Por Observatório Global de Políticas de AIDS (GAPW, sigla em inglês)
O Observatório Global de Políticas de AIDS (GAPW, sigla em inglês), lançado pela ABIA, divulgou seu posicionamento em relação à Estratégia Nacional para os Estados Unidos com relação ao HIV/AIDS: Atualizada para 2020, anunciada pela Casa Branca com o propósito de alcançar uma resposta mais efetiva ao HIV e à AIDS naquele país.
Embora enfatize o contexto norte-americano, o documento traz algumas constatações que fazem eco com a realidade de inúmeros países, incluindo o Brasil. O governo dos Estados Unidos reconhece, por exemplo, que as desigualdades sociais são fatores preponderantes na distribuição da epidemia. O documento também chama atenção para o fato de que as intervenções biomédicas, sozinhas, não vão funcionar e, portanto, precisam vir associadas a mudanças estruturais e comportamentais. O texto sinaliza avanços que devam ser considerados e expõe pontos frágeis que podem servir de alerta para a outros países, incluindo o Brasil.
Leia o posicionamento completo do GAPW/ABIA:
Em 30 de julho de 2015, a Casa Branca lançou a Estratégia Nacional para os Estados Unidos com relação ao HIV/AIDS: Atualizada para 2020 . Trata-se de um documento para acompanhamento da estratégia similar lançada em 2010, a qual refletiria o progresso alcançado nos últimos cinco anos, bem como a abordagem dos novos desenvolvimentos científicos na resposta ao HIV. O documento é apresentado como o resultado de contribuições das pessoas que vivem com HIV, comunidades e organizações nacionais, profissionais de saúde, pesquisadores e um conjunto de outros indivíduos que trabalham com órgãos federais, estaduais, municipais, tribais, entre outros. Outra contribuição para o debate é a proposta de uma estratégia de cinco anos com quatro metas específicas: 1) reduzir novas infecções pelo HIV; 2) aumentar o acesso ao tratamento e melhorar os resultados de saúde para todas as populações que vivem com HIV; 3) reduzir disparidades relacionadas ao HIV e às desigualdades na saúde; e 4) atingir uma resposta nacional mais coordenada. A Estratégia Nacional para o HIV/AIDS tem o objetivo de ser um documento norteador para a elaboração de uma resposta mais efetiva ao HIV e à AIDS nos Estados Unidos.
A presente estratégia norte-americana traz uma série de pontos importantes:
Abordagem de Determinantes Sociais:
Um dos principais componentes para abordar essas desigualdades é o financiamento. A Estratégia propõe que o financiamento seja proporcional ao ônus do HIV regionalmente – e se assim o for – enfatiza a necessidade de esforços concentrados em comunidades de alto ônus, como nas comunidades do sul dos EUA e comunidades afro-americanas. A Estratégia argumenta que, desde o último relatório, o governo federal dos EUA deu o exemplo, e recomenda que governos estaduais façam o mesmo.
Abordagem ao tratamento holístico e retenção:
A Estratégia expressa um compromisso progressivo para promulgar o tratamento integral para indivíduos HIV positivos e um compromisso de manter a relação com e a retenção nos serviços de saúde. Isso é significativo, pois mostra que o HIV não pode ser tratado em um vácuo; pelo contrário, as diversas outras condições de saúde e os fatores socioambientais que costumam ocorrer simultaneamente com o HIV também devem ser abordados. A adesão e a retenção ao tratamento ilustram a importância da incorporação estável de todos os indivíduos HIV positivos em serviços médicos e garantem que eles tenham a capacidade de permanecer engajados. O documento também enfatiza a necessidade da integração de serviços hospitalares usuais e serviços não médicos, como trabalhos sociais e coordenação de assistência. Ele destaca este ponto para os grupos mais vulneráveis ao HIV, como afro-americanos ou homens homossexuais que apresentaram menores taxas de engajamento e retenção na assistência, devido aos efeitos de valores conservadores e histórico de pobreza, discriminação e exclusão. Estes fatores dificultam não só o engajamento nos serviços de saúde, como também a manutenção de uma residência estável e acesso a outros recursos necessários, como nutrição adequada. A atual Estratégia procura retificar essa situação ao promover a ideia de que não é possível aderir com sucesso ao tratamento do HIV se as necessidades básicas de vida não forem atendidas.
