Neste Dia Mundial da Saúde – celebrados em 07/04/2020 – e em tempos da COVID-19, a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) vem a público lembrar que o vírus da imunodeficiência humana (causador da AIDS) – que até agora matou 38 milhões de pessoas no mundo – oferece alguns alertas necessários e emergenciais para garantirmos a saúde global.
Há diferenças e semelhanças importantes entre estas duas grandes pandemias. A AIDS foi considerada a primeira pandemia do século XX numa época em que a saúde internacional foi reclassificada como “saúde global”. Naquela ocasião, pela primeira vez, as condições associadas à globalização econômica e social reorganizavam o modo em que as ameaças mundiais afetariam as questões de saúde nos diversos países. Hoje, a COVID-19, sob condições similares, avança rapidamente no planeta. Por isso, um passo fundamental e urgente é identificar tanto as diferenças significativas entre as duas pandemias quanto os pontos em comum.
É certo, por exemplo, que os vírus são diferentes e possuem modos de transmissão distintos: o HIV é um vírus transmitido unicamente por meio de fluidos corporais (sangue, sêmen e leite materno). Já a COVID-19 é transmitida via toque, superfícies compartilhadas, gotículas respiratórias e contato casual. Isso tem explicado a velocidade da disseminação da infecção da COVID-19, bem diferente da disseminação do HIV. Também é certo que o HIV e a COVID-19 atuam de formas distintas no corpo humano: um vírus respiratório como o novo coronavírus, infecta o corpo humano e, em geral, após algum tratamento, a pessoa vai conseguir eliminá-lo. Já um retrovírus como o HIV pode ser controlado, mas ainda não é eliminado do corpo físico.
A existência do tratamento é outra diferença significativa. No caso do HIV, depois do desenvolvimento de tratamentos antirretrovirais eficazes no final dos anos 1990 – para quem tem acesso a estes tratamentos – além de ter uma vida normal, adquire uma carga viral indetectável. Isto significa que a carga viral é tão baixa que não transmite mais o vírus para outras pessoas. Já no caso do novo coronavírus ainda não surgiu seja um medicamento e/ou vacina que possa contê-lo. A infecção tem sido tratada com medicamentos possíveis para alguns dos seus sintomas.
Há pontos em comum que também devem ser observados. Enquanto o HIV é disseminado de forma relativamente devagar quando comparado à COVID-19, conforme pontuado acima, a sua trajetória pelo mundo também seguiu rotas determinadas pelo movimento populacional, e isto numa época caracterizada pelo maior índice de migração humana experimentado pela humanidade em tempos de globalização intensa. Esta semelhança cria um nexo importante entre as pandemias, com destaque para as questões de desigualdade social – que já foram identificadas como determinantes fundamentais na epidemiologia do HIV e da AIDS – e que emergem de forma cada vez mais nítida nestes tempos da COVID-19.
Isto nos leva a outro ponto em comum: as primeiras reações sociais face às duas pandemias foram marcadas fortemente pelo estigma, pela discriminação e pela negação. Enquanto o HIV foi chamado de praga “africana” e “haitiana”, a COVID-19 tem sido classificada de “vírus chinês”, o que tem servido para alimentar o preconceito e ações de discriminação de asiáticos em vários países.
Ainda no caso da AIDS, as manifestações de estigma e discriminação estiveram diretamente ligadas às questões da sexualidade não-normativa (homossexualidade, prostituição, etc.), ao uso de drogas injetáveis e a outras formas de comportamento usadas para justificar a vulnerabilidade dos grupos mais afetados e culpá-los por isso.
Já no caso da COVID-19, pela natureza da sua transmissão, o problema da não normatividade tem se apresentado de forma diferente. Rapidamente ficou visível a importância de certas características de desvantagem social: ser uma pessoa idosa, especialmente quando associada a condições crônicas (como hipertensão ou diabetes) e à falta de práticas ou comportamentos vistos como ‘saudáveis’ (dieta e exercícios adequados), foi logo identificado como um fator importante para a construção da vulnerabilidade deste grupo diante da nova pandemia. Na mesma velocidade, foi produzida uma dinâmica em que uma suposta maioria mais jovem e “saudável” sente-se ameaçada por uma minoria de idosos classificada como irresponsável e perigosa. É neste lugar “da maioria ameaçada por uma minoria irresponsável e perigosa” que se constrói o nexo entre estigma e discriminação de um lado e a negação do outro.
