“Jessica Rich ilumina questões que de outra forma não viriam à tona”,
Richard Parker sobre o livro de Jessica Rich
A norte-americana Jessica Rich, autora do livro “Ativismo patrocinado pelo Estado: burocratas e movimentos sociais no Brasil democrático”, publicado em 2020 pela editora Fiocruz, lutou para ser proprietária dos direitos autorais e cumprir a promessa que fez durante a pesquisa sobre as ONGs AIDS no Brasil. Na ocasião, prometeu aos ativistas que devolveria todo o conhecimento adquirido para o movimento AIDS brasileiro. Lançado originalmente em 2019 pela ‘Cambridge University Press’, na versão em inglês, o livro é um raro diagnóstico sobre o modo que as organizações da sociedade civil e o movimento de luta contra a AIDS construíram pontes com os burocratas do Estado brasileiro. E vice-versa. A pesquisa também revelou a importância do ativismo para sustentar assuntos pouco visíveis após a implementação de políticas públicas. No bate-papo exclusivo com a jornalista Angélica Basthi, coordenadora de comunicação da ABIA – foram duas horas de conversa via Zoom – Jessica falou abertamente sobre como capturou o momento efervescente da democracia brasileira no início dos anos 2000 e do papel dos ativistas e dos burocratas que abraçaram a causa da resposta à epidemia do HIV/AIDS. Ela também comentou sobre as perguntas, ainda sem resposta, para o período após o avanço das forças conservadoras no país. Leia a entrevista completa a seguir.
ABIA- Quem são os protagonistas na construção da resposta brasileira à epidemia do HIV/AIDS a partir da perspectiva que você traz no seu livro?
JESSICA RICH – São dois protagonistas. Primeiro os ativistas que construíram as primeiras respostas no Brasil a partir de organizações como a ABIA. Construíram a expertise e o conhecimento científico que temos sobre a AIDS. Não falo científico no contexto da ciência, mas sim do aspecto social da epidemia. Ativistas trabalhavam no enfrentamento da epidemia e na construção de uma melhor resposta governamental. Há também os protagonistas no Estado brasileiro.
Por exemplo, no nível estadual, havia pessoas nos primeiros programas de HIV e AIDS comprometidas com o enfrentamento da epidemia. E muitas dessas pessoas – mesmo no Estado – também poderiam ser consideradas ativistas. Mais tarde, ativistas da AIDS ingressaram no Estado para ajudar na construção do programa nacional de AIDS. E ajudaram a construir uma cultura dentro do programa de AIDS que acho que se espalhou e contagiou outras pessoas dentro do programa que não eram ativistas. E essas pessoas trabalharam juntas para construir a resposta brasileira.
Com o título do livro diz, achei importante reforçar que foram os ativistas que construíram o programa de AIDS e a cultura de ativismo dentro do Estado brasileiro.
ABIA- Quais relações complexas entre a sociedade civil e o Estado brasileiro são reveladas no seu livro?
RICH -Talvez seja justo dizer que são relações de dependência mútua e de apoio mútuo. Ou seja, havia as pessoas que trabalhavam dentro do Estado brasileiro e que queriam promover a mesma visão que tinham os ativistas sobre as políticas de enfrentamento à AIDS – dependiam do ativismo fora do Estado para ajudar a combater a oposição política das suas iniciativas dentro do próprio Estado. Os burocratas dependiam do ativismo para sustentar e apoiar as suas iniciativas.
Por outro lado, ao longo do tempo, ativistas também dependiam dos burocratas no Estado. E isso se dava de várias formas: os burocratas compartilhavam informações importantes com os ativistas – e essa via era dupla, pois ativistas também compartilhavam informações relevantes com os burocratas do Estado. Além de informações, os burocratas apoiaram financeiramente os ativistas, como os programas de advocacy e a construção de uma coalizão nacional de ONGs, ou seja, apoiaram a formação da arquitetura do movimento nacional de AIDS.
ABIA – E como isso foi possível? Há vários contextos e talvez você possa iluminar um pouco para entendermos como foi possível este apoio.
RICH -Tenho refletido sobre este espírito ativista na burocracia. Pode ser identificado nos programas e novas agências do Estado brasileiro, particularmente nos programas criados através da pressão de ativistas. Os mais recentes, como “Minha Casa, Minha Vida” foram criados com o resultado do ativismo. Esses programas atraíram pessoas que queriam promover novas políticas para combater vários tipos de desigualdades.
