Por Veriano Terto Jr.
O movimento social de AIDS, tal qual é conhecido hoje, teve seu início e constituição na metade dos anos 1980 do século passado, quando foram fundadas as primeiras ONGs/AIDS, ou seja, organizações não governamentais dedicadas a trabalhar para mitigar os duros impactos da epidemia de HIV/AIDS, que desde o início daquela década afligiam a população brasileira, principalmente nas grandes cidades. Estas ONGs/AIDS foram fundadas tanto por indivíduos, tais como lideranças comunitárias, ativistas advindos de outros movimentos sociais: feministas, cientistas profissionais de saúde, familiares e pessoas vivendo com HIV/AIDS etc. Da mesma forma, participaram coletivos e instituições, como igrejas, organizações do movimento gay e lésbico, entres outros, representativos de populações que eram mais fortemente afetadas pelo HIV/AIDS. Estas organizações procuraram responder a ausência de respostas governamentais em diferentes esferas, principalmente a federal. Foi somente na segunda metade daquela década que se constituiu, de fato, um Programa Nacional de enfrentamento ao HIV/AIDS no Ministério da Saúde. Até então as repostas governamentais partiam de alguns poucos programas estaduais e municipais em cidades fortemente impactadas pela epidemia, e ações fragmentadas e pontuais do nível federal.
Tal como em outros países, o recém formado movimento social de AIDS, começou a trabalhar em praticamente todas as áreas que compõe um programa de saúde pública para enfrentar uma epidemia: assistência/tratamento, prevenção, advocacy e incidência na formação e implementação de políticas de saúde, mobilização e participação social. Podemos dizer que a resposta à AIDS no Brasil, tal como em outros países, começou de baixo para cima, ou seja, primeiramente no nível comunitário para depois chegar nas esferas governamentais.
Ao longo de quase 40 anos, em cada uma das áreas o movimento social de AIDS contribuiu com experiências inovadoras que até hoje são referências, não só para a resposta à AIDS, mas também para outras patologias e epidemias. Aqui não teremos espaço para detalhar cada uma destas áreas, mas resumidamente, podemos dizer que, na área da prevenção, foram decisivas a proposição do que hoje chamamos de sexo mais seguro, ou seja, práticas sexuais seguras e negociadas, para além da camisinha, mantendo o prazer do sexo e a criatividade a partir das experiências das próprias comunidades. Ainda na prevenção via transmissão pelo uso de drogas injetáveis, o trabalho desenvolvido com a metodologia de redução de danos envolveu os próprios usuários na execução das ações, e pode significar um avanço, não só na saúde física, mas na cidadania destas pessoas e na projeção de uma visibilidade social mais justa e menos estigmatizada sobre o uso e sobre o usuário de drogas.
No que diz respeito a tratamento/assistência, a fundação das casas de apoio foi fundamental para cuidar de pessoas doentes, quando os hospitais fechavam as portas, especialmente no caso daquelas mais fortemente estigmatizadas, como pessoas trans em situação de pobreza, pessoas em situação de rua e usuários de drogas, entre outros. Não podemos esquecer, no entanto, as contribuições no ativo acompanhamento comunitário dos primeiros estudos clínicos sobre vacinas para o HIV, assim como nos estudos para novos medicamentos. E não menos importante, é preciso mencionar a mobilização e incidência para o acesso universal aos medicamentos antirretrovirais, incluindo a oposição a barreiras comerciais e de propriedade intelectual que possam impedir ou dificultar esse acesso, principalmente aos novos medicamentos e às inovações em saúde, em geral. Os resultados da luta por medicamentos beneficiaram não só o tratamento da AIDS, mas também contribuíram para mobilizar pacientes de outras patologias para aceder a medicamentos mais atuais e eficazes, como no caso dos pacientes de Hepatite C e Tuberculose.
Uma outra contribuição fundamental que o movimento de AIDS aportou diz respeito a radicalizar a associação entre saúde pública e direitos humanos. No final da década de 80, quando o pânico, o discurso do medo, as práticas discriminatórias contra pessoas vivendo com HIV/AIDS e o estigma pavimentavam as campanhas publicitárias e uma série de medidas coercitivas (ex: demissão e exclusão de pessoas de seus empregos e a negação do acesso à escola para crianças vivendo com HIV/AIDS), é no movimento social de AIDS que é elaborado um contra-discurso baseado na solidariedade, na defesa da cidadania e na promoção dos direitos humanos como princípios fundamentais da resposta à AIDS. A elaboração, aprovação e adoção da Declaração dos Direitos Fundamentais da Pessoa Vivendo com HIV/AIDS (1989) pelo movimento social de AIDS, e mais tarde, até por governos, é um marco neste sentido e também marca o protagonismo das próprias pessoas vivendo com HIV/AIDS , junto aos demais grupos componentes do movimento, na luta pelo direito à vida, ao tratamento justo e eficaz, à prevenção e pela cura, que em algum momento existirá.
