Pela primeira vez uma mulher amazonense assumiu a secretaria nacional da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS (RNP+Brasil). Vanessa Campos, 47 anos, foi escolhida para ocupar a Secretaria Nacional de Informação e Comunicação na última eleição ocorrida em setembro de 2019. Com um histórico de atuação nos movimentos feministas, e em defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, Vanessa sabe bem o que é ser uma mulher vivendo com o HIV. Ela contraiu o vírus em 1990, aos 17 anos, do primeiro namorado — que posteriormente veio a falecer em decorrência da AIDS. Numa época em que o tratamento era ainda insipiente, a jovem teve que enfrentar com garra e coragem a discriminação e o estigma associados a doença . Foi assim que realizou os sonhos e fez valer os direitos das mulheres soropositivas como o de se relacionar afetivamente, ter uma carreira, família e filhos.
“É muito triste a gente ver que não é coisa do passado os direitos sexuais e reprodutivos serem negados às mulheres soropositivas. É muito cruel e precisamos falar sobre isso, visibilizar isso”, conta. É a partir dessa trajetória que Campos traz um olhar sensível à questões ainda invisibilizadas no movimento AIDS. Um delas já é pauta para o biênio 2019-2021 na RNP+Brasil: a ampliação da Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) para mulheres cis. Na entrevista a seguir, Vanessa conta um pouco da história da RNP+Brasil e de como a pasta está estruturada. Ela também fala sobre as principais metas e desafios da nova gestão e do contexto atual da epidemia de HIV/AIDS no país, em meio ao conservadorismo politico e religiosos que avança sobre as questões do gênero e sexualidade e as politicas neoliberais de desmonte do SUS e da Saúde Publica que comprometem gravemente a política de AIDS.
A RNP+Brasil atua como um importante instrumento de representação e articulação social. Criada em 1995, tem como objetivo promover a saúde, os direitos e a qualidade de vida das pessoas vivendo com HIV/AIDS (PVHA) no Brasil. A atuação inclui desde estratégias de advocacy em politicas públicas, com representações no Conselho Nacional de Saúde e outros espaços de deliberação nacionais e internacionais que tratam da temática do HIV/AIDS, até ações de acolhimento e fortalecimento da autoestima das PVHA e o enfrentamento do estigma e do preconceito. Estes últimos, na contramão dos avanços da medicina que estenderam e aumentaram a saúde das pessoas vivendo e convivendo com o vírus, pouco diminuiu ao longo dos últimos 40 anos de epidemia. Leia a entrevista a seguir:
ABIA – Fale brevemente sobre a história da RNP+Brasil, quando e por que foi fundada.
VANESSA CAMPOS – Para compreender a historia da RNP, é preciso conhecer a história da AIDS no Brasil. No período mais ou menos de 1992-1989, a sobrevida (como era chamado) dos pacientes com AIDS no Brasil era muito baixa. As pessoas diagnosticadas rapidamente entravam em uma situação muito precária e iam a óbito. Mais ou menos 50% das pessoas com AIDS morriam em menos 6 meses. Era um período muito critico da epidemia e pouco sabia-se sobre a doença, a medicina estava impotente diante deste número de mortes que era cada vez maior, E em 1989 quando descobriram a Zidovudina, conhecido como o AZT que se mostrou ate eficaz no inicio, mas não alterava muito esse tempo de sobrevivência. Alguns anos depois surgiram novos antirretrovirais que foram aumentando, de forma discreta, a sobrevida dessas pessoas, o que era chamado de terapia dupla. E em 1996 surgiu a resposta terapêutica dos antirretrovirais de alta potencia, o que foi um divisor de águas para todos nós porque a AIDS passou a ser tratada, com uma sobrevivência e uma preservação da qualidade de vida. E foi nesse contexto que em 1995 garantiu-se ao cesso universal ao antirretroviral e em 1996 diante desse resultado muito bom do coquetel, que foram garantidos pela lei federal 9.313 . Nesse contexto durante a realização do V Encontro Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS, o“Vivendo”, realizado pelo Grupo Pela Vidda Rio e Niterói, um grupo de mais ou menos 10 pessoas vivendo com HIV e AIDS se reuniram e resolveram criar essa Rede Nacional de Pessoas vivendo com HIV e AIDS, seguindo o modelo da GNP+ (Rede Mundial de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS)
Em 1997 no Encontro Nacional de ONGs AIDS (ENONG), em Brasília, 65 pessoas vivendo com HIV/AIDS (PVHA) protocolaram os objetivos principais, e foram realizados 5 encontros regionais em cada região do Brasil (entre 1997 e 1998). Também em 1998 aconteceu a primeira reunião dos representantes estaduais e secretários nacionais e ali foi apresentado um programa mínimo que visava a qualidade de vida das PVHA no Brasil. O objetivos desses encontros eram a aglutinação de pessoas soropositivas para o próprio fortalecimento dessas pessoas em todo o território nacional e também o inicio de uma capacitação politica, técnica e também solitária para a formação de novas lideranças para atuarem em suas regiões junto ao governos e em suas comunidades , como uma capacitação mesmo.
