Organizações da sociedade civil, incluindo a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), Médicos Sem Fronteiras (MSF), Defensoria Pública da União (DPU), Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e Grupo de Incentivo à Vida (GIV), protocolaram uma denúncia no Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) contra a empresa farmacêutica Gilead Sciences, por abuso de posição dominante em relação ao medicamento sofosbuvir. As entidades pedem a intervenção do Cade para punir infrações cometidas pela empresa farmacêutica. A ação é inédita no órgão por ser a primeira sobre altos preços de medicamentos e também a primeira proposta por grupos de pacientes e consumidores. De acordo com as organizações, preços abusivos cobrados por medicamentos compostos por sofosbuvir têm impedido que milhares de pessoas tenham acesso a um tratamento eficiente contra a hepatite C. A iniciativa foi realizada com base em estudo de pesquisadores da USP.
Na denuncia, as entidades pedem ao órgão brasileiro responsável pela defesa da concorrência que condene a Gilead com multa e imponha, em caráter liminar, o licenciamento compulsório do sofosbuvir. A medida suspenderia a patente do medicamento, concedida à Gilead, e permitiria sua produção e comercialização por outras empresas, aumentando a concorrência e, consequentemente, ampliando o acesso à cura para centenas de milhares de pessoas que sofrem com a doença no Brasil. O Ministério da Saúde estima que cerca de 700 mil pessoas precisam de tratamento de hepatite C no país, mas até junho de 2019, apenas 102 mil pacientes haviam sido tratados com os medicamentos mais novos e eficientes, dentre os quais se destaca o sofosbuvir. Dentre as hepatites, a de tipo C é a mais prevalente e letal no Brasil.
A representação ao CADE tem como fundamento um estudo realizado por pesquisadores do Grupo Direito e Pobreza, da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), e coordenado pelos juristas Calixto Salomão Filho e Carlos Portugal Gouvêa. O trabalho concluiu que desde o lançamento do medicamento no Brasil, em 2015, a Gilead vem abusando sistematicamente de sua posição dominante de mercado, com consequências econômicas e sociais extremamente graves.
Entre 2015 e 2018, o estudo aponta um período de ”monopólio fático” onde a Gilead forneceu 99,96% do sofosbuvir comercializado no país. Nesse período, o preço médio cobrado variou de R$ 179,41 a R$ 639,29 por comprimido de medicamento composto por sofosbuvir, tendo como resultado para a empresa uma receita de R$ 1,4 bilhão apenas nas compras realizadas pelo Estado brasileiro. Neste mesmo período, no entanto, o tratamento foi racionado por causa dos altos preços, impedindo que um enorme contingente de pessoas fosse tratado e curado. Entre 2015 e 2017 foram registrados quase 6.000 óbitos por hepatite C no país.
Conduta ilícita
Entre julho de 2018 e janeiro de 2019, os pesquisadores da USP apontam um breve período de concorrência, no qual o valor cobrado pela Gilead caiu 89,9%, para R$ 64,84. Após a concessão da patente e até 22 de junho deste ano (final do período analisado pelo estudo), a média subiu para R$ 986,57, um aumento de 1.421,5% por comprimido de medicamento composto por sofosbuvir. Esse é considerado um período de monopólio formal, no qual foi observado “aumento arbitrário de preços”.
“O estudo mostra como um período breve de concorrência foi capaz de provocar preços muito mais baixos, o que deixou bem claro como a empresa pode e pratica preços mais acessíveis quando há outras opções no mercado”, alerta a advogada e pesquisadora em Saúde do Idec, Ana Carolina Navarrete. “Como entidade de defesa do consumidor, sabemos que a concorrência é um instrumento poderoso para redução de preços. Neste caso, o monopólio, além de injustificado, resulta em preços altos que beneficiam somente a empresa” reforça.
O texto da representação explica que “a conduta ilícita” levada a cabo pela Gilead “é grave e afeta de forma evidente o interesse público”. “São centenas de milhares de pessoas infectadas com acesso deficitário ao tratamento ou privadas de seu acesso, desrespeitando os princípios do Sistema Único de Saúde. Estamos diante de um histórico de óbitos, distribuição racionada e filas de espera por um medicamento capaz de curar a enfermidade e efetivamente recomendado pela OMS para o enfrentamento de uma grave ameaça global de saúde”, afirma a advogada Eloisa Machado, do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu), entidade responsável pelo tramite jurídico da ação junto ao Cade.
Se mantido o ritmo atual, o Brasil não cumprirá a meta, alinhada à estratégia global de combate à doença, de tratar 657 mil pessoas até 2030. A próxima compra de tratamentos para hepatite C pelo Ministério da Saúde ocorrerá ainda em 2019. Por isso, uma audiência pública prévia à realização do pregão está marcada para hoje em Brasília.
Desde 2015 , o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI), coordenado pela ABIA, contesta o pedido de patente do sofosbuvir junto ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI). No ano passado, o grupo lançou a campanha #sofosbuvirlivre e realizou mobilizações online e protestos na sede da Gilead, em São Paulo, e em frente ao o INPI, no Centro do Rio de Janeiro. O INPI decidiu conceder a patente do sofosbuvir à empresa americana em setembro de 2018. Desde então, o GTPI e outras organizações da sociedade civil têm realizado estrategias de pressão em defesa do acesso ao tratamento da Hepatite C.
Além da ABIA, MSF, DPU e GIV, documento é assinado pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Fórum das ONGs Aids do Estado de São Paulo (FOAESP), Fórum de ONGs Aids do Rio Grande do Sul, Grupo de Apoio à Prevenção da Aids (GAPA/BA), Grupo Solidariedade é Vida e Universidades Aliadas por Medicamentos Essenciais (UAEM).
Foto: GTPI