ordem por si só fosse suficiente em termos de prevenção”, afirmou o pesquisador, citando exemplos de campanhas brasileiras de incentivo ao método.
A adesão ou não ao uso do preservativo também foi o tema da exposição de Victor Hugo Barreto. Antropólogo pela Universidade Federal Fluminense – UFF, Barreto estuda práticas sexuais entre homens que fazem sexo com homens em ambientes homoeróticos. Em sua tese de doutorado sobre festas de sexo grupal e barebacking (sexo propositalmente sem o uso do preservativo) no Rio de Janeiro, o autor observou que há um misto de prazer e risco na prática, nas quais esse último é negociado entre os praticantes e se possível minimizado: “ Nesses casos, o não-uso do preservativo não acontece por uma questão de falta ou escassez de informação, mas sim por uma deliberação das partes envolvidas. Isso não significa que a preocupação com a prevenção é totalmente excluída, mas ela é adequada às experiências pessoais dos participantes de acordo com ambiente… a aparência do pênis e dos órgãos sexuais contam muito, ejacular fora ou na boca… existe uma certa gestão de riscos ”, afirmou.
Já Luiz Vasconcellos, especialista em saúde pública pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), disse que “a grande maioria dos homens adeptos do barebacking que eu entrevistei não eram soropositivos e nem queriam infectar-se com o vírus HIV, o que desmente esse pânico moral que de vez em quando é suscitado pela mídia que as festas são realizadas com o intuito de transmitir o vírus HIV. Mostra inclusive que esta concepção é mais uma das formas de estigmar as pessoas soropositivas”.
Redução de danos
Durante a tarde, os discursos sobre o respeito aos direitos humanos e sexuais e as escolhas individuais foram abordados na mesa “Prevenção, Direitos Humanos e Redução de Danos” que contou com as participações dos ativistas e redutores de danos, Evalcilene Santos e Daniel de Souza, e também do pesquisador e ativista em HIV/AIDS, Jorge Beloqui. A mediação foi de Alexandre Grangeiro, pesquisador da Faculdade de Medicina da USP.
Redução de danos diz respeito ao conjunto de políticas e práticas de cuidado que visam reduzir os danos associados ao uso de drogas psicoativas em pessoas que não podem ou não querem parar de usar drogas. Fazem parte da redução de danos as estratégias de prevenção, a recomendação do não compartilhamento de instrumentos injetáveis, o cuidado nutricional, psicoterapia entre outros. Apesar de recomendadas por diversos especialistas em saúde pública para reduzir agravos na saúde dos dependentes e controlar epidemias, como a de HIV/AIDS, as políticas de RD têm sido fortemente atacadas por setores conservadores e religiosos e foi recentemente retirada da Política Nacional de Drogas pelo governo Bolsonaro em abril deste ano.
“No começo da década de 1990, quando foi iniciado este debate, este não era um tema da saúde. Era um assunto judicializado. Foi uma grande batalha levar o conhecimento do direito do usuário de drogas e contribuir para que os mesmos fossem protagonistas da redução de danos. É importante recuperar isto num momento em que esta política está ameaçada de desaparecer como política de saúde”, alertou Grangeiro.
O 3° Seminário de Capacitação em HIV – Aprimorando o Debate III é uma realização da ABIA. O tema desta terceira edição é “Prevenção das ISTs/AIDS: novos desafios na quarta década da epidemia” e termina nesta sexta-feira (28/06) no Scorial Hotel, localizado no Flamengo (próximo ao Largo do Machado).
Reportagem: Maria Lúcia Meira (estagiária)
Edição e supervisão: Angélica Basthi