Abordagem à Prevenção:
A seção da Estratégia que aborda a prevenção na Meta 1.B é uma seção notavelmente abrangente. Ela enfatiza a importância de intervenções tanto biomédicas como comportamentais, observando que as intervenções biomédicas não funcionarão isoladamente. Além da disponibilidade e do uso adequado de métodos, como preservativos e PrEP ou PEP, a prevenção do HIV também requer que as pessoas que vivem com a doença conheçam seu status sorológico, iniciem o tratamento imediatamente e permaneçam em assistência. A Estratégia reconhece isso efetivamente ao recomendar uma melhor integração entre serviços de assistência e a prevenção para aqueles que vivem com HIV e a utilização de estratégias comportamentais juntamente com expansão do acesso a PrEP e PEP e agulhas e seringas esterelizadas. Esse incentivo à PrEP é um acréscimo à versão de 2010, colocando o lançamento de PrEP nos EUA como uma nova ferramenta para prevenção a partir de 2014. Esse incentivo, em combinação com um indicador adicional para redução de comportamentos de risco ao HIV entre homossexuais e bissexuais jovens, destaca o compromisso da atual Estratégia com uma abordagem abrangente para prevenção do HIV.
Abordagem à educação:
O documento reconhece a falha em conhecimentos precisos que muitos norte-americanos ainda têm quando o assunto é HIV. Há uma ênfase na importância de educar todos os norte-americanos em uma base comum de informações, não apenas sobre transmissão e prevenção, mas também sobre o atual estado da epidemia nos EUA. De maneira importante, esse esforço de educação retorna à meta de reduzir o estigma e a discriminação, os quais tem base em informações imprecisas sobre a transmissão do HIV, assim como aumentar o conhecimento individual para ajudar a prevenir novas transmissões do HIV. Outro ponto forte com relação à educação é a capacitação da sociedade civil e de grupos da comunidade como os direcionadores para o aumento do acesso a informações precisas. A resposta inicial ao HIV na década de 1980 foi eficaz, devido às mensagens de prevenção e às campanhas criadas por grupos da sociedade civil. Este documento faz um esforço considerável para convocar organizações baseadas na comunidade para revigorar sua liderança em responder à epidemia.
Implementação de respostas individualizadas:
A atual Estratégia requer a implantação de respostas personalizadas ao HIV. Isso é importante por vários motivos, mas talvez o mais importante é reconhecer que o HIV é uma epidemia fluida e dinâmica que não afeta grupos ou comunidades exclusivamente, mas cria interseccionalidades entre eles. O HIV é uma doença que afeta os mais vulneráveis da sociedade, mas essas vulnerabilidades não existem em categorias muito bem definidas.
É imperativo reconhecer que identidades geralmente se sobrepõem: em vez de ser apenas um homem homossexual ou uma mulher negra, pode-se ser tanto um homem homossexual e um usuário de drogas injetáveis, e é possível se identificar tanto como negro e transgênero. A atual Estratégia reconhece essa fluidez e a sobreposição de fatores de risco e enfatiza a importância de manter em tratamento aqueles mais vulneráveis ao HIV, bem como garantir seu acesso à prevenção ao criar narrativas de respostas que sejam significativas para sua experiência. A Estratégia também enfatiza que há diferenças biológicas e estruturais exclusivas na forma como o HIV impacta e é transmitido entre mulheres e meninas, e que essas diferenças afetam a prevenção, o tratamento e as reações à assistência. O documento destaca de maneira apta a necessidade de respostas individualizadas entre várias populações convergentes, de forma a minimizar as disparidades que alimentam a epidemia do HIV.
