Em parceria com o Instituto em Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ), o diretor-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) e antropólogo, Richard Parker, realizou a aula inaugural do curso “A epidemia de AIDS e a invenção da Saúde Global”. A atividade ocorreu na sede da ABIA, no Centro(RJ) e contou com a presença de estudantes e ativistas.
De acordo com Parker, a ideia do curso surgiu a partir da concepção de seu próximo livro (ainda não lançado) que vai oferecer a sua vivência pessoal como pesquisador ao longo de quase 40 anos de epidemia e a partir desta perspectiva, propõe analisar a história do HIV/AIDS no Brasil. Parker é considerado uma referência internacional no pensamento político e social sobre o HIV/AIDS –
“É um livro muito diferente do que eu imaginava que seria no início. Antes pensava em escrever sobre o fim da AIDS, mas em 2014/2015 muitos de nós – pesquisadores da área – começamos a duvidar desse fim”, afirmou Parker. Ainda de acordo com ele, o objetivo da obra é contrapor essa versão do Estado que não vai de encontro com a realidade vivida pelas pessoas – gestores, ativistas, pesquisadores, pessoas vivendo e convivendo – envolvidas na luta contra a epidemia.
A primeira aula do curso “A epidemia de AIDS e a invenção da Saúde Global” fez uma análise inicial do que Parker classificou como as “quatro ondas da epidemia de HIV/AIDS”. Foram destacadas as dimensões sociais, culturais, políticas e econômicas da epidemia, e os esforços feitos para enfrentar a negação generalizada, o estigma e a discriminação associados ao HIV/AIDS. Também ganharam atenção a resposta inicial à epidemia por parte das comunidades afetadas, sociedade civil e organizações não-governamentais (ONGs) e governos – bem como as primeiras iniciativas internacionais e transnacionais que visam abordar as dimensões globais da epidemia.
Para o pesquisador, entre as lições chaves da primeira década da epidemia estão: a arte de cuidar, a construção da solidariedade, a invenção do sexo seguro e da redução de danos, a importância do ativismo cultural e as possibilidades e limites de estruturas institucionais
O Legado de Betinho
“Temos enfrentado nos últimos tempos dificuldades terríveis por conta do conservadorismo no HIV/AIDS no Brasil e no mundo. Mas desde o começo da AIDS o estigma, preconceito e a opressão foram desafios para a prevenção da AIDS”, relatou Parker. Um dos grandes marcos para ele desse período, porém, foi o trabalho de Herbert de Souza – o Betinho – na luta pelo sangue seguro e HIV/AIDS em prol das comunidades mais afetadas e a sociedade civil no geral. “E foram as comunidades mais afetadas que inventaram a expertise das tecnologias de prevenção que deram importantes respostas para a concepção do termo sexo seguro e da redução de danos. Por isso é importante resgatar o histórico que não se fala mais, é importante para o que estamos vivendo no enfrentamento da epidemia no Brasil”, lembrou.
Cuidado
Sobre a arte de cuidar e construção da solidariedade, Parker indagou como cada comunidade afetada criou sua própria maneira de cuidar da epidemia e daqueles que estavam infectados mesmo com todo o processo de redemocratização, politização da sexualidade e o movimento sanitarista. “ O movimento político e social daquele período foi incrivelmente favorável para isso, pois tanto na esfera ativista como nas esferas governamentais existiam lideranças extremamente politizadas e focadas em construir uma resposta para a epidemia”, atestou.
Sexo mais seguro
A ideia do sexo seguro, de acordo com o diretor-presidente da ABIA, foi pensada por todas as populações afetadas na ocasião. “ Naquela época sexo seguro não foi só algo referencial. Sexo seguro era algo que você fazia para preservar o seu parceiro, já que para muitos se você fizesse parte de uma comunidade de risco mesmo sem o teste se presumia que você era positivo”, expôs Parker.
Ativismo cultural
Já o ativismo cultural foi considerado pelo antropólogo como uma das lições chaves deste período devido as poderosas e inteligentes maneiras construídas de se protestar através da arte seja ela cênica, visual ou sonora. Parker acredita que ali surgiu a ideia de que sem mexer com a cultura não é possível enfrentar o estigma e a discriminação. Segundo ele, “ o ativismo cultural é uma das grandes heranças da epidemia no Brasil, pois é uma tradição que ainda se mantém sólida dentro dos movimentos sociais. ”
Institucionalização da resposta a AIDS
Outro ponto analisado por Parker foi o conflito imposto quando o dinheiro disponibilizado ao programa de AIDS se tornou maior do que o ofertado para instituições de saúde internacionais como a OMS (Organização Mundial da Saúde). Passou-se então a existir então um embate de poderes, que tornaram assim esses espaços institucionais locais com possibilidades para uma resposta a epidemia, mas limitados frente ao capitalismo que surgia com força.
Falando sobre a origem da ideia de saúde global ainda nos anos 1980, o pesquisador explicou que isso se deu por conta das diferentes versões de como a epidemia surgia em cada país. “ Pode ser menos óbvio do que parece essa ideia de AIDS como epidemia global, mas naquele período não”, articulou Parker, que completou seu pensamento abordando o desafio de como empacotar todo esse problema e articular as pessoas para que entendessem aquele momento como uma epidemia global.
Próxima aula
No diálogo com os/as participantes, o vice-presidente da ABIA, Veriano Terto Jr, lembrou da Declaração dos Princípios de Denver. “ Acredito que um ponto interessante para iniciarmos esse debate seria a abordagem da Declaração dos Princípios de Denver, porque apesar de ter sido criada ainda em 1983, mostra a persistência e força do estigma naquela época, já que precisou ser pensada justamente para combater isso e hoje ninguém se lembra”, afirmou Terto Jr, acrescentando que “essa declaração hoje é um excelente indicador para entendermos o que alcançamos ou não nesse período, pois assim podemos começar a entender aonde estão nossas falhas e acertos. ”
Trazendo sua visão da epidemia a partir de sua vivência em Cuba, o coordenador da área de prevenção e promoção da saúde, Juan Carlos Raxach contou sobre a importância das comunidades na arte do cuidar. “Em Cuba, mesmo com a negação da epidemia a arte do cuidar era uma intensa troca entre os pares. Porque existia uma ideia muito forte de se morrer com dignidade”, afirmou.
A próxima aula será no dia 01/10 na sede da ABIA. Todas as aulas estão sendo gravadas e em breve serão disponibilizadas no site e redes da instituição, incluindo no Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens.
Fonte: Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens
Colaborou nesta redação: Maria Lúcia Meira (estagiária)
Edição e supervisão: Angélica Basthi