Maria Lucia Karam*
No debate sobre criminalização/descriminalização de condutas envolvendo transmissão do HIV, que coloca em cena especialmente preocupações de movimentos sociais voltados para a questão da AIDS, bem como para questões como a prostituição e direitos LGBTQI, parece-me conveniente ultrapassar quer os limites do tratamento penal vigente ou proposto do tema central considerado, quer os limites do tratamento penal de quaisquer condutas relacionadas à sexualidade.
Debates dessa natureza, a meu ver, estão a requerer uma reflexão mais abrangente. Parece-me necessário refletir, antes de tudo, sobre o exercício do poder do Estado de punir, as funções reais do sistema penal e os posicionamentos dos movimentos sociais em relação a tal mecanismo de controle social.
É comum encontrar em tais debates posicionamentos contraditórios. Dependendo da questão considerada, os mesmos movimentos sociais ora reivindicam a descriminalização, ora requerem maior rigor criminalizador. Pense-se, por exemplo, em movimentos feministas que, ao mesmo tempo em que reivindicam a descriminalização do aborto, requerem severa punição à violência de gênero, apoiando a criação de novas inúteis figuras penais, como o dito feminicídio. Ou, aproximando-nos do debate aqui proposto, pense-se nos movimentos que reivindicam a descriminalização da transmissão do HIV, mas requerem a criminalização da homofobia. Na reivindicação de descriminalização da transmissão do HIV, argumenta-se, com razão, que o direito penal não só não seria instrumento próprio para controlar questões de saúde pública, como estimularia preconceitos e discriminações, agravando a situação de grupos já vulneráveis. Mas, não se explica por que razão seria este mesmo instrumento adequado para enfrentar outros preconceitos e discriminações.
Vamos, então, refletir um pouco sobre esses contraditórios posicionamentos, sobre o exercício do poder do Estado de punir, sobre as funções reais do sistema penal.
Desigualdade, discriminações, exclusão e opressão fazem-se permanentemente presentes na lógica do funcionamento do sistema penal. A realidade e a história demonstram que leis e práticas penais são e sempre foram obstáculos no caminho da plena realização dos direitos humanos fundamentais.
Esses obstáculos avolumam-se com a crescente intervenção do sistema penal, consequente à contemporânea expansão global do poder punitivo, que se faz notar desde as últimas décadas do passado século vinte. A intervenção do sistema penal tornou-se a propagandeada solução para todos os problemas. Em todo o mundo, políticos dos mais variados matizes apresentam o sistema penal não só como uma fácil – mas certamente falsa – resposta para os anseios individuais por segurança, mas até mesmo como um alegado – mas obviamente inviável – instrumento de transformação social ou emancipação dos oprimidos.
Embora mantidas as estruturas formais do estado democrático, reforça-se um estado policial sobrevivente em seu interior (Zaffaroni et al, 2000); instituem-se espaços de suspensão de direitos fundamentais e de suas garantias; afasta-se a necessária universalidade de tais direitos, incorporando-se ao controle social exercido através do sistema penal estratégias e práticas que identificam o anunciado enfrentamento de condutas criminalizadas à guerra. A proibicionista política de ‘guerra às drogas’ bem ilustra essa tendência, como explicitado em sua própria denominação. Com efeito, tal nociva política tem sido fator crucial para a registrada expansão global do poder punitivo (Karam, 2015a).
A adoção de parâmetros bélicos exacerba a hostilidade contra aqueles que são selecionados pelo sistema penal para cumprir o papel do ‘criminoso’: o ‘criminoso’ torna-se o ‘inimigo’. Assim, exacerbam-se a violência, a seletividade, a irracionalidade, os danos e as dores, inerentes a qualquer intervenção do sistema penal. A expansão do poder punitivo fortalece as danosas ilusões sobre crimes e penas; enfraquece o desejo da liberdade; e favorece a afirmação da autoridade e da ordem. A expansão do poder punitivo cria leis penais e processuais penais que sistematicamente se afastam de princípios garantidores, desrespeitando direitos humanos fundamentais e violando normas inscritas nas declarações internacionais de direitos humanos e nas constituições democráticas.