A negação é, portanto, outro ponto que merece atenção. No caso da AIDS, a reação inicial da maioria dos governantes, em quase todos os países, foi de negar a presença de comportamentos e grupos visto como responsáveis pelo risco de transmissão do HIV. O resultado desta negação foi a demora significativa de construir respostas para prevenção e assistência. A negação gerou a omissão, e foi necessário desenvolver uma luta durante décadas (e ainda em curso, 40 anos depois) para mobilizar as sociedades a agir contra a pandemia de HIV e AIDS.
Na COVID-19, também vimos uma negação inicial na maioria dos países – começando pela China, e reproduzida em quase todas as nações – o que provocou a perda de um tempo precioso para a mobilização de respostas tanto na saúde pública quanto no campo da economia e do seguro social. Mas a velocidade da transmissão do vírus SARS-CoV-2 rapidamente sacodiu as lideranças políticas em muitos países. Infelizmente, a negação apareceu com destaque no discurso das políticas populistas, especialmente, as comandadas pela direita, como nos casos de Trump, nos Estados Unidos, e Bolsonaro, no Brasil.
A ideia da construção de uma “gripezinha” que iria matar algumas poucas pessoas “fracas” e unicamente responsáveis por suas condições de vulnerabilidade (doenças crônicas que elas mesmas são supostamente culpadas por terem adquirido) permeou o discurso desses líderes em seus países e chocou o mundo. Muitos têm revisto a sua postura diante do avanço da COVID-19 em seus territórios, com exceção de Bolsonaro, que permanece espalhando desinformação e ignorância para atender única e exclusivamente os interesses econômicos de uma elite privilegiada no Brasil.
Fora isso, é um equívoco identificar doenças crônicas como a hipertensão e a diabetes como simples doenças comportamentais, já que são resultados de problemas estruturais reforçados pela globalização. Afinal, as mudanças de dietas e o próprio sedentarismo promovido e/ou reforçado pelas indústrias de alimentos, bebida, fumo/tabaco também se globalizaram ao longo do século XX.
Por tudo isso, é certo que a nossa capacidade de enfrentar o novo coronavírus depende, acima de tudo, da construção de uma resposta com base nos princípios éticos e políticos dos direitos humanos. Para avançar no enfrentamento da AIDS, foi necessário superar a negação, desmistificar o medo e criar medidas para enfrentar a tendência de culpabilizar as pessoas e os grupos vulneráveis, vistos erroneamente como responsáveis pela disseminação da epidemia.
Também na AIDS, construímos laços de solidariedade e políticas de apoio capazes de combater o estigma e a discriminação. Fizemos isto em meio a um verdadeiro tsunami de medo e morte que dominava as pessoas no início da pandemia e sem nenhuma perspectiva de melhora no curto prazo.
Neste sentido, o momento que estamos enfrentando com a COVID-19 é muito parecido com o início da pandemia da AIDS. Neste Dia Mundial da Saúde, a ABIA reforça ser imprescindível reconhecer que estas duas pandemias ilustram os grandes desafios que mobilizam a luta pela saúde global em nossa época.
As implicações da AIDS nos deixam lições significativas. A principal delas é o vínculo entre a saúde coletiva, a solidariedade e os direitos humanos. O mundo não precisa de uma guerra contra o COVID-19 nem de outras representações bélicas, mas sim reaprender a trilhar o caminho da solidariedade. Para nós, da ABIA este vínculo é crucial nesta nova pandemia da COVID-19 e deve pavimentar todo o caminho cujo propósito é salvar vidas.
Rio de Janeiro, 07 de abril de 2020
Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS