A ABIA tem realizado uma série de ações com foco nas demandas das prostitutas brasileiras. Em 2012, em diálogo com Gabriela Leite, definiu atividades relacionadas à prostituição que fazem parte da linha de ação de Direitos, Sexualidade e AIDS, do Observatório Nacional de Políticas de AIDS, atualmente em curso na instituição.
Antes de iniciar a linha de atividades do Observatório, a ABIA realizou várias consultas a organizações de prostitutas e pesquisadoras/ es. O resultado confirmou a existência de demandas a serem enfrentadas no campo da prostituição, tais como a persistência de violações de direitos das pessoas envolvidas com trabalho sexual, sobretudo em decorrência da violência policial; a constatação de que no âmbito de medidas de enfrentamento à violência contra as mulheres, as prostitutas não eram um grupo que recebia atenção necessária, exceto quando “vítimas” do tráfico, além da perda de qualidade na resposta ao HIV e à AIDS.
A partir desta constatação, a ABIA e Davida deliberaram estratégias focadas na produção de conhecimento, debates públicos e advocacy para ações políticas que promovam os direitos humanos e a saúde integral das prostitutas. Essas atividades têm sido realizadas em parceria com Davida, Observatório da Prostituição do Laboratório de Etnografia Urbana do Instituto de Ciências Socias da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LeMetro/IFCS-UFRJ) e Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).
O Relatório Análise de Contextos de Prostituição em Relação a Direitos Humanos, Trabalho, Cultura e Saúde no Brasil (acesse em http://www.sxpolitics.org/pt/wp-content/uploads/2014/03/analise_contexto_abia-davida.pdf), por exemplo, foi um levantamento para mapear o cenário político nacional e internacional realizado em parceria com Davida e Fiocruz e com financiamento do Ministério da Saúde – Departamento de DST/AIDS e Hepatites Virais. A análise confirmou que estavam em declínio as ações sistemáticas e permanentes de prevenção de DST e HIV para profissionais e que persistiam visões limitadas em relação à saúde das prostitutas, que continuavam restritas ao campo das DST/AIDS.
A mudança de perspectiva nas políticas de prevenção ficou nítida com a censura pelo Ministério da Saúde da campanha feita pelo Departamento de DST/AIDS em parceria com lideranças do movimento de prostitutas para o Dia Internacional de Prostitutas, em 2 de junho de 2013. As mensagens que ressaltavam a importância da cidadania denunciavam violência e afirmavam o direito de trabalhar (e feliz) foram retiradas do ar, censuradas e publicadas novamente com mensagens cujo foco exclusivo era o uso da camisinha e a prevenção, sem menção à cidadania e aos direitos.
Foi neste contexto que em 2013, com apoio da Secretaria Estadual de Saúde – Gerência de DST/AIDS, a ABIA realizou um estudo de caso no Rio de Janeiro sobre o acesso de prostitutas aos serviços de saúde e o acesso aos direitos, que incluiu 18 entrevistas com gestores, 30 entrevistas com prostitutas e 19 entrevistas com profissionais de saúde. A pesquisa está na fase final de análise e a previsão para conclusão é novembro deste ano. A análise preliminar dos dados sugere limitações semelhantes às que foram identificadas no estudo, em nível nacional, de 2012: uma ausência de discussão sobre o tema e falta de ações para a população tanto nos serviços de saúde como nas secretarias estaduais (de Saúde, Direitos Humanos, Segurança Pública e Mulheres).
As prostitutas entrevistadas no ano passado informaram que tinham acesso a serviços de saúde públicos e privados e observaram a redução de ações por parte das instituições de saúde pública nas áreas onde elas trabalhavam, quando comparado com o que acontecia antes. A maioria das profissionais do sexo ouvidas busca fazer o teste de HIV de seis em seis meses. E para algumas das mulheres que trabalhavam em casas fechadas, os exames são compulsórios, ou seja, exigidos pela gerência dos estabelecimentos, e podem ser feitos por médicos particulares no local.
