Durante todos os dias da Copa do Mundo, o Observatório Prostituição, em parceria com a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), a Ong Davida- Prostituição, Direitos Civis e Saúde, o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro e ainda com a Rede Brasileira de Prostitutas está realizando pesquisa etnográfica nos principais pontos de prostituição do Rio de Janeiro (Copacabana, Ipanema, Centro, Lapa e Vila Mimosa), Fortaleza, Recife, São Paulo e Brasília. O objetivo é monitorar os impactos da Copa do Mundo nas áreas de prostituição das cidades-sede (presença de estrangeiros, concentração ou aumento da prostituição em determinados setores das cidades), as ações policiais e de organizações governamentais e não-governamentais que vêm atuando nessas áreas ora para reprimir o trabalho sexual de menores, ora para promover suas causas e políticas concernentes ao trabalho sexual.
A pesquisa visa também observar as condições de trabalho nesses lugares durante os jogos e as redes formadas para viabilizar o trabalho sexual no período, além de acompanhar o noticiário nacional e internacional sobre a prostituição no Brasil durante a Copa do Mundo. O Observatório da Prostituição é um projeto de extensão do Laboratório de Etnografia Metropolitana-LeMetro/IFCS-UFRJ que reúne professores, pesquisadores e alunos da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ, do Núcleo de Estudos de Gênero PAGU da Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP e da Universidade Federal Fluminense-UFF. Veja a seguir as conclusões preliminares sobre os impactos da Copa do Mundo e a prostituição. O relatório final deverá ser divulgado em setembro.
Considerações preliminares das primeiras 2 semanas no Rio de Janeiro:
12 junho – 26 junho
O fechamento do Balcony Bar e Hotel Lido inaugurou o estabelecimento de uma “cidade de exceção” destinada a funcionar durante o período de realização desse megaevento esportivo.
No dia de abertura da Copa do Mundo, policiais e imprensa foram até o Balcony Bar e ao Hotel Lido, ambos no entorno da Praça do Lido, em Copacabana, os primeiros para fechar os estabelecimentos e a segunda para registrar e divulgar a operação. Este foi um dos episódios mais relevantes, no Rio de Janeiro, no dia de abertura da Copa do Mundo.
De acordo com o Ministério Público, “a conduta [no Balcony] reforça uma imagem depreciativa do Brasil, que passa a ser visto internacionalmente como um país que permite o turismo sexual”. A declaração ressalta o temor maior dos agentes públicos com a suposta imagem do país, em detrimento dos direitos dos cidadãos de um país em que a prostituição não figura como crime.
Diante disso, cabe ressaltar que o Brasil não tem leis, portanto, contra o turismo sexual, uma vez que a prostituição é permitida. Além disso, até agora o Ministério Público não ofereceu provas de que os dois estabelecimentos em questão eram, de fato, envolvidos em quaisquer atividades ilegais. É significativo que, até o presente momento, ninguém tenha sido preso em conexão com esses dois casos, enquanto os dois estabelecimentos permanecem fechados.
Apesar do grande contingente policial na área, sobretudo ao lado de alguns bares da orla e ao redor da Praça do Lido, não há constrangimento, como de fato não deveria haver, à vida civil de mulheres que ali permanecem, a trabalho ou não, nem em suas negociações com potenciais clientes.
Fechamento do Balcony e Hotel Lido não afetou o movimento e o número de profissionais do sexo e clientes na região.
O fechamento no dia de abertura da Copa, embora de valor simbólico inquestionável quanto à política de repressão do trabalho sexual, apenas restringiu a área onde mulheres podem trabalhar com segurança, dispersando o movimento para a praça, calçadas e ruas próximas. Algumas boates existentes naquele setor, e que há anos haviam perdido clientes para bares abertos mais recentemente, voltaram a receber grande número de clientes e, diante de suas portas, as filas de clientes voltaram a se formar (Barbarella e Cicciolina).
O fechamento dos dois estabelecimentos não deixou de suscitar polêmica mesmo entre prostitutas que ali trabalhavam. Algumas consideravam injustas as acusações contra os donos dos estabelecimentos (exploração de menores, sobretudo). Outras afirmavam que eram abusivos os preços ali praticados, e era disso que reclamavam, pois os clientes acabavam gastando muito consumindo no bar. Agora, segundo elas, os clientes negociam o programa diretamente na praça, o que lhes permite fazer mais programas e por um bom preço.
Há relatos de prostitutas sobre o aumento de vulnerabilidade à violência e roubo após o fechamento do Balcony e do Hotel Lido.
