Por Veriano Terno Jr., coordenador da área de acesso ao tratamento, da ABIA [1]
Neste 1º de Dezembro celebramos mais um Dia Mundial de Luta Contra a AIDS. Desde a sua criação em 1988, este é um dia para comemorar vitórias, homenagear aqueles que morreram por causa da aids, reforçar a mobilização da sociedade, refletir sobre os desafios atuais e os próximos. Neste ano não será muito diferente, porém, neste pequeno texto gostaria de elencar alguns desafios que em 2016 se tornaram especialmente graves e que permanecerão pelos próximos anos.
Sem pretender dar conta da complexidade da situação atualmente vivida no enfrentamento do HIV/AIDS, distribuo os desafios nos campos da prevenção, da assistência/tratamento e dos direitos humanos, ressaltando que a crise econômica político/social, acirrada neste último ano, agrava ainda mais o que se precisa enfrentar. Estes campos não são estanques, mas interligados e devem ser enfrentados de forma integrada na resposta ao HIV/aids.
A – Prevenção: possivelmente um dos grandes desafios tem sido a introdução das assim chamadas novas tecnologias de prevenção, necessárias para compor as opções para a prevenção combinada. Por duas vezes neste ano, a introdução da PrEP (profilaxia pré-exposição) foi adiada e ainda não é uma realidade para a população. Um dos obstáculos para o acesso a esta forma de prevenção, já consagrada pela comunidade científica internacional, está relacionado com o alto preço do medicamento antirretroviral indicado para esta profilaxia, no caso o truvada, e as pendências jurídicas relacionadas à sua patente no Brasil.
Por outro lado, a PEP (profilaxia pós-exposição) encontra dificuldades em sua implementação. E entre as razões, está o desconhecimento de uma grande parte da população sobre esta profilaxia, preconceitos relacionados à sexualidade por parte dos profissionais de saúde, e poucos serviços disponíveis e preparados em diferentes capitais do Brasil, conforme já demonstrado em alguns estudos.
O estigma ainda relacionado ao HIV continua sendo, portanto, um impedimento para a prevenção combinada, já que valores e ideais conservadores avançam na sociedade e podem ainda, no caso da PrEP, considerar esta tecnologia, um “incentivo” ao sexo desprotegido e à “licenciosidade” sexual.
A crise política e econômica, que afeta alguns estados da nação, também pode ter sido usada para justificar o não financiamento de ações de prevenção. Um exemplo: participei da última Parada Gay de Porto Alegre, no dia 14 de novembro, como já fiz em algumas edições anteriores. Era notável a presença de centenas de adolescentes gays e os organizadores estimavam em 70 mil pessoas o total de participantes do evento. Enquanto que as pesquisas apontam que jovens gays têm sido um dos grupos populacionais mais afetados pelo HIV, me surpreendi que não havia distribuição de preservativos, nem de material educativo, como folhetos e cartazes, isto numa das capitais com mais altos índices de infecção pelo HIV no país. Ao contrário de edições anteriores, não havia barraquinhas de ONGs, ou mesmo das secretarias de saúde de governos, apenas um carro móvel da Prefeitura de Porto Alegre para testagem do HIV timidamente estacionado num dos locais de passagem da Parada.
A ausência das barraquinhas das ONGs pode ser justificada pela situação de penúria em que se encontram, por causa da falta de financiamento governamental e privado e muitas delas já estão quase que completamente sem recursos financeiros e humanos. No entanto, como justificar a tímida presença ou total ausência dos governos municipais da Grande Porto Alegre e estadual?
B – Tratamento/Assistência: o estado de recessão econômica que se agravou em 2016 também tem trazido consequências desastrosas ao SUS (Sistema Único de Saúde), já em grave situação de subfinanciamento refletida na falta de profissionais de saúde, instalações deterioradas, nas longas filas de espera para conseguir tratamento ambulatorial, leitos, exames etc.
No Rio de Janeiro, situações dramáticas nos serviços de saúde se repetem e avisam que o caos está próximo. A falta de pagamento do estado às OS (Organizações Sociais) contratadas para gerir hospitais públicos colocou em xeque este tipo de parceria entre o estado e estas organizações. A consequência maior é que as OS abandonam suas obrigações por falta de pagamento e a população paga, sofrendo com o fechamento de leitos, serviços lotados, escassez de exames laboratoriais, de imagem, entre outros. Certamente aí se inclui a atenção a milhares de pessoas vivendo com HIV/AIDS na capital com o segundo maior número de casos.
Apesar da difícil situação econômica, a mobilização da sociedade civil e o comprometimento de alguns setores governamentais federais conseguiram a introdução de um novo medicamento antirretroviral para a primeira linha do tratamento. Trata-se do dolutegravir, um remédio que pode ser usado como alternativa ao esquema inicial atual, que tem causado dificuldades de adesão em parte significativa de pessoas em início de tratamento, devido aos seus efeitos colaterais. Trata-se de uma grande vitória, mas os percalços encontrados neste caso nos remetem às dificuldades de incorporação de novos medicamentos num breve futuro, devido a questões de alto preço e de patentes abusivas, como já vimos na seção acima no caso do truvada, mas também para a ampliação do uso de medicamentos como o darunavir, e num breve futuro de acesso a novos medicamentos, como o TAF, entre outros. Apesar de o acesso universal aos antirretrovirais continuar apresentando bons resultados na vida das pessoas com HIV, garantir um tratamento atualizado e adequado continuará um grande desafio para governos, sociedade civil e cientistas, num contexto econômico e político cada vez mais desfavorável.