O sistema penal nunca atua efetivamente na proteção de direitos. A expressão ‘tutela penal’, tradicionalmente utilizada é manifestamente imprópria, na medida em que as leis penais criminalizadoras, na realidade, nada tutelam, nada protegem, não evitam a ocorrência das condutas que criminalizam, servindo tão somente para materializar o exercício do enganoso, violento, danoso e doloroso poder punitivo.
O sistema penal promove violência; estigmatização; marginalização; e sofrimento. Aliás, quanto a esse último efeito, vale lembrar que essa é a ideia central da punição: pena significa sofrimento.
O sistema penal promove desigualdade e discriminação, tendo como alvo grupos já em desvantagem social. Os indivíduos que, processados e condenados, são etiquetados de ‘criminosos’ – assim cumprindo o papel do ‘outro’, do ‘mau’ e, agora, do ‘inimigo’ – são e sempre serão necessária e preferencialmente selecionados dentre os mais vulneráveis, pobres, marginalizados, não brancos, excluídos e desprovidos de poder. Como há muito assinala Zaffaroni (1991), o sistema penal opera como uma epidemia, preferencialmente atingindo aqueles que têm baixas defesas.
O interior das prisões em todo o mundo não deixa dúvida quanto aos alvos preferenciais do sistema penal, não obstante a notável expansão, pelo menos desde a década de 1980, do chamado direito penal econômico e a ampla criminalização de condutas dirigidas contra bens jurídicos coletivos ou institucionais; não obstante as novas ênfases na violência de gênero, nos danos ambientais, na corrupção política, nos desvios corporativos e outros crimes de colarinho branco.
Vejam-se, por exemplo, exemplos vindos de três diferentes continentes: nos Estados Unidos da América, o altíssimo índice de 700 presos por 100.000 habitantes sobe para 4.700 por 100.000 habitantes, quando se consideram apenas os homens afro-americanos. Na Austrália, os aborígenes são 27% da população carcerária, não obstante sejam somente 2% da população nacional daquele país. Na Hungria, cerca de 40% dos presos são ciganos, embora estes sejam apenas 6% da população nacional daquele país (Jacobson et al, 2017).
Certamente, não seria razoável supor que um atributo negativo, como é o status de ‘criminoso’, pudesse ser preferencialmente distribuído entre os poderosos.
Com efeito, o sistema penal não se destina a alcançar ricos ou quaisquer outros poderosos. Eventualmente, alguns podem ser sacrificados (normalmente, quando não são mais tão poderosos). Tal sacrifício, no entanto, não tem maiores repercussões no regular funcionamento do sistema penal. Punir um rico, um opressor, um político, alguém aparente ou realmente poderoso, não muda o perfil geral da ‘clientela’ preferencial e cotidiana do sistema penal. Serve sim para manter as coisas como estão. O raríssimo sacrifício de um ou outro indivíduo real ou aparentemente poderoso apenas fortalece a falsa imagem de uma suposta igualdade do sistema penal, assim ocultando, de modo mais eficiente, seus alvos primordiais e sua funcionalidade para a manutenção e reprodução dos mecanismos de dominação, exclusão e discriminação.
O sistema penal promove a ideia do ‘criminoso’ como o ‘outro’, o ‘mau’ e agora como o ‘inimigo’, assim necessariamente atuando de forma residual, através da seleção de alguns dentre os inúmeros autores de condutas criminalizadas para cumprirem aquele demonizado papel. Assim, facilita a minimização de condutas e fatos não criminalizáveis socialmente mais danosos, como a falta de educação de qualidade, alimentação saudável, atendimento à saúde, moradia confortável, trabalho digno, lazer. Assim, afasta a investigação e o enfrentamento das causas mais profundas de situações, fatos ou comportamentos indesejáveis ou danosos, ao provocar a sensação de que, com a imposição da pena, tudo estará resolvido. Assim, oculta os desvios estruturais, encobrindo-os através da crença em desvios pessoais, o que evidentemente contribui para a perpetuação daquelas situações, fatos ou comportamentos indesejáveis ou danosos.