Há exemplos de ativistas que entraram no Estado para a construção destas agendas. Havia também pessoas que não eram ativistas, mas que estavam comprometidas com essas políticas. A oportunidade de criar programas governamentais diferentes fomentou o surgimento de agências com espírito ativista. A expansão do Estado brasileiro nos anos 1990 na criação de programas com foco em grupos marginalizados foi resultado do ativismo e incentivou uma coorte diferente de pessoas a entrar no Estado. Eram pessoas que tinham visões parecidas e compartilhavam os mesmos objetivos com os movimentos sociais.
ABIA – Que impactos essas relações complexas tiveram na construção da resposta política da epidemia da AIDS no país?
RICH – Ajudaram na sustentação das políticas de enfrentamento à AIDS ao longo de muitos anos. A resposta à AIDS no país era diferenciada, tinha mais sucesso na implementação de políticas públicas, até quando comparada com a área da saúde pública mais geral. O fator chave para isso foi a relação entre as pessoas do Estado e ativistas fora do Estado. Havia um círculo virtuoso fortalecido ao longo do tempo: os ativistas fortaleceram o programa nacional de AIDS e o pessoal do programa ajudou a expandir e fortalecer o movimento de resposta à AIDS. O grau de sucesso na resposta à epidemia no país cresceu ao longo dos anos e foi em razão dessa relação de apoio mútuo.
ABIA – Teria algum exemplo que mostre este benefício mutuo, algo que chamou a sua atenção e que você tenha visto com nitidez sobre essa troca na época?
RICH – Isso é perceptível na luta transnacional para reduzir o preço dos medicamentos em no final da década de 1990, houve uma aliança importante entre burocratas e ativistas. A troca de informação entre esses dois grupos promoveu uma aliança chave para o sucesso da campanha por meio da participação de ativistas nos Congressos. Têm também as ações bem-sucedidas que às vezes são invisíveis no nível nacional e estadual como as ações para a sustentação de uma política pública já adotada.
A ausência de mudança na política, muitas vezes, é um sucesso invisível. Por exemplo, manter o orçamento para programas de combate à AIDS é um sucesso invisível. Manter o dinheiro “carimbado” para as organizações da sociedade civil também é um sucesso invisível. Outra ação que pode ficar invisível é impedir a aprovação de propostas de leis contrárias às visões de políticas públicas baseadas nos direitos humanos.
Tem vários exemplos particulares de quase crises evitadas por esta aliança entre burocratas e ativistas. São exemplos assim, banais, que se acumulam. Defender e sustentar políticas públicas para grupos marginalizados requer lutas constantes, às vezes lutas grandes e, às vezes, pequenas e invisíveis…
ABIA – Embora é possível construir uma boa relação por meio dessas trocas que você citou, há o risco de cooptação? Qual é o limite?
RICH – É um perigo real. É um medo antigo, ver o Estado como um perigo e, é, de fato. O que eu ofereço é uma ideia que tem mais nuances na relação com o Estado, onde sim há este perigo, mas também há benefícios. Isso acontece particularmente quando se tem pessoas aliadas no Estado. E quando essas pessoas entendem a importância da autonomia dos ativistas. Mas ainda assim, envolve perigo. Mas é preciso dizer que não é só uma relação onde pode ocorrer cooptação. Tem uma variedade de relações mais complexas no envolvimento com o Estado.
ABIA – É interessante pensar nesta forma de construção de parcerias, ou seja, com pessoas que têm comprometimento real com as causas e com os grupos…
RICH – Sim e há outra dimensão neste importante debate que é relacionada à dependência mutua. Muitas vezes pensamos sobre o risco de cooptação pelo Estado com base no Estado autocrático, como na ditadura. Mas a gente perde oportunidades quando a gente pensa num Estado unitário, mas este Estado não existe. O Estado brasileiro é fragmentado, com vários programas e possibilidades. É claro que o Estado brasileiro tem muito mais poder que o movimento social, mas se pensarmos num programa novo, que enfrenta a oposição de elites em outras partes do Estado, a relação muda. Talvez não seja uma relação entre pares, mas é uma relação diferente.