E dai aconteceram os desdobramentos através de encontros estaduais e municipais. Houve uma segunda versão desse projeto financiado pela Coordenação Nacional de HIV/AIDS Ministério da Saúde, que foi o segundo encontro da RNP+ Brasil, e dai foram se seguindo vários encontros e reuniões pelo pais dos núcleos da RNP. Alguns deles se institucionalizaram juridicamente, outros continuaram a funcionar informalmente, de forma independente da proteção das OSCs ligadas à AIDS. Até que em 2003 foi feita a primeira reunião de núcleos da RNP onde a rede passou a oficialmente se denominar RNP + Brasil. Foram eleitos os novos representantes regionais e uma secretaria nacional, constituindo um colegiado nacional da RNP+Brasil. Nesse mesmo ano durante, o ENONG de São Paulo também foi eleitos representantes da RNP mais pra Comissão Nacional de DST, Aids e Hepatites Virais (CNAIDS) e para a Comissão de Articulação com os Movimentos Sociais (CAMS). Em 2004, Durante os Congressos Brasileiros de DST/AIDS foi eleito o secretario nacional da RNP + Brasil e ficou decidida a realização de encontros de caráter nacional.
ABIA – De que maneira a rede tem atuado hoje no enfrentamento da epidemia de AIDS no Brasil?
CAMPOS – Atualmente a RNP+ Brasil possui núcleos jurídicos ou informais em todos os estados da federação, é reconhecidamente um parceiro importante nas ações de enfrentamento da epidemia de HIV/AIDS no país junto ao gestores das 3 esferas do governo. Também vem comprovando, através de seus membros mais atuantes, um conhecimento da legislação que rege as politicas publicas do pais bem como das ações que dizer respeito ao tema das ISTS/AIDS. A rede tem sido convidada a fazer parcerias com gestores na elaboração de planos de ações e metas e políticas de incentivo e aprovação dos mesmo nos conselhos municipais e estaduais. Estamos também dentro do CNS, nosso representante lá é o Jair Brandão como suplente de Moyses Toniolo, que esta lá pela ANAIDS.