O sistema penal tampouco alivia as dores de quem sofre perdas causadas por comportamentos de indivíduos que desrespeitam e agridem seus semelhantes. Ao contrário. O sistema penal manipula essas dores para criar e facilitar a aparente legitimação do poder do estado de punir. Manipulando o sofrimento, o sistema penal estimula sentimentos de vingança. Desejos de vingança não trazem paz. Desejos de vingança acabam sendo autodestrutivos. O sistema penal manipula sofrimentos, perpetuando-os e criando novos sofrimentos. A punição apenas adiciona novos danos e dores aos danos e dores causados pelas condutas criminalizadas.
O sistema penal não tem por objetivo evitar a ocorrência de condutas violentas ou quaisquer outras condutas negativas, danosas ou indesejáveis. Isto é apenas parte da enganosa publicidade (Karam, 1993) que permite que tal sistema ainda subsista. Se esse fosse um objetivo verdadeiro, o evidente fracasso na consecução de tal objetivo já teria conduzido à sua abolição. Não fosse a enganosa publicidade que sustenta o sistema penal, seria fácil perceber esse fracasso. Trata-se de um sistema que promete proteger os indivíduos, evitar comportamentos negativos e ameaças, e prover segurança. No entanto, após séculos de funcionamento, esse mesmo sistema busca legitimar sua expansão baseando-se exatamente em um alegado aumento incontrolável, diversificação e maiores perigos advindos da criminalidade. Não há como negar seu fracasso. Aliás, como afirmava Pavarini (2002), se o sistema penal fosse uma empresa privada sua falência já teria sido decretada há muito tempo.
Contrariamente à sua enganosa publicidade, porém, o sistema penal, vale repetir, não se destina a prover proteção, segurança, tranquilidade ou justiça. O sistema penal atua como mera manifestação de poder, servindo unicamente como instrumento de dominação – valioso para diversos tipos de estados; funcional como meio de obter disciplina e controlar os indesejáveis, os vulneráveis, os marginalizados, os desprovidos de poder.
Situações, fatos ou comportamentos negativos, indesejáveis ou danosos não desaparecem com a imposição de penas. Ao contrário. O sistema penal artificialmente unifica condutas de diferentes espécies, ao defini-las como crimes e prover para todas elas a mesma inútil, violenta, danosa e dolorosa reação punitiva. Assim dispensa a investigação das diferentes motivações dos envolvidos em cada espécie de conduta e afasta a possibilidade de diferentes ações para prevenir ou tentar impedir que tais condutas negativas se realizem.
Argumenta-se que as leis penais criminalizadoras têm uma natureza simbólica e uma função comunicadora de que determinadas condutas não são socialmente aceitáveis ou são publicamente condenáveis. Essa é uma das razões pelas quais é tão fácil para políticos e legisladores se valerem de leis penais para alegadamente demonstrarem que estão enfrentando males ou problemas sociais. Ao criminalizarem uma conduta, políticos e legisladores podem confortavelmente ‘vender’ a ideia de que estão ‘resolvendo’ o problema (ou o mal social) e que a situação está sob controle, o que os dispensa de adotar enfoques construtivos e promover ações positivas – sociais, econômicas e políticas – que possam efetivamente enfrentar, controlar ou transformar a situação indesejada.
Leis simbólicas ou quaisquer outras manifestações simbólicas – como o adjetivo ‘simbólico’ explicita em seu próprio significado – não têm, no entanto, efeitos reais. Leis simbólicas não tocam nas origens, nas estruturas e nos mecanismos produtores de qualquer problema social (ou mal social). Quem verdadeiramente deseja fazer com que os direitos humanos sejam efetivados não pode se valer de leis e/ou políticas simbólicas, especialmente quando tais leis ou políticas causam violência, privação da liberdade, sofrimento, danos e violações aos próprios direitos humanos fundamentais.
