Carlos Duarte, vice-presidente do Grupo de Apoio à Prevenção à AIDS (GAPA), do Rio Grande do Sul, conversou com Veriano Terto Jr, vice-presidente da ABIA sobre o recente fechamento da sede do grupo que surpreendeu ativistas de várias partes do país. Apesar do susto, Duarte, que também é membro do Conselho Deliberativo da ABIA, destacou que a mobilização após o fechamento da sede trouxe novo fôlego para a discussão sobre a epidemia de AIDS no estado e pode vir a reabrir o diálogo entre as organizações da sociedade civil que atuam no campo e os governos no âmbito estadual e municipal.
O fechamento da sede do GAPA aconteceu num dos piores momentos da epidemia no Rio Grande do Sul. Os números sobre a incidência de AIDS são mais que o dobro da média nacional – Rio Grande é o segundo estado de maior incidência, o primeiro é o estado do Amazonas. Porto Alegre tem três a quatro vezes mais incidência do que a média das capitais brasileiras, e é a capital com maior incidência de AIDS no país. A maior mortalidade de AIDS também está em Porto Alegre. Como, neste cenário, uma das organizações mais antigas do país perde a sua sede? Confira os principais trechos deste diálogo e entenda os contextos que envolveram o episódio.
Veriano Terto Jr./ABIA: O que aconteceu com o GAPA?
Carlos Duarte/GAPA – A casa foi cedida ao GAPA em 1991. E teve um processo de conservação muito difícil por parte do movimento social, pois nunca tivemos dinheiro para isto. Chegamos a fazer uma reforma no ano 2000 com financiamento do programa nacional de AIDS e do governo do Rio Grande do Sul. Em 1998, o estado informou que não renovaria o contrato com o GAPA em relação à casa. Mas renovou de novo de 2010 até 2013, sempre ameaçando o GAPA de despejo e deixando claro que não tinham mais a intenção de pagar o aluguel casa. A realidade das ONGS no Rio Grande do Sul tem sido bem difícil: as organizações não têm financiamento desde 2013. E esta casa do GAPA estava em péssimas condições: havia problemas hidráulicos, infiltração, telhado…. Não tinha mais como utilizar a casa para prestação de serviços externos. Mantínhamos em função da manutenção de tudo que tinha dentro, desde os arquivos, a biblioteca, a documentação, etc. E o proprietário, para nossa surpresa, não estava recebendo aluguel desde 2008.
Terto Jr. – Vocês foram surpreendidos com esta notícia do despejo?
Carlos Duarte – Sim, nos deixou surpresos. O estado renovou o contrato da casa com o GAPA em 2010, mas desde 2008 o proprietário não recebia o aluguel. O proprietário entrou com uma ação, que a gente vinha acompanhando, mas nunca fomos chamados no processo. Quando houve a ação de despejo, o estado não informou ao GAPA que ocorreria naquela data, por exemplo. Na nossa avaliação, tentaram evitar que houvesse manifestação na frente da casa no momento que a ordem judicial fosse cumprida. Desde 2008, quando o governo começou a dizer que o GAPA ia ter que sair da casa, estamos negociando com o estado e com o município de Porto Alegre um novo espaço que possa abrigar o GAPA e também as organizações sociais de Porto Alegre que trabalham com AIDS. Todas estão com o mesmo problema, sem sede e em lugares provisórios. Chegamos a assinar um contrato com o município de Porto Alegre em 2013 e a preparar a mudança, mas o espaço foi interditado pelos bombeiros. Desde então, nada foi resolvido e culminou com esta história do despejo.
Terto Jr. Qual o contexto da epidemia hoje no Rio Grande do Sul? Quais os principais desafios?
Carlos Duarte – O Rio Grande do Sul é o primeiro estado que entrou na proposta da União de cooperação interfederativa, justamente por ter uma epidemia meio complicada. O estado tem números de incidência que são um pouco mais que o dobro da média nacional. É o segundo estado de maior incidência de AIDS – o primeiro é o Amazonas – mas a diferença é muito pequena e ambos têm mais que o dobro da incidência nacional. Porto Alegre tem três a quatro vezes mais incidência do que a média das capitais brasileiras, ou seja, é disparado a capital com maior incidência de AIDS no país. A maior mortalidade por AIDS está em Porto Alegre. Nós do movimento social costumávamos dizer que a casa do GAPA, deteriorada como estava era a cara da epidemia da AIDS no estado. Na verdade, a gente não tem muita informação do diagnóstico da epidemia. Conhecemos os números, mas não o diagnóstico. Não sabemos por que estes números são tão expressivos. O que leva ao entendimento que há uma falha muito grande na gestão de propor ações que de fato promovam conhecimento da epidemia no estado.
Terto Jr. Qual o significado desta ação de despejo para a epidemia? O que reflete da relação sociedade civil/estado no Brasil?
