Por Nilo Fernandez*
Segundo o dicionário Michaelis (2008), a palavra tecnologia, do grego τεχνη – “técnica, arte, ofício” – e λογια – “estudo”, significa o conjunto dos processos especiais relativos a uma determinada arte ou indústria. O termo tecnologia envolve o conhecimento técnico e científico e as ferramentas, os processos e os materiais criados e/ou utilizados a partir de tal conhecimento e das necessidades de cada cultura e sociedade, dependendo de cada momento histórico.
As tecnologias relacionadas à prevenção podem ser leves ou duras. Leves são as ligadas às atividades de gestão, elaboração de ações de prevenção e desenvolvimento de protocolos. As tecnologias duras se referem a produtos, como as camisinhas femininas ou masculinas (Giana & Kalichman, 2009).
Até 1995, cerca de 1 milhão e meio de crianças encontravam-se infectadas pelo HIV, 90% delas por transmissão da mãe para o filho. Segundo a Organização Mundial de Saúde, este número poderia chegar a 10 milhões até o ano 2000. O estudo ACTG 076, em 1994, comprovou a capacidade da utilização de um antirretroviral, a Zidovudina (AZT), como uma tecnologia profilática durante a gestação, o parto e para o bebê após o nascimento, durante seis semanas. Com esta tecnologia, a transmissão vertical do HIV da mãe soropositiva para o seu bebê foi reduzida em dois terços e propiciou a possibilidade de técnicas de reprodução assistida para casais sorodiscordantes (Connor, 1994). A partir dessa descoberta, a ciência vem investindo em novas tecnologias duras com a utilização de antirretrovirais como forma de prevenção. Entre as denominadas novas tecnologias de prevenção pode-se enumerar: profilaxia pós-exposição; tratamento como forma de prevenção (TFP); autotestagem domiciliar para o HIV; circuncisão masculina, microbicidas; profilaxia pré-exposição sexual (Global HIV Prevention Working Group, 2006).
A profilaxia pós-exposição sexual (PEP)
A profilaxia pós-exposição sexual (PEP) é a utilização de antirretrovirais dentro de 72 horas, durante 28 dias, como forma de prevenção, inibindo a replicação viral e a transmissão do HIV para todo o organismo. Essa profilaxia, iniciada em 1996, foi primeiramente utilizada em acidentes perfurocortantes com profissionais de saúde e mulheres que tivessem sofrido estupro. Posteriormente passou a ser usada nos casos de acidente com rompimento do preservativo, quando houvesse potencial risco de exposição sexual ao HIV, com parceiros sabidamente positivos (Schechter et al., 2004).
Embora esta tecnologia exista desde 2007 (Brasil, 2007) não foi amplamente divulgada e incorporada pelos serviços. A partir de 2010 as diretrizes sobre seu uso foram atualizadas, incorporando a recomendação da utilização a partir do tipo de práticas sexuais e da prevalência do HIV em populações específicas, conforme tabela 1, encontrada no site do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde (Brasil, 2010: www.aids.gov.br – Acessado em: 23/12/2014).
Tratamento como forma de prevenção (TFP – sigla em inglês TasP) / “Testar e Tratar”
O tratamento como forma de prevenção (TFP) é tecnologia de prevenção que está baseada no estudo HPTN 052. Esta pesquisa teve como objetivo principal avaliar a capacidade de os antirretrovirais protegerem o parceiro negativo em relações sexuais com parceiros sorodiscordantes positivos em que o preservativo não é utilizado ou rasga, e avaliar o acompanhamento clínico e comportamental dos casais. A pesquisa acompanhou 1.763 casais sorodiscordantes, divididos em dois grupos: em um deles os parceiros positivos tomavam antirretrovirais (ARV) imediatamente e, no outro, os positivos somente tomavam antirretrovirais quando o CD4+ era igual ou inferior a 250 cel./mm3, que era o padrão de início de terapia antirretroviral à época.