Participamos ativamente do movimento nacional de luta contra a AIDS junto com outras redes, fóruns e parceiros. Temos entre nossos membros conselheiros municipais e estaduais de saúde que estão sempre atentos, não só para as questões que envolvem o HIV/AIDS mas a saúde como um todo, e outras patologias na defesa do SUS. Possuímos assentos nas principais comissões nacionais e internacionais que tratam da temática do HIV/AIDS, a CNAIDS, CAMS, o GT UNAIDS, o Comitê de Vacinas entre outros ocasionalmente criados pelo Departamento como por exemplo o GT de Assistência Farmacêutica e Prevenção Posithiva
E o maior desafio da RNP+ Brasil hoje se resume a identificar junto a seus membros como cada um, de acordo com suas possibilidades, contribuir para as politicas publicas de saúde em especial pela epidemia de HIV/AIDS. E essa contribuição pode se dar de varias formas. Pode ser no âmbito familiar, no âmbito local junto à comunidade, em espaços de maior visibilidade também, inclusive nas redes sociais, a visibilidade positiva é muito importante que a gente se aproprie dessas ferramentas virtuais para ter um alcance maior. As pessoas com HIV e AIDS podem e devem sonhar e fazer planos e ver que o tratamento e´eficaz. Essas pessoas também devem se apropriar das leis, das relações entre estado, sociedade e individual e demonstrar como é possível valer seus direitos e deveres como cidadão. Combatemos esse discurso de culpabilização que a sociedade em geral traz em seu senso comum, a culpa de ter adquirido o HIV. Enfim, todas essas formas de trabalhar junto aos membros é o nosso foco por que é isso que a gente acredita, nesse fortalecimento da pessoa PVHA. O que nós temos de valioso dentro da RNP+ Brasil somos nós mesmos, os membros.
ABIA – Vocês incentivam a visibilidade posithiva?
CAMPOS – Nessa questão da visibilidade posithiva, entendemos que cada um tem seu tempo, seu contexto de vida, mas buscamos apoiar aqueles membros que se sentem prontos e dispostos a fazer esse enfrentamento ao ter sua sorologia publica, tanto no intuito de combater o estigma, o preconceito e a discriminação que nessas 4 décadas da epidemia de HIV/AIDS no mundo não mudou. A gente sabe que o tratamento avançou, a biomedicalizaçao está aí, temos tantas estratégias inclusive de prevenção, mas o estigma, o preconceito e a discriminação continuam e entendemos que precisamos visibilizar tudo isso. Nosso silêncio é igual a morte. A gente tem um lema, dizendo inclusive em todas as nossas logos que é “Antes nos escondíamos para morrer, hoje nos mostramos para viver”. O objetivo da RNP+ Brasil é a promoção do fortalecimento das pessoas sorologicamente positivas para o HIV independente do gênero orientação sexual, raça/cor, etnia, religião e nacionalidade. Pretendemos proporcionar a essas pessoas essa chance de se encontrar, tomar atitudes frente a sua condição sorológica, encontrar táticas nas quais elas se desenvolvam como indivíduos. Combater o isolamento e a inercia, promover a troca de informações e experiências, enfim, melhorar a qualidade de vida de quem vive com HIV/AIDS.
ABIA – Você ofereceu um panorama geral da historia da rede e dos desafios que vocês encontram, mas pode falar mais especificamente sobre como vocês enxergam hoje o cenário da AIDS no país?
CAMPOS – Esse cenário da resposta a AIDS no Brasil nos chega de forma muito tenebrosa porque o momento politico que vivenciamos com esse conservadorismo instalado e apoiado pelo fundamentalismo religioso é um tremendo retrocesso dentro de tudo que temos buscado trabalhar a questão de levar informação, a promoção da saúde e a prevenção. A gente entende que essas barreiras principalmente quando se fala das questões de genro e quando se fala de sexualidade coma juventude e vem muito bloqueado nas escolas. Então quando a gente tem um governo que diz que quem tem que fazer esse trabalho é a família e não a escola, num cenário em que a população jovem confirma altos índices de novos diagnósticos, então como acessar essa juventude, levar informação se temos um governo que preconiza esse tipo de opinião tão conservadora? É um desafio muito grande.
Fora isso é um governo que também criminaliza as ONGs, redes e movimentos sociais como um todo. A RNP+ Brasil assim como todo o movimento AIDS, acredita que vivemos um momento de muita resistência e esse governo iniciou dando claros sinais de desmontes da política de AIDS no Brasil, com a própria extinção do departamento de AIDS transformado numa simples coordenação sem a autonomia que o departamento tinha anteriormente… Coisas que realmente mostram o quanto precisaremos resistir muito firmes diante de tudo isso
ABIA – Qual a importância de participar de uma rede com o perfil da RNP?