O fechamento do Balcony e do Hotel Lido fez com que uma maior insegurança surgisse, expondo as mulheres a situações de violência. Luana (nome fictício) menciona:
Antes eu ia só no Lido, não ia no apartamento dos clientes. O Lido tem porteiro, tem câmeras no corredor e é perto, aqui tem muita polícia, né. Agora indo pros apartamentos a gente acaba sendo furtada, agredida, roubada muitas vezes…muitas vezes mesmo… Tem homens que levam mulheres, chegam lá em 3 e assaltam. Leva na esquina, fala que vai fazer programa no hotel, quando chega na esquina assaltam as mulheres.
Ela relata, ainda, uma situação de violência que vivenciou na noite anterior à entrevista:
Eu fui fazer um programa na casa de um chileno que cheira cocaína, ele ofereceu cocaína, eu disse que não usava droga para fazer o programa e ele se sentiu insatisfeito. Antes que eu terminasse de colocar a roupa pegou o dinheiro de volta e me jogou fora do apartamento! Quase quebra a minha perna, quando eu puxei a perna o meu salto ficou preso na porta.
Grosso modo, o número de prostitutas na Zona Sul dobrou nesse período.
Copacabana é um dos principais pontos das atividades da Copa do Mundo, no Rio, junto com o Maracanã. As atividades dos turistas são, em grande parte, concentradas nestas regiões, e quando eles procuram profissionais do sexo, o fazem nas proximidades.
Isso pode ser pelo desconhecimento dos turistas potencialmente interessados na prostituição sobre outras áreas existentes na cidade ou, ao contrário, o aumento da sensação de segurança em determinadas áreas; a imagem que buscam da mulher brasileira, juntamente com seu cenário; e, ainda, o baixo orçamento dos visitantes torcedores para atividades outras e eventuais deslocamentos pela metrópole.
A prostituição nas outras regiões do Rio de Janeiro tem declinado de uma forma significativa.
Há algumas razões possíveis e mais evidentes para o declínio do mercado do sexo, como a concentração de pessoas em determinadas áreas da cidade e o grande número de feriados. Ou seja, a cidade está praticamente vivendo dias exclusivamente dedicados à Copa do Mundo. A Copa tem perturbado completamente o calendário de trabalho no Rio de Janeiro, uma vez que foi decretado feriado nos dias de jogo na cidade e também naqueles em que a seleção entra em campo. Como resultado, os profissionais do sexo que trabalham nas regiões centrais da cidade, predominantemente na Vila Mimosa e nas pequenas termas e boates do centro, enfrentaram um declínio significativo no numero de clientes.
Esta perda levou parte das mulheres que geralmente trabalham nestas áreas a migrar para as áreas de prostituição da Zona Sul: Ipanema e, sobretudo, Copacabana, onde esperam encontrar turistas. Uma mulher com quem falamos nos disse que estava trabalhando na rua, em Copacabana, para recuperar as oportunidades perdidas na sauna onde costuma trabalhar, no centro da cidade. Ela também observou que não gostava da prostituição de rua e mostrou-se cautelosa, evitando trabalhar com uma clientela embriagada.
A demanda pela a prostituição não cresce, pois, com os turistas da Copa.
A maioria dos turistas estrangeiros que chegaram aqui até agora vêm de outros países sul-americanos e não têm grande quantidade de renda disponível. A presença de norte-americanos, turistas brasileiros e europeus aumentou um pouco em locais de prostituição na Zona Sul, mas a um nível um pouco abaixo do que seria normalmente comum ver durante o Carnaval ou nas festas de fim de ano.
Enquanto isso, a oferta tem se expandido. Além disso, prostitutas que comumente trabalham em outros dos quase 300 pontos de prostituição da cidade disputam, em poucos pontos concentrados em um setor da Zona Sul, os turistas com mulheres e homens que não são necessariamente profissionais do sexo, mas estão dispostos ao sexo com os turistas.
Os preços do programa estão, por isso, caindo na Zona Sul e os profissionais do sexo estão reclamando da dificuldade de encontrar clientes dispostos a pagar o preço estipulado.
Dizem que são extenuantes as negociações, um sinal claro da oferta superior à demanda. Uma prostituta comentou: “Ontem à noite na Vila as meninas falaram que estava cheio de gringos, todos sem grana, querendo pagar barato.”
A prostituição masculina gay no Rio de Janeiro também está vivendo um grande declínio durante a Copa do Mundo, principalmente devido à reputação heteronormativa no futebol internacional.
Conclusões
Até agora, nossa pesquisa indica que não houve aumento na prostituição motivado pela Copa do Mundo, tal como mídia e órgãos do governo haviam previsto. O que está acontecendo é uma concentração de prostitutas em um único setor da cidade. Os turistas estão indo para os pontos de prostituição tradicionalmente frequentados por turistas, principalmente na Zona Sul do Rio de Janeiro.
