O Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI), coordenado pela ABIA, se posicionou em relação ao acordo divulgado esta semana pela mídia entre o laboratório público estadual Bahiafarma e a farmacêutica Gilead para produção de medicamentos do tratamento de HIV/AIDS e Hepatites B e C. No documento, o GTPI chama atenção para a falta de informação sobre o acordo, entre outros problemas.
Na carta, o grupo solicita a suspensão da parceria por não contemplar a participação social e prejudicar o interesse público. O documento também menciona o histórico de experiências negativas entre convenções públicas com laboratórios multinacionais. Segundo o GTPI, a sociedade civil deve participar da avaliação da melhor estratégia de desenvolvimento nacional e ampliação do acesso a medicamentos.
Leia o documento completo a seguir:
Preocupações da sociedade civil sobre o acordo entre Bahiafarma e Gilead para produção de medicamentos para hepatite C
Mais uma vez nos deparamos com um anúncio de um acordo para produção local e pública de medicamentos estratégicos para o SUS e essenciais para a população brasileira sem nenhuma transparência por parte do poder público. A total falta de informações sobre os termos do acordo exclui a participação da sociedade civil e impossibilita o diálogo com a sociedade, levantando mais uma vez diversas preocupações sobre essa política.
A hepatite C atinge, segundo estimativas do governo brasileiro, aproximadamente 1,5 milhão de pessoas no Brasil. Em 2014, foi lançado pela empresa estadunidense Gilead o sofosbuvir, medicamento que aumenta sensivelmente as possibilidades de cura para as pessoas com hepatite C. Os tratamentos disponíveis até então, além de extremamente tóxicos, eram muito pouco efetivos.
O sonho da cura começou a se tornar pesadelo para pacientes em muitos países, onde a Gilead tem patentes concedidas, devido ao altíssimo preço cobrado pela empresa pelo medicamento. Em alguns países, como nos EUA e países da Europa ocidental, o custo do tratamento de doze semanas ultrapassou os US$80.000 por paciente. Em outros países, onde não há patente, há genéricos disponíveis a menos de US$1.000, por paciente. No Brasil, o governo brasileiro negociou um preço de US$7.500 por paciente; bem abaixo de US$80.000, mas ainda muito acima de US$1.000 e ainda muito mais caro do que o custo de produção estimado: aproximadamente US$100 por paciente.
Desde o lançamento do sofosbuvir, o GTPI/Rebrip – Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos, coletivo de organizações da sociedade civil que há mais de 10 anos luta pela garantia de acesso a medicamentos no Brasil, sob a perspectiva de defesa do interesse público, acompanha o tema com atenção.
No Brasil, o pedido de patente ainda está em análise pela ANVISA e pelo INPI, ou seja, não há patente concedida no território nacional. O GTPI apresentou aos examinadores de INPI e ANVISA evidências que demonstram que o pedido de patente não cumpre os requisitos legais necessários para ser concedido. Pedido de patente semelhante para o sofosbuvir já foi rejeitado em outros países, como Egito e China.
Na manhã do dia 12 de agosto, fomos surpreendidos por fragmentos de informação sobre um acordo entre que a farmacêutica Gileade o laboratório público estadual Bahiafarma, para produzir três medicamentos para hepatite C, ao que parece, incluindo o sofosbuvir.
Diante da falta de informações e histórico de más experiências envolvendo parcerias com laboratórios multinacionais, o GTPI/Rebrip vem a público manifestar algumas preocupações sobre o acordo. Abaixo colocamos algumas perguntas que emergem num contexto de desinformação e desrespeito ao princípio do SUS de garantia de participação social.
– Quais os termos do acordo? Há garantia de compra dos medicamentos da Gilead com exclusividade por um determinado período de tempo? Se sim, por quanto tempo? A exclusividade de compra se estende mesmo depois da obtenção do registro sanitário do medicamento nacional?O Ministério da Saúde já se comprometeu a comprar os medicamentos desenvolvidos por meio desta parceria?
– Qual o preço pelo qual o medicamento vai ser adquirido? Tanto durante o período de compra da Gilead, quanto posteriormente quando houver a fabricação em parceria com a Bahiafarma?
– Não está claro se este acordo está sendo realizado dentro do marco das PDP – Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo. No caso das PDPs, há o envolvimento de um laboratório privado nacional, para produção do princípio ativo. Há um parceiro privado nacional nesse caso?
– Imaginamos que o objetivo da parceria com a empresa Gilead é a transferência de tecnologia para o laboratório público Bahiafarma. Qual vai ser o papel da Bahiafarma nessa parceria? Vai ser somente a produção da formulação final do medicamento, como geralmente ocorre com as PDPs? O laboratório não possui capacidade para fazer isso por conta própria?
– O acordo provavelmente envolve uma licença voluntária da patente do sofosbuvir no Brasil, mesmo sem haver patente concedida no país. Por que optou-se por uma licença voluntária com a Gilead, precedida por uma experiência frustrada com o medicamento atazanavir, ao invés de se utilizar outras estratégias, como a licença compulsória, utilizada com sucesso no caso do medicamento efavirenz?
– Há informações sobre um projeto de parceria em andamento entre o laboratório público Farmanguinhos-Fiocruz e Microbiológica para produção 100% nacional do sofosbuvir, sem envolvimento do laboratório multinacional Gilead. A Microbiológica já possui o conhecimento necessário para produção do princípio ativo do sofosbuvir sem a necessidade de transferência de tecnologia pela Gilead. Há informações, inclusive, de que já foi fabricado um lote piloto com tecnologia nacional. Como esse acordo entre a Bahiafarma e a Gilead interfere nesse projeto de produção do sofosbuvir 100% nacional?
Diante da total falta de transparência dos termos do acordo e das preocupações acima colocadas, o GTPI solicita a suspensão do referido acordo de forma a avaliar, conjuntamente com a sociedade civil de defesa do interesse público, a melhor estratégia para desenvolvimento nacional dos medicamentos e ampliação do acesso para as pessoas que deles necessitam.