O Programa Nacional de AIDS não era fraco, mas sim, vulnerável. Havia uma dependência em relação aos ativistas e isso dava maior espaço para o movimento social agir de forma mais independente. Não estou dizendo que o movimento social que depende do apoio do Estado seja totalmente autônomo, mas também não quer dizer que seja cooptado. E prova disso eram as manifestações e protestos de rua que o movimento social costumava fazer contra o programa nacional de AIDS – e isso até nos momentos bons, quando recebiam muito dinheiro do programa.
ABIA – Bom tema para se pensar neste cenário de desmonte…
RICH – Acho importante escrever algo novo pensando no cenário atual. Pensando diretamente nessas relações ou nas oportunidades ou desafios advindos dessa relação do passado. Acho que pode gerar outras posições. Nos próximos meses, quero fazer entrevistas novas com ativistas e, talvez, eu tenha respostas diferentes. Estou ansiosa para começar a fazer essas entrevistas.
ABIA – E sobre a pesquisa de campo? Como surgiu a ideia de pesquisar sobre o movimento social de AIDS no Brasil? O que chamou a sua atenção naquele momento e despertou o seu interesse?
RICH – Fiquei seis semanas em 2007 no Brasil , e depois fiquei um ano, quando a pesquisa começou em 2008. Retornei outra vez ao Brasil em 2010, fiquei quatro meses escrevendo e vendo o que estava acontecendo no país. Depois voltei novamente em 2014 por seis semanas para ver quais foram as mudanças. Voltei mais uma vez em 2016, e fiquei por 2 meses para checar outras mudanças e escrever o livro. Retornei em 2018 para outro projeto com foco na burocracia. Neste período, estava no Distrito Federal, fiz entrevistas com pessoal do programa nacional de AIDS para ver como estava a relação com os ativistas na época do Temer. Não sabia que viria o Bolsonaro. Temer já era um desafio.
ABIA – E o que te mobilizou e fez você olhar par ao movimento AIDS no Brasil?
RICH – Nos anos 1990, nos EUA – eu sou da Califórnia – as pessoas, com exceção do governo, não faziam nada: não votavam, não iam para as ruas, não estavam mobilizadas. Percebi que na América Latina era diferente, as pessoas estavam muito mais ativas na política. Então pensei: por que é assim na América Latina, e não nos Estados Unidos? Comecei a estudar as políticas na América Latina. Eu estava interessada na política e nas manifestações que haviam para pressionar o governo para combater as desigualdades no Brasil. Cheguei ao país em janeiro de 2002 (época do Lula), tinha pequena herança da minha avó e gastei indo para o Brasil. Fiz um estágio numa ONG ligada ao UNICEF e aprendi o português.
Na ocasião, havia um boom de ONGs no Brasil fazendo coisas interessantes e ativas politicamente. Logo depois que o Lula ganhou a eleição, eu tive a impressão que era um momento importante, mas não sabia qual seria o resultado disso e queria entender melhor esse momento. Fui fazer doutorado sobre essas ONGs e o Brasil parecia ter mais ONGs que em outros países na América Latina. Voltei a estudar em 2007, tentando desenhar a pesquisa.
A epidemia de AIDS me afetava como afetava todo mundo de forma indireta. Também perguntei às pessoas sobre qual tema revelaria essa participação política das ONGs. E todo mundo dizia que era preciso olhar para as ONGs/AIDS, que era importante olhar pessoas envolvidas no enfrentamento à AIDS. Naquele momento, não importava se seria uma história de sucesso ou de fracasso, tinha certeza que seria uma história interessante. Fiquei alucinada com as ONGs brasileiras. Viajei com o pessoal do Grupo Pela Vidda/RJ, com o Fórum de ONGs Aids do Estado de São Paulo, conversei com a ABIA, participei do ERONG e também do ENONG. Fui absorvendo a importância dessas pessoas que lutavam no movimento. Foi por meio da pesquisa que me interessei pelo campo da AIDS. Não foi antes.
ABIA – Sobre a temática da sua pesquisa, o seu desejo era entender melhor o movimento político das organizações não governamentais?