Outro projeto desenvolvido pela ABIA em parceria com o Observatório da Prostituição foi um estudo destinado a mapear os efeitos da Copa do Mundo de 2014 em contextos de prostituição. Realizado antes, durante e logo depois da Copa, a equipe dedicou aproximadamente 2 mil horas de pesquisa etnográfica nas principais áreas de prostituição no Rio (Vila Mimosa, Copacabana e o Centro). Os resultados preliminares mostram que – ao contrário do pânico moral insuflado pela mídia e algumas organizações internacionais com relação ao crescimento geométrico da prostituição supostamente motivado pelo“megaevento” – não houve incremento da prostituição no período.
A pesquisa tampouco identificou ações de saúde pública voltadas para a promoção da saúde sexual, incluindo a prevenção do HIV, nos principais pontos de sexo comercial do Rio de Janeiro. Tampouco foram identificadas evidências de que tenha havido uma maior incidência de exploração sexual de crianças e adolescentes ou de tráfico de seres humanos para fins de exploração sexual no período da Copa. Não seria arriscado afirmar que, se houve um caso agudo de violações de direitos humanos vinculado à prostituição, isto não se deu no contexto preciso da Copa do Mundo, mas no momento da invasão ilegal, em 23 de maio deste ano, de um prédio onde trabalhavam quase 400 prostitutas na cidade Niterói. Participaram dessa ação policial mais de 100 policiais civis de 13 delegacias e, no curso da operação, mulheres foram roubadas e vítimas de violência física e sexual.
Os estudos e as discussões realizados pela ABIA, desde 2012, constatam que hoje o debate brasileiro sobre prostituição carece de evidência empírica sólida e da necessária qualificação conceitual. Mais do que no passado recente, o assunto tem sido mais abordado a partir de visões morais e ideológicas que tendem a tornar estreitas as perspectivas e as respostas dos direitos humanos. As políticas formais deixam à sombra as violações cometidas por agentes de segurança pública contra profissionais do sexo. A crescente moralização e ideologização do tema tem imposto limites à construção e à sustentabilidade de respostas adequadas de política pública para as questões de saúde pública, como no caso do HIV e da AIDS.
Saudades, Gabriela Leite
Gabriela Leite partiu em outubro de 2013, deixando o mundo mais pobre de ideias, coragem e garra para viver e resistir. Nascida em São Paulo, estudou sociologia na USP (Universidade de São Paulo) e, no fim dos anos 1970, abandonou tudo para trabalhar na prostituição no eixo São Paulo – Belo Horizonte – Rio de Janeiro. A militância para organizar as prostitutas surgiu em meados da década de 1980 em resposta aos frequentes abusos de direitos humanos vivenciados por suas colegas, incluindo violência, estigma, assédio policial e discriminação nos serviços públicos de saúde. Gabriela nos deixou um legado importante: organizou o 1° Encontro Nacional de Prostitutas no Brasil (1987); fundou o jornal Beijo da rua, sobre prostituição e direitos das prostitutas (1988); criou a ONG Davida, no Rio de Janeiro (1990), lançou a grife Daspu, cujo objetivo era gerar recursos e visibilidade para os direitos das prostitutas (2005) e ainda se tornou a primeira prostituta a se candidatar a uma vaga no Congresso Nacional (2010).
Gabriela foi parceira da ABIA desde os primeiros e árduos momentos da epidemia no Brasil. Ela estava ao lado da instituição nos esforços para alterar as perspectivas que caracterizaram a primeira fase da resposta do Estado à crise, cujo foco exclusivo eram os “grupos de risco e vetores”. Gabriela recusou esta categorização e liderou a luta contra o estigma e em favor dos direitos humanos, dos direitos sexuais e do protagonismo das prostitutas.
Ao longo desses anos, a ABIA, por sua vez, tem contribuído de maneira relevante para manter viva e visível a pauta das prostitutas: seja em relação à resposta ao HIV e à AIDS, seja no que diz respeito à prostituição como um direito sexual ou trabalhista. Hoje, entretanto, essas perspectivas estão sendo atacadas por visões de ordem moral e religiosa, e também estreitas sobre gênero e sexualidade. A ABIA reconhece que, em tempos como este, a Gabriela faz muita falta. Mas a instituição se compromete a contribuir para manter Gabriela sempre presente: seja resistindo, ousando, propondo ou lutando por pautas que garantam o acesso e a igualdade de direitos, com destaque para a saúde integral das prostitutas no Brasil.