CAMPOS – É muito importante nesse momento de tantas dificuldades que o país enfrenta que os núcleos e as pessoas se associem a rede. Nós temos o cadastro online de membros e associados e também o cadastro sociométrico, inclusive neste último encontro nacional da RNP+BRASIL foi lançada a pesquisa sóciométrica da RNP+ Brasil. Por meio desses instrumentos, traçou-se o perfil de violência e discriminação que os nosso membros sofrem na sociedade. É importante que as pessoas se cadastrem, participem dos encontros, pessoalmente, para que possam estar trocando informações, apoiando-se mutuamente, porque essa é nossa maior força que localmente possamos nos reunir e nos fortalecer, para que possamos continuar fazendo nossas vozes serem ouvidas.
ABIA – Como as pessoas podem se associar à rede?
CAMPOS – Em nossa página da RNP+ Brasil no Facebook, há uma postagem fixada com o link para as pessoas se cadastrarem. O cadastro é todo online. Muitas pessoas também chegam até nos na rede através de parceria com os serviços de saúde. Aqui no Amazonas, pela qual eu estou como representante no estado, temos essa parceria com as assistentes sociais que atuam no hospital de referencia no ambulatório. Há pessoas que também entram em contato conosco pela Whatsapp e nós a inserimos nos grupos. Fazemos também os encontros presenciais mensais para oferecer ajuda mútua. Quem tem dificuldade de acesso a internet, aqui no Amazonas nós ajudamos, através do nossos próprios computadores, nos abrimos a ficha de cadastro, ajudamos a pessoa a preencher ali os dados.
ABIA – Você pode explicar um pouco o processo eleitoral da RNP+? Quais foram os postos eleitos, como é a estrutura organizacional da rede e como funcionam as frentes e representações (CNAIDS, CAM, REDLAM+)….
CAMPOS – A cada dois anos durante os encontros nacionais, acontece essa renovação dos representantes estaduais e também da secretaria nacional. Nossa estrutura organizacional é da seguinte forma: três secretários nacionais: Eu, Vanessa Campos, atual secretaria nacional de informação e comunicação; Jair Brandao, secretario nacional de articulação politica e Alisson Barreto, secretario executivo. E mais os representantes regionais: Região Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste. E ai também foram eleitos representantes da comissão de articulação com movimentos sociais (CAMES) e também representante da Comissão de HIV/AIDS e Hepatites Virais (CNAIDS). Posso te passar tudo.
ABIA – Quantos membros a rede possui atualmente?
CAMPOS – Contando com os cadastros de 2017 e 2018, temos cerca de 800 membros, levando em consideração que muitas pessoas ainda têm dificuldade de acesso à internet né? Nessa pesquisa mesmo sóciométrica da RNP+Brasil, 30% das pessoas que responderam disseram ter muita dificuldade de acesso da internet. Esse cadastro estava fechado e final e agosto desse ano, foi aberto e continuara ate 31 de dezembro, que é quando será fechado para fazermos um levantamento. Quem faz isso é a RNP+ São Paulo, através do seu representante estadual e é muito importante fazer esse balanceamento para manter uma organização.
ABIA – Quais os principais desafios que a nova gestão visualiza no contexto atual da epidemia de AIDS no Brasil? Quais os principais planos e metas?
CAMPOS – As diretrizes da secretaria para esse novo biênio 2019-202a já foram todas pautadas no nosso encontro nacional. Esse relatório esta em fase final de conclusão e estamos já com uma programação de nos reunirmos, os três secretários nacionais, eu, Jair Brandão e Alisson Barreto para fazer todo um esquema de trabalho, um direcionamento em cima desse relatório final. Mas com certeza mediante tudo que foi aprovado no nosso encontro precisamos fortalecer a ampliação da PrEP (Profilaxia Pré-Exposição) como uma ferramenta potente de prevenção, fortalecer os núcleos municipais e estaduais para enfrentar a descentralização do tratamento para as unidades básicas de saúde de forma irresponsável e desordenada que não atendem as necessidades das PVHA. Queremos também cobrar das três instancias governamentais um fortalecimento dos serviços de atendimento especializados SAES, Outro desafio é massificar informações para que tanto presencialmente quanto virtualmente. Criamos um instagram, estamos também atualizando o twitter e trabalhando essas plataformas de forma mais intensificada.
Também nessa questão da PrEP, entendemos que as mulheres CIS precisam ser mais amplamente contempladas por conta das muitas vulnerabilizações que a mulher vive nessa sociedade estruturalmente machista então que a PrEP seja uma ferramenta para as mulheres cis de prevenção e acesso facilitado. ntendendo que a PrEP também pode ser uma ferramenta poderosa também na prevenção da transmissão vertical. Já temos muito conhecimento de em varias localidades de mulheres que durante o pré natal ate a hora do parto eram HIV-negativo, mas depois, durante o aleitamento materno essas mulheres adquiriram HIV e o vírus foi transmitido para os seus filhos pelo aleitamento. Lembrando que esses métodos de prevenção são uma forma de empoderar as mulheres e reafirmar a sua autonomia e os seus direitos, sexuais, reprodutivos. As que vivem com HIV e as que não vivem com HIV.
ABIA – Você disse que as mulheres muitas vezes são invisibilizadas tanto no campo social, quanto biomédico e estrutural do HIV/AIDS. Você integra o Movimento das Cidadãs Posithivas e tem uma trajetória no ativismo de HIV/AIDS com relação às mulheres e o HIV. Qual a importância em sua opinião em termos uma mulher ativista na Secretaria da RNP+Brasil? Qual olhar que você pretende trazer para a a Rede?
CAMPOS – Então essa questão de lutar pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres vivendo com HIV/AIDS é fundamental na minha vida, por que foi tudo que eu fiz, a minha vida toda. Eu era uma adolescente quando adquiri HIV, eu tinha 17 anos, através do meu primeiro parceiro sexual, meu namorado. Eu me relacionei com ele durante dois anos, mas logo nas primeiras relações sexuais que tivemos no mais tardar um mês e meio após nossas primeiras relações eu tive a crise aguda do HIV que foi exatamente na primeira semana de janeiro de 1990. E eu não sabia que era o HIV porque na época me testaram para um monte de coisa, menos para o HIV. Só fui descobrir em 1992, março de 1992 quando ele morreu de AIDS. Eu já estava com HVI desde janeiro de 90 e não sabia e nem ele sabia. Então você imagina uma adolescente de 17 anos que já estava com o vírus ali no seu corpo… Hoje eu tenho 47 anos, ou seja, quase 30 anos vivendo com o vírus e toda a minha vida lutando para ter direito a me relacionar, para ter direito a ter a família que desde a minha adolescência eu já queria ter esses filhos que eu tive. E não foi fácil lutar por isso porque a AIDS é uma sentença de morte, e ainda hoje socialmente, por causa do preconceito do estigma da discriminação, ela continua uma sentença de morte social e é isso o que a gente não quer. A gente quer lutar para que possamos homens, mulheres, criança viver em sociedade com os nossos direitos resguardados.
E aí quando a gente faz o recorte, dentro do boletim epidemiológico, esta muito claro lá que as mulheres, e especificamente as mulheres negras desses pais, são as que mais morrem de AIDS a gente entende o quanto as mulheres são vulnerabilizadas nessa sociedade pelo machismo estrutural, pelo racismo posto, esse olhar de que as mulheres estão vulnerabilizadas sim e essa é uma pauta de todos e todas nós.
As violências obstétricas que nós sofremos desde sempre já são gritantes e quando se fala em mulher vivendo com HIV/AIDS é uma coisa surreal. Então é muito triste a gente ver que não é coisa do passado esses direitos sexuais e reprodutivos serem negados às mulheres soropositivas. É muito cruel e precisamos falar sobre isso, visibilizar isso. E nada mais justo que a RNP trabalhe essa questão. E mais uma vez falando também da PrEP como estratégia de prevenção para todas as mulheres.
