Gestores, ativistas e especialistas avaliaram a 10ª edição da Conferência do IAS sobre Ciência do HIV (IAS 2019). Do dia 21 ao 24 de julho mais de 6.000 participantes se reuniram na Cidade do México para discutir os avanços nas pesquisas referentes ao HIV/AIDS. Realizada a cada dois anos, este é considerado o mais importante evento sobre ciência do HIV, sendo um fórum para cientistas, clínicos, especialistas em saúde pública e líderes comunitários examinarem os mais recentes desenvolvimentos de pesquisa em HIV.
Para Maria Clara Gianna, coordenadora adjunta do Programa Estadual de DST/AIDS de São Paulo, o destaque foi a experiência de outros países na implementação de programas. “Gostei bastante da conferência. A Austrália demonstrou a importância de avançar na PrEP, me chamou a atenção a importância da enfermagem em seu programa. Precisamos incluir mais usuários nos serviços que ofertam a PREP talvez este possa ser uma estratégia também adotada no nosso país. Também pude acompanhar as apresentações da África do Sul em vinculação e retenção das pessoas vivendo com HIV nos serviços de saúde. Em São Paulo, estamos priorizando esta questão e é sempre importante conhecer outras experiências.”
“Outro ponto importante foram as apresentações que demonstraram a importância de diagnosticar e iniciar o tratamento no mesmo dia, o que significa uma melhor adesão. A experiência da Tailândia em serviços de Saúde Integral destinado à transexuais é muito similar ao ambulatório que temos no Centro de Referência e Testagem de São Paulo, muito bom sabermos que estamos no caminho certo. Lutar contra o preconceito e discriminação das pessoas vivendo com HIV/AIDS e populações mais vulneráveis continua sendo um ponto de muito destaque. Mesas em que as populações que estavam sendo tratadas não tinham seus representantes com direito à fala foram muito questionadas. Fica a sensação que precisamos caminhar no aprimoramento da resposta em nosso país. Temos muito o que fazer”, concluiu.
Veriano Terto Jr., vice-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), afirma que, já que se trata de um encontro científico, “foi falado muito sobre avanços tanto em novas drogas, como em novas combinações, tipos de combinações. No entanto, essa ciência que está sendo difundida aqui, com essas bons resultados e bons produtos ainda demora muito à chegar até a maioria das pessoas que precisam. Já são 14 milhões de pessoas sem acesso a medicamentos para o HIV no mundo, nem mesmo os medicamentos mais antigos, além disso há muitas pessoas que estão, nos países em desenvolvimento, acessando drogas defasadas quando já há medicamentos muito melhores, com menos efeitos colaterais e mais adaptados para suas necessidades.”
Já o presidente da Unite, Rede Global de Parlamentares na Luta contra HIV/AIDS, Ricardo Baptista, ressaltou o que considera o diferencial dessa edição da conferência, o foco nas questões sociais. “É preciso passar uma mensagem muito clara: a ciência só é útil se chegar às pessoas. Nesse sentido, os políticos tem a responsabilidade de ouvir a ciência diz, de traduzir isso em políticas concretas para que se possa conseguir resultados para as pessoas. Quando olhamos para a conferência, refletimos sobre como a AIDS forneceu ao mundo o que talvez seja o mais importante ativismo em saúde que existe no mundo, as pessoas que vivem com HIV, as ONGs, as organizações de base comunitária possuem uma força brutal de transformação. Depois temos o poder científico, com ferramentas poderosas que nos permite continuar nessa atuação e depois temos os governos que tem um lugar à mesa nas organizações multilaterais. No entanto, hoje os parlamentares concentram a decisão dos poderes, mas não estão presentes na discussão. Por isso, entendemos que a política pode ser um elo para unir forças na luta contra AIDS.”
Para Felipe de Carvalho, da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) a conferência foi interessante do ponto de vista científico, mas ainda precisa do olhar social de maneira mais crítica. “A gente teve uma série de anúncios interessantes, os avanços da fase III para a vacina, outros formatos de utilização da PrEP, teve também os estudos do dolutegravir para mulheres grávidas. Por isso, do ponto de vista científico as novidades foram bem relevantes, mas o que a gente sente falta nesse tipo de conferência é que acaba prevalecendo um clima de otimismo e de progresso que é muito complicado porque mascara a ideia de que a aids ainda é uma grande crise de saúde pública.