RICH – Na verdade, nem pensei no movimento naquele momento, ninguém estava falando de movimento social. As pessoas falavam de ONGs. Não se falava de ativismo, nem ativismo das ONGS e ninguém pensava nas ONGs como parte deste movimento social. Isso foi até talvez resultado da pesquisa. A ideia da pesquisa era para entender o movimento de ONGs, se tinham se articulado politicamente, em quais locais e não em outros. Fui descobrindo que houve muito engajamento local e em todos os níveis. Uma coisa que observei, muito surpreendente para mim, foi ter visto em cada estado as mesmas pessoas que trabalhavam nos programas nacionais. O pensamento que a política nacional era ausente não era bem assim. A política acontecia no nível estadual e municipal, mas havia pessoas se comunicando a partir das políticas locais com as pessoas que trabalhavam na burocracia nacional.
ABIA – Em quais locais percorreu no Brasil para realizar a sua pesquisa?
RICH – Passei a maior parte do tempo no Rio de Janeiro e em São Paulo, pois havia muita coisa acontecendo nesses estados e muitos ativistas de outros estados indo para lá. Mas também achei importante ver o que estava acontecendo nos outros locais e viajei para o Espirito Santo, Bahia, Alagoas e Distrito Federal em períodos mais curtos. E, em 2017, estive em Belém do Pará.
ABIA – O que foi mais desafiador e o que considera como ganho importante no processo de construção da pesquisa?
RICH – Desafio inicial foi conseguir reuniões e entrevistas com ativistas. Demorou muito. Primeiro porque tive que compreender a cultura brasileira para marcar entrevistas e eu fiquei tímida. Segundo, porque as ONGs/AIDS no Brasil tinham fama mundialmente e muito reconhecidas na época. Logo, havia muitos pesquisadores querendo falar com os ativistas. E ativistas são pessoas que trabalham demais. Eu pensava: por que gastariam o tempo precioso para falar comigo? Criei as seguintes estratégias para tentar superar isso: participei dos eventos para mostrar que eu estava fazendo a tarefa de compreender o movimento sem gastar o tempo deles. Fiz a promessa de compartilhar o resultado da pesquisa. E foi por conta desta promessa que trabalhei tanto para publicar o meu livro em português no Brasil.
ABIA – Como você faz a leitura de este seu livro como fonte para o movimento social e para a resposta à AIDS no Brasil e no mundo?
RICH – Comecei aprendendo com eles, com o movimento social de resposta à AIDS. Agora penso que reconstruir a história desse movimento, talvez ajude a destacar conquistas ou dimensões do desenvolvimento deste percurso que podem ajudar a construir estratégias novas em cenários diferentes, principalmente para ativistas mais novos. Tem ativista que desconhece a história, não sabe como o movimento construiu suas conquistas. Tem ainda as muitas dimensões do movimento social de AIDS no Brasil que não são muito visíveis, mas que foram chaves para suas conquistas e que servem como exemplo para a resposta à AIDS em outros países.
ABIA – Que contribuição o movimento social de AIDS brasileiro pode oferecer para os movimentos sociais em saúde e/ou em AIDS em outros países?
REICH – A principal lição para o mundo é que o ativismo é muito importante, não só para pressionar governos a adotar políticas novas, mas também para sustentar e defender essas políticas. Quando a gente pensa na implementação das políticas, em geral não se pensa no ativismo. E o ativismo é muito importante neste outro momento da política pública. É uma atividade que é invisível, requer lobby, conversas e negociações com o governo junto com protestos. Todas são atividades importantes, mesmo as que não são tão visíveis. Fazer lobby e conversar com burocratas não significa não brigar mais na rua.
ABIA – E qual a principal mensagem do seu livro?
REICH – São três mensagens importantes: 1) Ativismo sustentado é necessário para consolidar as mudanças políticas transformativas no campo da saúde coletiva, não só para iniciar as mudanças; 2) Aliados no Estado administrativo podem ajudar no ativismo sustentado, porque têm acesso a recursos e informação e tendem a permanecer nos seus postos nos períodos de mudanças partidárias no legislativo e no executivo; 3) As organizações da sociedade civil (OSCs) e ONGs que dedicam seus escassos recursos para administrar projetos dificilmente se engajam em num trabalho de advocacy efetivo. As agências doadoras que querem promover o advocacy devem fornecer recursos destinados para isso – e para funcionários pagos com tempo dedicado para tal – não só para projetos que oferecem serviços.
Reportagem e edição: Angélica Basthi (ABIA)/ Fotos: Arquivo pessoal