C – Direitos humanos: iniciativas como as tentativas de tramitação no Congresso do Projeto de Lei 198, que transforma em crime hediondo a transmissão do HIV, talvez sejam um dos exemplos mais claros das ameaças crescentes de um ambiente social cada vez mais conservador sobre as pessoas com HIV/aids. É um tipo de iniciativa que reforça os estigmas de “perigoso” em relação às pessoas vivendo com HIV/aids, e certamente poderá estimular o ódio e justificar violências de toda sorte, para além da ameaça ao direito à saúde, conforme aventado nas seções anteriores. Por outro lado, a realização de testagem compulsória para o HIV para fins admissionais, como por exemplo para o ingresso nas Forças Armadas, conforme foi noticiada na mídia, é um outro sinal de retrocesso, que também poderia justificar ações similares em outras instituições, ameaçando sobremaneira o direito ao trabalho das pessoas vivendo com HIV/aids.
Colocar os direitos humanos no centro da agenda de políticas e ações de controle para o HIV continua um imperioso desafio, tanto para garantir o acesso à prevenção como ao tratamento e à assistência, assim como para garantir uma cidadania plena às pessoas vivendo com HIV/AIDS. E aqui devem estar incluídos o acesso à seguridade social, ao trabalho e promoção de um ambiente social, cultural e legal livre de estigmas e discriminação.
D – A recessão econômica: alguns dos desafios aqui mencionados talvez já sejam velhos conhecidos daqueles que trabalham ou vivem com HIV/AIDS. O que os agrava sobremaneira, entre outros fatores, é a atual recessão econômica pela qual passa o país e tem justificado uma série de propostas de cortes orçamentários governamentais de gastos públicos. A PEC 241/55, atualmente em tramitação no Congresso Nacional, é um exemplo de iniciativa neste sentido, já que busca fixar um teto dos gastos públicos, incluindo saúde e educação, a partir do índice de inflação do ano anterior, para que estes gastos não cresçam para além da inflação.
Tal iniciativa tem recebido diversas análises críticas e mobilizado os movimentos sociais. Se aprovada, pode significar menos recursos para saúde e educação, o que certamente afetará os avanços conseguidos na resposta ao HIV/AIDS, já que pode ser um empecilho para a incorporação de novos medicamentos, para mais investimento no SUS e para a prevenção.
Não terei condições, nem espaço para ampliar qualquer análise sobre o impacto da recessão econômica na resposta à aids e sobre as propostas de cortes orçamentários na vida das pessoas vivendo com HIV/AIDS. No entanto, uma matéria sobre os efeitos da recessão publicada no jornal “O Globo” em 26 de novembro (Almeida, C et al., 2016) traz o caso da família de uma brasileira vivendo com HIV. Tomei a liberdade de reproduzir e adaptar aqui o relato sobre a situação desta mulher, esperando que a própria situação indique os desafios para uma vida com HIV/AIDS em situação de pobreza e num contexto de recessão econômica.
“Arroz, farinha, ovo, café e mortadela é a dieta da família de Maria Luzia dos Santos Rafael, de 42 anos. Mora em Fortaleza, em um dos bairros mais pobres e violentos da cidade, em uma casa com três cômodos com as duas filhas, genro e três netos. Ela é a provedora da família. Aposentada por invalidez, recebe um salário mínimo. Paga o aluguel de R$250,00, luz (R$60,00) e outros gastos da família.
— É assim que a gente vai vivendo. Eu me aposentei cedo, dentre as doenças que tenho coloque aí o HIV – lamenta Luzia.
As filhas e o genro não contam com qualquer benefício social, apenas com a solidariedade de Luzia. O genro está desempregado e há meses procura em vão por qualquer ocupação. Na casa da família de Luiza falta quase tudo. A casa é de chão batido e pouca luz, a água não é encanada, televisão não existe” (Almeida, C et al. 2016).
No duro contexto destes problemas, são as pessoas como Luzia que poderão sofrer as maiores consequências. Que a sua situação de vulnerabilidade sirva de alerta para as autoridades e para os ativistas, profissionais de saúde e toda a comunidade que trabalha com HIV/AIDS. Que possa orientar nossas reflexões e ações neste 1º de Dezembro.
Apesar das dificuldades atuais, não se deve perder de vista que num passado ainda recente, em contextos igualmente adversos, a mobilização social, interdisciplinar e intersetorial produziu resultados marcantes na resposta ao HIV/AIDS no Brasil. Que o 1º de Dezembro reforce a confiança e a força de todos aqueles que, em solidariedade, lutam contra o HIV/AIDS. E que assim consigamos vencer estes e os futuros desafios que a doença nos imponha.
Referência Bibliográfica: ALMEIDA, Cassia, CARNEIRO, Lucianne, COSTA, Daiane, LAVOR, Thays e GUILLINO, Daniel. Mais de 3,6 milhões na pobreza. O Globo, 26 de novembro de 2016.
[1] Texto publicado originalmente na Agência de Notícias da AIDS