“A gente tem como prova disso, os dados que o UNAIDS divulgou recentemente mostrando que muitas das metas estão longe de serem alcançadas, especialmente as metas relacionadas à mortalidade, com 770 mil mortes em 2018 quando a meta era chegar em 2020 com 500 mil mortes. Então acaba que fica um tom de triunfo quando na verdade a gente vive uma grande crise e associo isso a dois problemas que não são muito discutidos na conferência: primeiro que as tecnologias mais básicas não estão chegando onde deveriam, já que pacotes básicos para tratamento do HIV não existe na maioria dos centros de saúde do mundo (o que inclui exames de CD4 e tuberculose), e o segundo ponto é que sabemos também que muitas dessas tecnologias não vão chegar por conta de preço. Então a gente vê tudo isso com uma certa desconfiança e preocupação. Parece que estamos vivendo um mundo divido, onde se tem tecnologia de ponta nos países mais ricos, mas os países pobre não tem acesso ao que há de melhor. Essa é a repetição de um drama que já vivemos. Então senti falta na conferência de mais discussões sobre como fazer esses grandes avanços chegarem a todo mundo. Houve pouca discussão sobre preço, sobre acesso. Então senti falta desse olhar mais crítico.”
Pisci-Bruxa é ativista vivendo com HIV, faz parte do coletivo Loka de Efavirenz, e pela primeira vez participou da Conferência Científica. “É fundamental pensarmos interseccionalmente para construirmos políticas públicas que desmontem o racismo estrutural, o machismo, a homofobia, a transfobia; para que tenhamos políticas que garantam o acesso à terra para pessoas indígenas. Tudo isso é tão fundamental quanto a própria produção de tecnologia para que nós ‘posithivas’ estejamos vivas, e sobretudo para que não haja algumas que possam sobreviver porque acessam tratamento e outras não.”
“A situação político e econômica da América Latina está assustadora. Na Venezuela, houve um corte das políticas públicas e isso está a cara do Brasil. Parece que estamos caminhando para um mesmo colapso social, na cultura, na saúde”, disse Psici. “Enquanto isso, em países como Costa Rica por exemplo, a catástrofe ambiental destruiu a infraestrutura de várias cidades, que ficaram até 9 meses sem energia elétrica, inclusive em hospitais. No Haiti também não foi diferente. Apesar de ter sido mostrado a construção de um moderno laboratório de tratamento para HIV perto de Porto Príncipe, pouquíssimas pessoas acessam por conta do estigma. Nesse sentido, acessar as tecnologias de tratamento e prevenção ao HIV/AIDS esbarra em outras violências.”
Em relação à população travesti e transexual, Pisci defende que o olhar sobre a violência social não pode ser desvinculado. “O tratamento esbarra em uma série de violências cotidianas, com agressões físicas e verbais, falta de acesso ao mercado formal de trabalho e outras situações que levam as pessoas à depressão e à uma péssima saúde mental, incluindo altas taxas de suicídio e mais de 20% de abandono dos tratamentos com antirretrovirais. Ao final de uma plenária muitas travestis questionaram o porquê das entrevistadas não terem vindo apresentar. Infelizmente a barreira linguística foi apresentada como principal argumento, mas bastante questionada por se tratar de uma conferência enorme e com possibilidade de tradução simultânea. Além do que sabemos que a tradição da ciência tende a colocar pessoas como objetos de pesquisa.”
“Na Nigéria, há uma taxa de infecção de 24 mil casos em bebês por ano! E a resposta tem sido via religião! Há treinamento de pessoas religiosas sobre como atuar na família, sobretudo em momentos como o chá de bebê. E os resultados tem sido maior detecção de pessoas mulheres vivendo com HIV/AIDS nos chás de bebês do que nos próprios ambulatórios de saúde”, disse ao enfatizar a importância de se pensar novas estratégias para o combate da epidemia.
“O que ficou bastante nítido nesta conferência é que não há como evitarmos uma politização maior das discussões sobre AIDS. A AIDS é extremamente política, e só conseguiremos pensar em respostas eficazes e que realmente “não deixem ninguém pra traz”, como tem sido repetido sistematicamente por aqui, se sairmos de uma discussão meramente biomédica e de protocolos clínicos. Não somos vetores de doença. E queremos a cura!”, finaliza.
Fonte: Agência de Notícias da AIDS