Em entrevista exclusiva à ABIA, a gerente de DST/AIDS, sangue e hemoderivados da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro, Denise Pires, avalia a gravíssima situação da saúde que afeta o atendimento aos pacientes que vivem com AIDS hoje no estado. Pires revela como os gestores planejam atender os 700 pacientes com HIV que foram transferidos para o Iaserj, após o fechamento do serviço de AIDS no Hospital São Francisco de Assis (antigo Hospital da Venerável Ordem Terceira da Penitência) na Tijuca (RJ). Segundo Pires, os serviços não serão interrompidos e a secretaria está trabalhando para causar o mínimo de impacto possível aos pacientes na transferência dos serviços para o IASERJ. Apesar da boa expectativa, a gerente de DST/AIDS reconhece a situação no estado é gravíssima. “Certamente há muita morte que poderia ser evitada”.
ABIA: O Serviço de AIDS, oferecido pela Secretaria Estadual de Saúde no Hospital Francisco de Assis surgiu há quatro anos com a promessa de ampliar a assistência das pessoas que vivem com HIV e AIDS no estado. O que aconteceu com o serviço neste período?
Denise Pires: A secretaria realizou uma iniciativa importante ao montar o ambulatório na Tijuca. Na época, enfrentávamos algumas circunstâncias, das quais destaco: 1) o problema de oferta de serviços e 2) o gargalo no atendimento surgido na ocasião da testagem móvel dirigida à população de maior vulnerabilidade no Projeto Fazer. Havia um acordo entre os dois níveis de gestão, estado e município, que a referência seria o Hospital dos Servidores, mas houve um momento que não foi mais possível absorver. Havia também dois fóruns de organizações não governamentais que atuavam no campo da AIDS e da Tuberculose. Estes fóruns faziam pressão para uma resposta. Foi neste momento que surgiu o ambulatório. Já havia uma Organização Social (OS) que administrava alguns serviços na Ordem Terceira (que é um hospital vinculado à Igreja Católica). O ambulatório entrou neste conjunto de ofertas de serviços. Conseguimos oito leitos, mas nunca foram de maior complexidade. Eram leitos para pacientes com baixa complexidade, porque não havia isolamento respiratório. Se alguém com tuberculose fosse internado, por exemplo, tinha que ser mantido no quarto, sem contato com outros pacientes. O Hospital tinha um CTI, mas não era da AIDS. Sem dúvida, no Estado, um dos nossos grandes desafios é organizar a assistência aos pacientes com AIDS, porque exige uma complexidade. Exige uma resposta que envolva os três níveis de governo, integração e articulação de serviços, além da otimização de recursos existentes. O ambulatório é importante, mas deve estar integrado a outros setores.
ABIA: Como o governo do estado do Rio de Janeiro tem respondido às atuais demandas?
Pires: Estamos construindo junto com o subsecretário a estratégia de manter o cuidado no atendimento com as pessoas para que ninguém fique sem atendimento, sem informação, sem medicação. O serviço está sendo transferido para o Iaserj, que funciona no Maracanã. O fato de ser uma unidade pública e se localizar no Maracanã, próximo ao metrô, são fatores interessantes. A Ordem Terceira fica na Tijuca, logo a locomoção até o Maracanã não deve causar impactos para os cerca de 700 pacientes que já estão vinculados. Já estamos em vias de formalizar a contratação dos médicos. Num primeiro momento, a prioridade é resolver esses 700 pacientes que serão atendidos lá. Mas já estamos discutindo internamente a necessidade de trabalhar numa lógica de matriciamento, ou seja, o ambulatório funcionar com um perfil mais qualificado, no sentido de oferecer maior complexidade para o contexto da realidade do estado do Rio de Janeiro.
ABIA: A falta de medicamentos e materiais na área da saúde está afetando as pessoas que buscam tratamento para o HIV?
Pires: Olhando os indicadores de AIDS, e observando especificamente a mortalidade, vemos que não são indicadores que nos deixam tranquilos. Os indicadores estão num patamar ruim. Hoje não há nenhum estudo que diga que a nossa mortalidade, por exemplo, é relacionada a um único fator. É um conjunto de fatores, que vai da capacidade das esferas de gestão que são responsáveis por diagnosticar precocemente, oferecer o cuidado adequado, responder sobre a intercorrência e também oferecer os medicamentos, não só antirretrovirais. Temos problemas de oferta e, às vezes, o problema está relacionado com uma infecção oportunista e outras DSTs.