Os resultados demonstraram que dos 28 infectados pelo HIV apenas um estava no grupo de ARV imediato, sugerindo que a adesão correta ao uso de antirretrovirais por parceiros soropositivos para o HIV, tornando a carga viral indetectável, forneceu proteção de 96% aos parceiros soronegativos em relação àqueles soropositivos que não utilizaram antirretrovirais. Outro dado importante: não foram encontradas algumas infecções oportunistas, como, por exemplo, a tuberculose extrapulmonar, nos parceiros positivos que utilizaram medicação imediatamente (Grinsztejn et al., 2012).
Conclui-se do estudo que fazer o teste anti-HIV e usar a terapia antirretroviral precocemente como forma de prevenção representam importante tecnologia de prevenção contra a epidemia de AIDS e como forma de tratamento. Essa política tem sido denominada “Testar e tratar” (na sigla em inglês: TNT – Test and Treat) (Cohen, 2011). Os resultados do estudo demonstraram aos responsáveis pela gestão dos programas e políticas de controle do HIV e AIDS a necessidade de aumentar a cobertura da testagem anti-HIV e o início mais precoce do tratamento como importante estratégia para melhorar a qualidade de vida das pessoas vivendo com AIDS e para romper com a cadeia de transmissão do HIV entre pessoas infectadas e seus parceiros. Neste sentido, o Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais brasileiro, no Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Manejo da Infecção pelo HIV em Adultos, de dezembro de 2013, estimula início imediato de TARV para todas as pessoas vivendo com HIV/AIDS (PVHA) (Brasil, 2013).
Embora entre 2005 e 2012 tenha havido um aumento da distribuição de testes rápidos nos serviços de saúde do Brasil, que passou de 509 mil para 3,8 milhões de unidades nesse período, estima-se que 150.000 pessoas – 1 em cada 5 – não sabem que estão infectadas pelo HIV (O Globo, 2014). Alguns estudos têm descrito barreiras estruturais e socioculturais como razões para a cobertura da testagem para o HIV não atingir um número maior da população. Entre as estruturais estaria a falta de dinheiro da população para o transporte até um serviço e o tempo de espera que é gasto para a realização de todos os procedimentos para o teste, incluídos aí o aconselhamento coletivo e individual pré-teste e pós-teste. Entre as barreiras socioculturais, encontram-se a baixa percepção do risco, medo de um resultado positivo, a qualidade ineficiente do acolhimento e o preconceito com pessoas pertencentes a populações mais vulneráveis, como HSH, travestis, transexuais, profissionais do sexo e usuários de drogas (Mackellar, 2011; Finlayson, 2011).
No Brasil, a partir de 2003, vários projetos e programas foram desenvolvidos para a ampliação da cobertura da testagem e do aconselhamento para HIV. Um deles é o programa Fique Sabendo, que estimula a realização de testagem rápida para HIV, sífilis, hepatite B e hepatite C em locais de grande concentração de pessoas (Brasil, 2013).
O Quero Fazer é outro programa criado em parceria do Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde com a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e foi coordenado nacionalmente pela Associação Espaço de Prevenção e Atenção Humanizada (EPAH). O objetivo foi incrementar a cobertura da testagem utilizando unidades móveis (trailers) de testagem anti-HIV em locais e horários de maior frequência das populações-alvo: gay, travesti e HSH (Brasil, 2013).
A partir das justificativas da população de HSH da falta de acolhimento e discriminação vivenciadas nos serviços de saúde como motivo para a não realização da testagem anti-HIV, Champenois e outros pesquisadores realizaram um estudo na França com a testagem do HIV para HSH feita por militantes (não profissionais de saúde) da ONG AIDES, capacitados na realização de todos os procedimentos, inclusive o teste rápido (Champenois et al., 2010). Os resultados da pesquisa mostraram uma satisfação de 92% dos usuários com teste negativo e 70% dos que tiveram resultado positivo com o atendimento na ONG. Os dados demonstraram que as populações que sofrem mais discriminação no seu dia a dia e têm menor acesso aos serviços de saúde e testagem são as mais vulneráveis para a infecção do HIV e AIDS (Champenois et al., 2010).
Autotestagem para o HIV
O Centro de Controle e Prevenção de Doenças Americano (US Centers for Disease Control and Prevention/CDC) recomenda que populações mais vulneráveis para o HIV – entre estas os HSH – procurem fazer a testagem anti-HIV a cada três a seis meses por ano (CDC, 2013). Esta recomendação de frequência de testagem não existe no Brasil.