Outros avanços positivos na Estratégia norte-americana atualizada:
Há vários outros acréscimos na atual Estratégia que significam uma melhoria considerável em comparação ao documento que foi lançado em 2010. O primeiro é a inclusão de um “relatório de progresso” no Apêndice 1, que detalha o estado da epidemia nos EUA desde a primeira versão da Estratégia. Essa seção destaca onde o progresso acertou, superou e errou nas metas nacionais a partir do lançamento do documento, apontando os pontos fortes e fracos da implantação da Estratégia de 2010. Ao mencionar as falhas e os sucessos do país, a implantação e a avaliação futura dos resultados desta Estratégia atualizada poderão ser conduzidas de forma mais efetiva. Outra diferença neste relatório é o reconhecimento do impacto positivo que a Lei de Acesso à Assistência (LAA) teve e continuará a ter na melhoria do acesso a e retenção aos serviços de saúde. Isso se dá em comparação com a retórica esperançosa sobre a promulgação pendente da LAA que dominou a Estratégia de 2010. Equanto a LAA era considerada uma ferramenta que possivelmente melhoraria as vidas das pessoas que vivem com ou em risco de HIV quando a Estratégia de 2010 foi lançada pela primeira vez, o impacto positivo da LAA com relação ao HIV é hoje confirmado nesta presente Estratégia que é, sem dúvida, um sinal importante de sucesso.
Uma diferença final entre as Estratégias originais e a atualizada que vale a pena mencionar é a mudança de medição da taxa de incidência a dados diagnósticos com relação a diagnósticos de HIV. A mudança foi feita, porque as estimativas de incidência fornecem o número de pessoas estimadas como soropositivas, tenham elas sido diagnosticadas ou não. Dados diagnósticos, no entanto, permitem o monitoramento do grau de serviços de testagem sendo utilizados em comparação ao percentual de indivíduos diagnosticados como soropositivos. Essa mudança em dados de vigilância muda o foco para o teste em vez de incidência abstrata, o que pode aumentar a associação ao tratamento e à assistência; o que falta nesse indicador, no entanto, é o envolvimento de indivíduos sendo testados e tratados, para que seus direitos humanos sejam respeitados. Monitorar o acesso ao teste é uma mudança importante, mas garantir a autonomia dentro do teste é um próximo passo crucial.
Apesar desses avanços na Estratégia norte-americana atualizada, ainda restam desafios significativos que precisarão ser confrontados no futuro:
Embora a atual Estratégia Nacional de HIV/AIDS expresse um compromisso agressivo com relação à abordagem das muitas forças sociais e estruturais que perpetuam a epidemia da AIDS, ela ainda possui áreas que exigem maior investigação e elaboração. Em particular, o documento é visivelmente vago sobre etapas de implantação, planejamento e ações avanço em suas recomendações. A Estratégia atualizada é talvez uma reflexão e uma vítima da falta de um órgão uniforme que reja a resposta ao HIV e à AIDS nos Estados Unidos. A Estratégia em si admite que essa falta de uniformidade é um problema. O documento designa quase todas as recomendações a órgãos “federais e estaduais” indefinidos, que o documento declara operar, segundo normas estatutárias independentes definidas pelo Congresso. Embora possa ser verdade que o Poder Executivo do governo norte-americano não tenha capacidade de comandar as ações de alguns desses vários órgãos, como uma Estratégia, a definição mais clara de ações específicas a serem implantadas por organizações ou departamentos específicos teria resultado em um plano muito mais pragmático e robusto para a nação. O fato de não tê-lo feito isenta órgãos específicos da responsabilidade de implantar a Estratégia, e reduz potencialmente a eficácia das recomendações demonstradas na Estratégia.
Outro ponto fraco que chama a atenção é que o documento evita a consideração de alguns problemas com viés político. Embora reconheça a importância de mudanças recentes em leis estaduais que descriminalizaram morder e cuspir (como tentativas de transmissão do HIV) a fim de reduzir o estigma, as recomendações futuras apenas dão uma dica quanto à necessidade de desconstruir a criminalização do HIV em vez de abordar o problema da criminalização de frente. A descriminalização de trocas de agulhas é um desses exemplos. O documento reconhece a eficácia desse método de redução de dano, mas não defende especificamente que os Estados o descriminalizem. Em vez disso, o documento recomenda que as legislaturas estaduais comparem a lei estadual para garantir que elas sejam “consistentes com conhecimentos científicos atuais de transmissão do HIV e apoiem abordagens de saúde pública para prevenir e tratar o HIV”. Esses textos consideram que qualquer legislatura estadual chegará a essa conclusão lógica de descriminalizar as trocas de agulhas e outras criminalizações de pessoas com HIV. Essa é uma consideração perigosa, uma vez que as extremas inconsistências em leis estaduais atuais sobre a criminalização do HIV demonstram a necessidade de uma orientação mais explícita.