ABIA – Recentemente, a rede lançou o levantamento “Estigma e descriminação em PVHA”, que traz a perspectivas dos membros da RNP+, de autoria do Paulo Giacomini, Qual a relevância desse material para a sociedade civil? Quais os fatores que colaboram para o aumento do estigma e da discriminação? Como a sociedade civil organizada e o Estado podem agir para combate-los?
CAMPOS – Os dados que foram analisados nessa pesquisa chamaram a nossa atenção, particularmente, os dados de violência física, foram os que mais nos surpreenderam. Houve uma proporção significativa das pessoas que responderam dizendo ter vivido situação de discriminação e violência (62% ) e de terem sido discriminadas em função do HIV (45%). Outra coisa que também chamou muito atenção é que não houve uma distribuição heterogênea persistentes que afetaram alguma categoria especial, falando em outras palavras o estudo não identificou entre as PVHA, populações mais vulneráveis à violência a discriminação em geral a discriminação relacionada ao HIV em particular para os recortes que foram analisados na pesquisa. Nós notamos uma tendência de crescimento da violência e discriminação relacionado a alguns pertencimentos religiosos das PVHA . A pesquisa revelar que, neste contexto conservador apoiado pelo fundamentalismo religioso, as pessoas de pertencimento religioso como o candomblé, a umbanda, as religiões de matrizes africanas, e o ateísmo, passaram por mais violências físicas. E mostra o enfrentamento que vamos ter nesse cenário politico atual. Isso nos faz notar também taxas superiores de discriminação do HIV associada ao conhecimento da sorologia em ambientes públicos como escola, trabalho, entre outros. Por isso as pessoas ate hoje relutam muito em falar no trabalho, com amigos e família, a sua sorologia por conta deste ambiente hostil.
A pesquisa gerou evidencias e informações que permitem a construção de uma ferramenta que mensure o grau de estigma e discriminação a que as pessoas vivendo com HIV e AIDS estão submetidas. Hoje temos algo concreto, com dados que comprovam esses fatores. Até então tínhamos relatos que para gestão publica, não passavam de falas. Agora temos essa ferramenta poderosa para promover ações de advocacy e exigir politicas públicas que tratem dessas questões evidenciadas nessa pesquisa. É preciso fazer o enfrentamento para este ciclo que se cria por conta do estigma, dos preconceitos e da discriminação e que afastam as pessoas da testagem, do tratamento e dos serviços de saúde, além de impedir que as pessoas tenham acesso ao tratamento e muito antes disso á prevenção e a promoção da saúde.
ABIA – Qual o recado para as pessoas que vivem com HIV? E em especial para as mulheres que vivem com HIV?
CAMPOS – Quando penso nesses anos todos de vida, até parece repetitivo, mas a palavra resistência me acompanha. Enquanto pessoa vivendo com HIV/AIDS, enquanto mulher vivendo com HIV/AIDS, meu lema de vida foi resistir por nenhum direito a menos, e hoje não é diferente. Lá no início de 1990, era resistir e acreditar, já que não havia tratamento pra nós. Hoje eu continuo dizendo o mesmo, resistir e acreditar por que apesar de termos o tratamento, precisamos resistir para continuar tendo acesso. Mas não somente tratamento, por que nós não somos um vírus, nós somos pessoas. Cada um, de nós somos “alguém” e precisamos resistir para sermos olhados não como um vírus que precisa ser tratado, mas como pessoas, homens e mulheres que devem ter os direitos respeitados, a nossa dignidade respeitada e preservada. E não podemos descansar. Tudo o que nós conquistamos nesses anos de epidemia de AIDS não podemos perder agora. Então precisamos estar de sentinela, agora e sempre. Porque assim como outros antes de mim, antes de eu estar nesse movimento de luta, já estavam de sentinela e resistindo para que hoje eu possa estar aqui, que eu também esteja resistindo para que lá na frente eu e outras pessoas também possamos colher os frutos dessa luta.
Reportagem: Maria Lucia Meira (estagiária)
Edição e supervisão: Angelica Basthi
Foto: Arquivo Pessoal