Atualmente, devido ao subfinanciamento por parte do Estado e também das filantropias nacional e internacional, aliado ao contexto político de retrocessos democráticos, o movimento social de AIDS, tal como os movimentos sociais progressistas brasileiros, encontra-se num difícil momento. Várias ONGs, que num passado recente exerceram liderança, já fecharam as portas e outras encontram imensas dificuldades para sobreviver, ao mesmo tempo que a epidemia de HIV/AIDS continua em ascensão em grupos mais vulneráveis, como jovens gays, pessoas transexuais, população negra, entre outros.
A eclosão da COVID 19 no Brasil nos primeiros meses de 2020, veio complexificar a situação do movimento social de AIDS brasileiro. Por causa das graves emergências e rápido impacto da COVID 19 sobre a população, recursos humanos e materiais precisaram ser deslocados para enfrentar o novo desafio. Segundo informações levantadas pela própria ANAIDS, uma das redes de organizações mais atuante do movimento social de AIDS, a própria AIDS e outras doenças crônicas como a TB sofrem o impacto da COVID, por exemplo, com a transferência de consultas já marcadas no SUS, com a diminuição de profissionais de saúde que precisaram também ser deslocados, na disponibilidade de metodologias de prevenção, como a Profilaxia Pré-Exposição, entre outras. No entanto, apesar das dificuldades, o movimento social de AIDS tem sido convocado pela sociedade a se pronunciar sobre a COVID, seus impactos e suas possíveis respostas.
As duas epidemias apresentam várias diferenças entre elas, mas também muitas semelhanças e paralelos. Sem querer aprofundar aqui esta comparação, as diferenças estão resumidamente relacionadas às vias de infecção e formas de adoecimento e tratamento. Por exemplo, a COVID 19 tem cura para um número significativo de pessoas, diferentemente da infecção pelo HIV. Por outro lado, ambas as epidemias tem sua disseminação influenciadas pela desigualdade social, por decisões políticas equivocadas (ex: negacionismo), juízos de valor estigmatizantes (ex: AIDS = “doença de gay”; COVID 19 = vírus chinês), entre outros.
São nestas comparações que o movimento social de AIDS tem se pronunciado em diferentes ocasiões e onde algumas lições advindas da AIDS podem contribuir com a resposta ao COVID. A seguir, algumas possíveis contribuições:
- Uma grande contribuição é não aceitar opiniões de que “a AIDS já não seria uma prioridade”, por causa da COVI19. Os casos de HIV continuam crescendo nas populações mais vulneráveis como jovens gays, pessoas trans, pessoas em situação de pobreza, entre outras. O movimento deve continuar a priorizar o seu trabalho com HIV, porque uma das lições ao longo dos últimos anos é que os bons resultados obtidos no campo do HIV contribuíram para o enfrentamento de outras patologias e para um melhor acesso à saúde individual e coletiva de uma forma mais ampla. Seguindo o nosso trabalho com HIV trabalharemos para deter a COVID e pela melhoria da saúde como um todo.
- No campo da prevenção, devemos lembrar que ambas as patologias necessitam de mudanças comportamentais (ex: no caso da AIDS, camisinhas; no caso da COVID19, o uso de máscaras). No campo da AIDS, aprendemos que mensagens criativas, negociadas com e entre as pessoas, em tom menos prescritivo e com participação, podem estimular comportamentos e atitudes mais positivas em relação à prevenção. Dialogar com a população sobre a prevenção da COVID 19, disseminar informações corretas e atualizadas numa pandemia é dever de todos e todas e as lições da AIDS neste quesito podem ser uma interessante referência.
- No campo da assistência/tratamento/cuidado: ao longo dos anos de ativismo por um acesso justo aos medicamentos e às inovações em saúde, o movimento de AIDS acumulou lições e resultados positivos. Alguns deles dizem respeito ao licenciamento compulsório de um antirretroviral (efavirenz) e oposição e negação da patente de medicamentos como tenofovir e truvada. Desde os anos 90 também acumulou experiências no acompanhamento de estudos clínicos sobre medicamentos e vacinas, sempre buscando garantir o cumprimento de padrões éticos de excelência, assim como a participação direta dos usuários. Tais lições, resultados e experiências podem ser reaplicados nos esforços para a obtenção de medicamentos e vacinas para COVID 19 a todos que necessitem, buscando alcançar a universalidade no acesso. Da mesma forma, contribuir para que os estudos cumpram com as exigências éticas e garantam a participação comunitária e que as barreiras comerciais sejam suplantadas.
- No entanto, possivelmente a grande contribuição seja demonstrar que a COVID 19, tal como a AIDS, e, porque não dizer, todos os agravos em saúde pública, devem ser enfrentados a partir da defesa e promoção dos direitos humanos e ter como princípio básico a solidariedade. O ativismo do movimento social de AIDS comprovou que a associação direitos humanos e saúde pública é uma fórmula eficiente para quebrar silêncios, enfrentar estigmas e juízos de valor negativos, como os já citados, e para garantir a universalidade no acesso à saúde, com equidade e participação social. Como diz a canção de Beto Guedes: “A lição sabemos de cor, só nos resta aprender”.
(*) Veriano Terto Jr. é vice-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA).
(**) Este artigo foi publicado originalmente no site Saúde Pulsando