Um segundo problema que o documento trata é a barreira da discriminação que a população LGBT enfrenta ao acessar o tratamento de saúde. A discussão em torno da Meta 2.B enfatiza a necessidade de profissionais de saúde mais preparados e que sejam treinados em tratamento e prevenção apropriados do HIV, mas que ainda não façam disso um aspecto de quaisquer das ações recomendadas. A discussão enfatiza o problema que determinados grupos, particularmente as mulheres transgênero e os homens homossexuais, não recebem tratamento médico adequado e efetivo devido à falta de entendimento, desconforto e discriminação dos profissionais de saúde. Considerando esses fatores, os passos recomendados nesta seção não abordam a necessidade de profissionais de saúde mais treinados para pacientes transgênero ou ambientes de saúde mais receptivos para populações consideradas “vulneráveis”. A Estratégia poderia ter adotado uma posição mais proativa, articulando esses problemas, considerando que essas são peças essenciais que reforçam e até mesmo aumentam a vulnerabilidade ao HIV entre os grupos chave.
Relevância da Estratégia norte-americana atualizada para a política global de AIDS:
A Estratégia norte-americana atualizada é bem articulada e abrangente em relação a muitos dos fatores que contribuem para a continuação da epidemia do HIV nos EUA. A Estratégia apresenta um importante progresso e uma promessa, especialmente na transmissão dos muitos fatores estruturais que perpetuam o HIV, da importância de um forte compromisso com os direitos humanos e da necessidade de enfraquecer as desigualdades. O documento não está, contudo, isento de séria consideração adicional e pesquisa, particularmente com relação à percepção de uma maioria das recomendações da Estratégia. Agora é o momento de ir além das recomendações e criar um método de responsabilidade pela implantação dessas estratégias. O que é necessário é um órgão ou uma legislação federal dedicada a supervisionar a epidemia nacional de HIV e as formas em que a miríade de órgãos federais, estaduais e locais estão lidando com a questão. E mais: é igualmente importante que ativistas e grupos da sociedade civil continuem a pressionar para garantir que as promessas articuladas nesses documentos sejam trazidas para a realidade na legislação federal, nas políticas e ações. Esta Estratégia atualizada demonstra bem o avanço dos EUA nos últimos cinco anos e o quanto ainda precisam avançar; mas ainda haverá uma distância considerável para percorrer até que um método mais concreto de responsabilidade seja implementado pelo governo norte-americano.
No contexto de uma perspectiva global, não se deve subestimar que os EUA estão se movendo para uma resposta mais claramente concentrada. Os EUA foram e continuam a ser os maiores doadores com relação à AIDS mundial e, em troca de contribuição financeira, eles procuraram influenciar como outros países devem responder à epidemia. A falta de uma política clara nos EUA com relação à sua própria epidemia na maior parte das últimas três décadas e meia é compreensivelmente algo que afetou muitos outros países inclusive e possivelmente tenha estimulado atitudes negligentes com o HIV de diversos governos. Nesse sentido, o fato dos EUA estarem avançando com um plano mais deliberadamente articulado com relação a como responder à epidemia do HIV dentro de suas fronteiras é um importante avanço.
A Estratégia em si poderia ser interpretada como isolada, pois ela não menciona, nem mesmo uma vez, a posição do país dentro da epidemia global. Os EUA não fazem parte do contexto da AIDS mundial? E as políticas nacionais não deveriam refletir e ser consistentes com as recomendações da política global? A Casa Branca produziu uma Estratégia com uma lente totalmente introspectiva, o que é insuficiente devido à sua influência como líder global. O fato de a Estratégia norte-americana não se posicionar dentro do contexto global é uma oportunidade perdida.
Rio de Janeiro, agosto 2015
Observatório Global de Políticas de AIDS (GAPW, sigla em inglês)