ABIA: Mas no caso da AIDS, existe um acesso diferenciado a serviços diferenciados que são dependentes da porta de entrada. Às vezes o paciente pode encontrar um serviço mais acolhedor. Outras vezes, poderá haver falta de estrutura…
Pires: A sociedade não é igualitária. Nós temos uma sociedade extremamente desigual. E uma das maiores desigualdades do mundo é a nossa. Se você for em qualquer município da Baixada, você vai ver as condições de atendimento que são bem precárias. Outro problema: não se consegue manter o profissional. Os salários são complicados.
ABIA: Como fica o atendimento para o paciente portador de HIV nesse contexto?
Pires: As pessoas serão atendidas neste ambulatório que a Secretaria está organizando. Teremos dois médicos, equipe de enfermagem e equipe da farmácia. Nossa expectativa é que a mudança tenha o menor impacto possível na saúde das pessoas. Também estamos apostando que isto pode ser uma oportunidade de rediscutir e repensar, de fato, de um modelo de atendimento aos pacientes com HIV e AIDS. É preciso repensar, por exemplo, sobre o que é melhor para responder às necessidades da epidemia.
ABIA: Como a senhora avalia a situação das pessoas que vivem hoje com HIV e AIDS no estado?
Pires: Temos uma dívida importante. Precisamos responder de forma adequada a muitas perguntas sobre assistência, rede de serviços, acesso, dentre outros assuntos.
ABIA: O que estas pessoas devem fazer? A quem recorrer?
Pires: Exercer a cidadania e procurar todos os recursos para isso em todas as instâncias, dentro da saúde e também fora dela. E quem está na gestão tem a obrigação de oferecer transparência na informação, inclusive para contribuir no processo de aprimorar a cidadania.
ABIA: Há denúncias de mortes ocorridas recentemente por falta de atendimento, principalmente no interior do estado. A senhora está ciente destas mortes?
Pires: Temos um número alto de mortes em decorrência da AIDS e bastante acima da média nacional. Não sei dizer a causa, se é falta de diagnóstico ou falta de recursos assistencial. Talvez seja um conjunto de fatores. Certamente há muita morte que poderia ser evitada. Acompanhei uma situação recentemente e diria que foi o retrato da nossa desorganização de assistência. Era uma pessoa que estava em uma UPA de Vilar dos Teles (São João de Meriti, na Baixada Fluminense) e que precisava de uma internação. Não sei se a morte seria evitada ou não, porque não sei qual era a situação clínica do paciente. O que eu sei é que o que deveria ter sido feito – até para que a gente pudesse afirmar com segurança que foi feito tudo – infelizmente, não foi. Neste caso específico faltou fazer mais. Há um déficit de leito para internação.
ABIA: O que está sendo feito neste momento para evitá-las?
Pires: A gente trabalha de acordo com a nossa capacidade de resposta. Estamos investindo em articulações entre esferas dos municípios e junto às universidades para identificar problemas e buscar soluções. Também estamos em busca de financiamento para implementar iniciativas que possam inspirar modelos interessantes de cuidado. Temos o projeto “Teste perto de você”, em parceria com a Fiocruz, financiado por uma organização internacional, e cujo foco é a testagem móvel associada à vinculação do paciente e qualificação do atendimento. Também estamos investindo no diálogo com a sociedade civil. Sabemos que o que fazemos é pouco…
ABIA: Com o que, do ponto de vista dos recursos, governo conta hoje para fazer o enfrentamento à epidemia de HIV e AIDS no estado?
Pires: Do ponto de vista orçamentário, tem uma parte da transferência do governo federal que é destinada às ações de vigilância e saúde e que não pode ser colocada na área de assistência. Os recursos para a AIDS estão dentro deste teto financeiro. Tem ainda as transferências governamentais para área de saúde e para a área de assistência. E os recursos do Tesouro para pagamento de pessoal.
ABIA: Essa crise vem sendo anunciada há algum tempo e denunciada pelo movimento social de AIDS. O que foi feito do ponto de vista preventivo? Como chegamos até aqui?
Pires: Com relação à Ordem Terceira do Carmo, não tínhamos muito que fazer. Buscamos fortalecer a iniciativa. O governo do estado está enfrentando uma situação muito séria. Por conta da crise financeira do governo, estamos vivendo uma retração, de um modo geral, e na saúde também. A situação salarial dos servidores está instável, não sabemos se vamos receber ou não. É uma situação grave de um modo geral. Não é uma coisa específica da AIDS.