A assistência farmacêutica no Brasil é constantemente moldada por políticas públicas e regulamentações. Hoje prevalecem tendências, como o ritmo acelerado para a incorporação de novos medicamentos, o aumento do uso da Justiça para o acesso aos medicamentos e o avanço da política industrial para produção de novos fármacos no Brasil via parcerias público-privadas (as chamadas Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo, definidas pelo Ministério da Saúde na Portaria 837/2012). Sem perder de vista a importância da incorporação, da judicialização e da produção local, é preciso refletir sobre os impactos dessas políticas no SUS e no acesso à saúde. Para discutir estas questões, conversamos com Claudia Osorio, pesquisadora do Núcleo de Assistência Farmacêutica (NAF/ENSP/Fiocruz), um dos principais centros de produção de conhecimento e informações técnico-científicas, que influencia processos decisórios em diferentes arenas nacionais e internacionais.
ABIA – Quais são as preocupações no campo da assistência farmacêutica?
CLAUDIA OSORIO – O que observamos hoje é que a incorporação de tecnologia passou a prevalecer dentro do campo da assistência farmacêutica. Com essa corrida por novidades terapêuticas, o que era antes seleção virou incorporação. A impressão que dá é que o governo está sempre ao reboque das demandas e das pressões. Não vejo estratégia coordenada na questão dos medicamentos.
ABIA – Como as recentes regulamentações na incorporação de novas tecnologias se relacionam com o conceito de essencialidade?
CLAUDIA OSORIO – O conceito de medicamentos essenciais ainda é o melhor jeito de gerir medicamentos em um sistema de saúde. Em alguns programas, como o de AIDS, é importante incorporar novos medicamentos, pois é uma doença grave quando não tratada, e mutável ao longo do tempo. Nesse caso, as novas opções terapêuticas garantem a sobrevida do paciente. Mas atenção: não é assim para todas as doenças.
ABIA – A incorporação acelerada de novas tecnologias no SUS pode ser uma tentativa de reduzir a pressão de ações judiciais por medicamentos?
CLAUDIA OSORIO -A redução não virá por aí. A abordagem tem que ser sistêmica. Os municípios e estados tentaram colocar grande número de medicamentos nas listas locais para diminuir a pressão das ações na Justiça. A despesa pode até cair, mas questões como falta de prescrição e de evidência não foram resolvidas. No Brasil, 80% das demandas podem ser resolvidas com fármacos mais antigos, seguros e baratos. E será que todos que entram com ações realmente precisam daquilo que estão demandando?
ABIA – Como as PDPs se inserem neste cenário?
CLAUDIA OSORIO – Uma coisa é saúde. Outra é desenvolvimento industrial. Associá-las pode até ser importante, desde que não se perca a perspectiva do que está sendo feito. Hoje temos 104 PDPs e talvez nem todas estejam voltadas para medicamentos realmente necessários. A estratégia das PDPs ainda está ganhando forma, mas alguns pontos requerem atenção: A)o critério de escolha sobre o que será desenvolvido, cujo foco deveria ser a prioridade sanitária. Mas parece que ganha o que é mais oneroso para o governo e mais conveniente para a indústria; B) o preço, já que durante o período da transferência de tecnologia, o “doador” tem monopólio para vender, logo, tem lucros altos garantidos; C) a obsolescência, ou seja, os produtos mais novos se tornam obsoletos muito mais rápido do que os antigos. Além do fato de ficarmos descobertos em medicamentos básicos que não são produzidos aqui; e D) a negociação, isto é, os laboratórios públicos envolvidos nas PDPs deveriam estar preparados tecnicamente para receber as tecnologias, o que inclui o nível gerencial para realizar negociações dos contratos da melhor maneira possível.
ABIA – Com o aumento da demanda por tecnologias de alto custo no SUS, de que maneira deve ser estruturada a ação governamental na busca pela redução de preços?
CLAUDIA OSORIO – Há um equívoco estratégico na abordagem do MS: priorizar a inovação a qualquer custo. Por que temos que incorporar tanta coisa e inovar sempre? Ao investir o dinheiro da saúde na agenda do desenvolvimento, o saldo pode ter um custo alto. E talvez o sonhado salto tecnológico nem aconteça. O problema é que acabaram a imaginação e a criatividade. Onde está a estratégia de usar as flexibilidades de defesa da saúde do acordo TRIPS (sigla em inglês para Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, assinado em 1994)? Não podemos perder a capacidade de negociar. Parece que não temos nada na manga além dessas PDPs. Imaginar que tudo se resolverá mediante a abordagem do Complexo Industrial da Saúde é não pensar em alternativas. É preciso considerar todos os cenários. Sem planejamento, a assistência farmacêutica vai ficar numa situação muito difícil.
Claudia Garcia Serpa Osorio-de-Castro é farmacêutica, mestre em ciências farmacêuticas, doutora em saúde da criança e da mulher/IFF e conselheira da ABIA