Dos 279 pontos (endereços) de prostituição mapeados na cidade antes da Copa do Mundo, apenas 16 apresentam um aumento de prostitutas e turistas. Todos os demais pontos da cidade estão praticamente vazios, com mulheres reclamando a perda da clientela e dos ganhos durante a Copa do Mundo.
Até o momento, não temos conhecimento de quaisquer novos pontos de prostituição surgidos durante a Copa. Também não encontramos trabalhadores do sexo que tivessem vindo para o Rio de Janeiro especialmente para trabalhar durante o evento. Isso, em parte, foi ocasionado pela natureza dispersa do evento, com doze cidades-sede. Encontramos mulheres de outras regiões do Brasil antes dos jogos, que estavam voltando para suas cidades de origem, precisamente porque elas achavam que essas áreas seriam mais rentáveis para o trabalho sexual do que o Rio durante a Copa.
Uma nota sobre as terminologias: exploração sexual, tráfico de pessoas e prostituiçãoo
Os pesquisadores associados ao Observatório da Prostituição são contra a exploração sexual de menores e o tráfico de pessoas. Porém, consideramos importante qualificar esses dois conceitos. Em primeiro lugar, eles não devem ser confundidos com as práticas de pessoas adultas que exercem livre e consensualmente a prostituição, sejam esses adultos brasileiros ou estrangeiros. Sexo pago entre adultos é legal no Brasil, sejam eles brasileiros ou estrangeiros. Considerando que as Nações Unidas e a Organização Internacional de Turismo definem o turismo sexual como sendo realizado por “pessoas que usam a infraestrutura turística de viajar para terras estrangeiras e se envolver em sexo comercial com os moradores locais”, isto significa que o turismo sexual no Brasil não é ilegal.
Sexo comercial com pessoas com idade inferior a 18 anos não é turismo sexual: é exploração sexual de menores e isto é crime no Brasil, sejam os praticantes brasileiros ou estrangeiros . Da mesma forma, forçar alguém a se envolver em atividades sexuais não é nem turismo sexual, nem prostituição: é estupro e/ou exploração sexual .
O governo brasileiro nunca lançou estatísticas coerentes sobre quantos casos de exploração sexual envolvem os visitantes estrangeiros no Brasil. Dados obtidos via telefone (Disque 100) indicam que o número destes casos é relativamente pequeno. Em um relatório publicado pela Secretaria de Direitos Humanos, em 2008, dos 6.817 casos de exploração sexual de crianças ou adolescente reportados ao Disque 100 entre 2003 e 2007, 47 envolviam “turismo sexual” (ou seja, denunciavam turistas estrangeiros envolvidos). Considerando que o Disque 100 registrou 67.104 casos de violência contra crianças e adolescentes brasileiros, durante o mesmo período (dos quais cerca de 16.500 eram casos de violência sexual), a evidência disponível indica que são brasileiros os que conduzem a grande maioria dos atos sexualmente agressivos contra crianças brasileiras.
Este dado é ainda mais preocupante quando se leva em consideração a investigação conduzida em 2004 pelo Congresso Nacional sobre exploração sexual de crianças. Dos 79 casos citados como “exemplares” por este estudo, apenas três turistas estrangeiros estavam envolvidos. Quatorze casos, no entanto, envolveram funcionários do governo (do municipal ao nível federal); oito casos envolveram policiais, juízes ou outros agentes de aplicação da lei; e cinco casos envolveram líderes religiosos.
Assim, acreditamos que o clamor contra a suposta ameaça de “turismo sexual” desloca a atenção do público das ameaças reais que crianças brasileiras e suas famílias enfrentam, começando com o governo concentrando recursos e atenção em operações contra prostituição temporária, e não em projetos visando reduzir efetivamente o abuso e a exploração de crianças e adolescentes no Brasil.
Pesquisadores
Esse relatório foi composto pelos seguintes pesquisadores do Observatório da Prostituição no Rio de Janeiro: Soraya Silveira Simões, Thaddeus Blanchette, Ana Paula da Silva, Greg Mitchell, Laura Murray, Aline da Cunha Valentim, Amanda De Lisio, Riane De Sa, Lucas Bernardo Dias, Amanda Neder Ferreira, Dayane Gomes, Flavio Lenz,Riane Martins, José Miguel, Débora Santana de Oliveira, Andressa Raylane, Julie Ruvolo, Yaa Sarpong, Marlene Teixeira e Gonçalo Zúquete.