Ativistas e organizações voltadas para a efetivação dos direitos humanos não devem, portanto, se valer de meramente simbólicas e realmente danosas intervenções do sistema penal. A enganosa ideia, extraída de uma distorcida leitura das declarações internacionais de direitos humanos e constituições democrática, a propagandear a paradoxal existência de supostas obrigações criminalizadoras dali decorrentes (Karam, 2015b), fortalece a legitimação aparente do sistema penal, alimentando ilusões sobre as supostas justiça e igualdade de tal sistema, quando, ao contrário, este se baseia na violência, na imposição de sofrimento, na desigualdade, na discriminação, na exclusão.
Essa distorcida leitura contribui decisivamente para ocultar a função real do sistema penal, enquanto um dos mais poderosos instrumentos de manutenção e reprodução de estruturas dominantes e desiguais. Abraçando a ‘perspectiva perpetrador/vítima’ (Gehi, 2012), reforçando o poder punitivo e suas práticas focalizadas em desvios pessoais de apontados ‘criminosos’, essa distorcida leitura obstaculiza os esforços para a promoção de remédios sistemáticos destinados a enfrentar as situações produtoras de discriminação e opressão, assim impedindo ou, no mínimo, retardando o reconhecimento e a plena realização dos direitos humanos fundamentais.
Enquanto ainda subsistente o violento, danoso e doloroso poder punitivo; enquanto ainda presentes as intervenções do sistema penal a sistemática e crescentemente violar direitos humanos fundamentais, a atuação dos ativistas e organizações voltadas para a efetivação desses direitos há de estar longe de legitimar e se valer desse sistema. Sua atuação há de, ao contrário, repelir a violência e os demais danos por este causados; conter sua expansão; defender os direitos humanos fundamentais de todos os indivíduos em quaisquer circunstâncias; reafirmar os valores de liberdade, solidariedade, tolerância e compaixão; lutar pela efetiva primazia dos princípios garantidores assentados nas declarações de direitos e constituições democráticas, de modo a proteger cada indivíduo ameaçado pelo exercício do poder punitivo.
Criminalizações, quaisquer que sejam seus alvos, jamais poderão contribuir para o reconhecimento e a garantia dos direitos humanos fundamentais, tampouco podendo contribuir para a superação de preconceitos, discriminações ou quaisquer outras espécies de opressão, até porque desigualdades, preconceitos, discriminações e opressões estão na base da própria ideia de punição exemplificativa, que informa e sustenta o sistema penal.
* É juíza aposentada do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e crítica do poder punitivo
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REFERÊNCIAS
Gehi, P. (2012). “Gendered (in)security: migration and criminalization in the security state”, in Harvard Journal of Law & Gender, vol.35: 2.
Jacobson, J. et al. (2017). Prison: Evidence of its use and over-use from around the world. Institute for Criminal Policy Research. Disponível em: http://www.prisonstudies.org/news/new-icpr-report-describes-vast-disparities-use-imprisonment-10-countries-around-world (acesso em 10/08/2017).
Karam, M.L. (2015a). Legalização das drogas. Coleção Para Entender Direito (coordenação de Márcio Sotelo Felippe e Marcelo Semer). São Paulo: Estúdio Editores.
___________ (2015b). Os paradoxais desejos punitivos de ativistas e movimentos feministas, in Justificando. Disponível em:
http://justificando.com/2015/03/13/os-paradoxais-desejos-punitivos-de-ativistas-e-movimentos-feministas/ (acesso em 10/08/2017).
____________ (1993). De Crimes, Penas e Fantasias. Niterói: Ed. Luam, 2ª ed.
Pavarini, M. (2002). “Il grottesco della penologia contemporanea”. in: Curi U.; Palombarini G. Diritto penale minimo, Roma: Donzelli Editore.
Zaffaroni, E.R. (1991) “El sistema penal en los países de América Latina,” in Sistema penal para o terceiro milênio, ed. João Marcello de Araújo Junior. Rio de Janeiro: Ed. Revan.
Zaffaroni, E.R.; Alagia, A.; Slokar, A. (2000). Derecho Penal – Parte General. Buenos Aires: Ediar.