A epidemia do HIV no Brasil está concentrada em algumas populações mais vulneráveis, entre estas as dos homens que fazem sexo com homens (HSH), cuja prevalência é estimada em torno de 13,6% a 14,4% (Malta et al., 2010). Em um estudo com a população de HSH no Brasil, 50% das pessoas que tiveram um resultado positivo para o HIV não tinham consciência de sua infecção (Kerr et al., 2012). Estes dados apontam para a necessidade de estratégias para aumentar a cobertura da testagem para a população em geral e, em especial, para os HSH.
Em 2012, a possibilidade de as pessoas realizarem a autotestagem para o HIV sozinhos em suas residências surgiu como estratégia para aumentar a testagem. Um estudo com HSH relatou que 95% dos homens randomizados para autotestagem de HIV, com uma versão domiciliar do teste para anticorpos no fluido oral, descreveram o teste como fácil de usar. Além disso, a maioria dos homens precisou de pouco aconselhamento ou suporte técnico (Katz, 2012).
Um estudo com homens gays e bissexuais de alto risco para a infecção pelo HIV na cidade de Nova York descobriu que os homens eram capazes de usar a autotestagem por fluido oral para selecionar com sucesso possíveis parceiros sexuais. Cinco novas infecções por HIV foram diagnosticadas durante esse estudo, e poucos problemas foram relatados em relação aos kits para autotestagem (Carballo-Diéguez, 2012).
Pesquisa na internet (Sharma, 2011), nos Estados Unidos, com 6.163 HSH negros, relatando sexo anal desprotegido ou não conhecendo seu status para o HIV, revelou que 3.833 (62%) referiram ter maior probabilidade de fazer a autotestagem com um kit comprado na farmácia e 1.236 (20%) disseram que não fariam a autotestagem.
Os estudos sugerem que a autotestagem para o HIV pode ser uma alternativa para incrementar a cobertura da testagem para o HIV, desde que sejam feitas pesquisas para compreender melhor o uso, as formas de distribuição dos kits, a necessidade de aconselhamento pré e pós-teste e impactos que o recebimento de um resultado positivo em casa poderia causar e maneiras de minimizá-lo (Lippman et al., 2013). A partir dessas análises, a autotestagem poderia ser implementada de maneira criteriosa para algumas populações mais vulneráveis que têm dificuldade de acesso aos serviços tradicionais de testagem.
Levando em consideração os resultados dos estudos, o Departamento de Administração de Alimentos e Drogas do EUA (Food and Drug Administration – FDA) aprovou em 2012 o teste domiciliar do HIV através de fluido oral, argumentando que os benefícios são muito maiores do que os possíveis riscos (FDA, 2012). O insumo está sendo vendido nas farmácias dos EUA (Schwan, 2012).
Circuncisão masculina
A circuncisão masculina como prevenção contra o HIV foi avaliada em três ensaios clínicos aleatórios com aproximadamente 10 mil homens heterossexuais com relações vaginais, no Quênia, em Uganda e na África do Sul. Todos os participantes receberam um conjunto padrão de medidas de prevenção, que incluiu tratamento de infecções sexualmente transmitidas (DST), camisinhas e aconselhamento para adoção de mudanças de comportamento. Os participantes que foram circuncidados e receberam o conjunto de medidas de prevenção tiveram 60% menos infecções do que os do grupo de controle, que receberam apenas o conjunto de medidas de prevenção (WHO/UNAIDS, 2012). O estudo mostrou que a circuncisão poderia ser eficiente forma de prevenção para homens heterossexuais com relações vaginais com mulheres sem preservativos. Os estudos ainda não comprovaram a eficácia da circuncisão como forma de prevenção nas relações homossexuais e no sexo anal. (…)
*Psicólogo, doutor em Ciências da Saúde pelo Instituto Nacional de Infectologia (INI/Fiocruz) e pesquisador responsável pela área de Aconselhamento em DST e AIDS e Educação Comunitária no Laboratório de Pesquisa Clínica em DST e AIDS do INI/Fiocruz
Leia o artigo completo no Boletim ABIA nº 60.