Carlos Duarte – Há um fator simbólico aí no meio, porque a secretaria do estado lançou uma nota tentando justificar o despejo e afirmando que o GAPA não era mais a única organização social que trabalhava com AIDS no estado. Segundo a nota, há várias outras organizações parceiras que trabalham com prevenção e atenção a pessoas vivendo com AIDS e que o trabalho do GAPA era dispensável. Porém dizer isto num estado que apresenta estes números na epidemia, pegou muito mal. Todo mundo fez críticas muito fortes a esta nota. De certa forma, acho que pode trazer benefícios para o enfrentamento à epidemia no Rio Grande do Sul, porque a gente conseguiu mobilizar, pelo menos durante a última semana, o debate sobre a AIDS novamente na mídia local. A imprensa não circulava mais notícias sobre a epidemia e o estado fazia o que bem entendia. Tanto que fez o despejo do GAPA desta forma, achando que não teria repercussão. Era como se a AIDS já estivesse controlada e, portanto, não seria mais um problema de saúde pública. Após o ocorrido com o GAPA, hoje várias pessoas estão se manifestando em relação a situação da epidemia no estado. Fizemos uma audiência pública na Câmara Municipal marcada em tempo recorde e fizemos outra na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa para discutir esta situação. No dia 29/08, o Ministério Público Federal e o Estadual organizam uma plenária pública para discutir os rumos da epidemia de AIDS em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul. Trouxemos de volta a pauta desta situação e a gente pode estar num novo momento do enfrentamento da epidemia. E acho que o próprio estado e o município vão reconhecer o descompromisso que apresentaram até aqui e podemos tentar reverter tudo isto e fazer “do limão uma limonada”. Mas também estamos cientes de que tudo pode ser coisa do momento. Em uma semana, este assunto pode deixar de ser notícia. Temos que ficar bancando a mídia para que não se perca esta discussão e não correr o risco de daqui a pouco ninguém mais se lembrar da AIDS de novo.
Terto Jr. Onde está o acervo do GAPA, que é parte da memória da AIDS no Rio Grande do Sul e no país?
Carlos Duarte – O proprietário tomou posse da casa e trocou as fechaduras. A intenção do estado era de esvaziar a casa naquele dia e chegou a levar um caminhão para levar as coisas do GAPA para um espaço qualquer dentro do Hospital São Pedro, onde era o antigo manicômio de POA, que está meio abandonado e sem uso. Mas o proprietário entrou num acordo com o oficial de justiça e ficou com a guarda de todo o material do GAPA dentro da casa. Tudo o que o GAPA possui, continua dentro da casa e nós não temos acesso a nada, porque as fechaduras foram trocadas. Estão guardadas até o momento que a gente puder tirar tudo de lá. Há várias negociações em curso para um espaço ou provisório ou para a guarda deste material. De tudo o que houve, vale destacar a forte mobilização por parte da mídia em relação ao ocorrido. Pegou muito mal esta situação de despejo do GAPA num momento em que a epidemia no Rio Grande do Sul está muito longe de ser enfrentada e, para agravar, a epidemia de Porto Alegre é a pior do país. Isso pegou mal para os governos estadual e municipal porque ficou nítido o descaso no enfrentamento à epidemia quando se despeja a ONG mais antiga do estado, que guarda a história da AIDS.
Terto Jr. Você acha que este incidente tem lições para o resto do Brasil?
Carlos Duarte – Com certeza! O GAPA é uma instituição conhecida no Brasil inteiro, tem uma importância dentro da história de enfrentamento da epidemia, dentro do movimento social. O GAPA/RS tem um papel muito forte nestes 28 anos. Mas também acho que somos um exemplo do que está acontecendo no país todo, porque muitas ONGS estão fechando as portas e não estão conseguindo reverter esta posição de parceria com o estado para mudar a situação. E talvez a gente possa aqui no Rio Grande do Sul dar um exemplo de que isso é possível, que podemos retomar a discussão e voltar a fazer com que a sociedade pressione o estado para que este retome a parceria com a sociedade civil no enfrentamento da AIDS. Este sofrimento que o GAPA está passando pode servir de exemplo para que não se repita. Podemos tentar fazer desta experiência um paradigma e mudar o que vem acontecendo nos demais lugares, chamando a atenção para isso.
Terto Jr. Tem alguma perspectiva de que a casa do GAPA volte a abrir, que o GAPA vá ter uma sede aberta à população? Como você estima isso?
Carlos Duarte – Esta pergunta é uma boa oportunidade para esclarecer algo que passamos a notar nas manchetes dos jornais aqui do Sul, tais como “GAPA interditado” ou “O GAPA fecha as portas”. E não é exatamente isso. Não foi o GAPA que fechou as portas, mas sim a casa que foi interditada. O GAPA continua funcionando, mesmo sem a casa, porque a gente ainda consegue fazer incidência política e pressão no estado mesmo sem o espaço físico. É claro que é muito difícil uma organização se manter sem a sede. E também sabemos que a repercussão na mídia ajudou a forçar o município de Porto Alegre a tomar uma decisão de propor um espaço novo para o GAPA e para as outras ONGs. Estamos com esta proposta de alugar um outro espaço temporário até que se localize um prédio público que possa ser cedido para que as organizações possam ter como sede. Acho que a gente vai conseguir fazer isso, talvez demore alguns meses, mas há esta possibilidade. E já estamos pressionando que não basta um espaço físico, é preciso estabelecer parcerias que financiem projetos para as ações da sociedade civil, como era feito no passado, quando havia financiamentos estadual e federal, para as organizações fazerem as atividades complementares.
Terto Jr. – Em poucas palavras, como a população brasileira pode apoiar o GAPA neste momento para resolver esta crise?
Carlos Duarte – A gente precisa do apoio dos estados, das demais ONGS, das entidades que representam o movimento nacional de luta contra a AIDS, para esta pressão executada sobre o estado e município aqui no Rio Grande do Sul. É também importante que seja uma pressão a ser repetida nos estados e demais municípios brasileiros, para que de fato consigamos mostrar que a epidemia de AIDS no Brasil não está controlada e necessita de ações contundentes por parte do estado. Necessita também da participação da sociedade civil na execução das ações que só a sociedade civil consegue fazer para o enfrentamento da epidemia, como se deu nas décadas de 1980 e 1990. É fundamental que o movimento social retome a parceria com o estado, para que a gente consiga enfrentar esta nova epidemia de AIDS que está aparecendo em vários locais.