Embora reconheça que tenha havido um bom progresso em relação ao número de pessoas soropositivas com acesso ao tratamento antirretroviral, sobretudo no continente africano – o mais afetado pelo vírus – a ABIA recebe com cautela o novo relatório do Programa das Nações Unidas sobre AIDS (UNAIDS) sobre a epidemia global de AIDS.
A ABIA chama a atenção para o número de pessoas que ainda não tem acesso ao tratamento. Segundo os dados divulgados pelo UNAIDS, há 36,7 milhões de pessoas vivem com HIV no mundo. Destas, 19, 5 milhões tem acesso ao medicamento antirretroviral. Ou seja, há 17,2 milhões de pessoas vivendo com o HIV (cuja maioria é originária dos países pobres) que permanecem sem acesso ao tratamento. Para nós, da ABIA este dado é escandaloso, pois mostra que quase metade das pessoas que precisam de acesso ao antirretroviral, não possui.
O cenário está cada vez mais sombrio. Um outro relatório divulgado também nesta quinta-feira (20/07) pela Global Health Policy aponta que a contribuição em dinheiro dos países doadores para a causa da AIDS caiu pelo segundo ano consecutivo e chegou ao pior nível desde 2010 (houve uma queda de 7% entre 2015 e 2016). E isto consolida um cenário de ameaça à sustentabilidade econômica dos programas de AIDS em todo o mundo.
Alto preço
Para a ABIA, a longa lista de países que estão fora deste “progresso positivo” bem como a extensa listagem de populações mais expostas à infecção pelo HIV (HSH, jovens gays, profissionais do sexo, usuários de drogas injetáveis, presidiários e outras formas de aprisionamento) que também não está incluída, é um alerta para a enorme desigualdade no acesso ao tratamento da AIDS que ainda impera no mundo.
Pessoas que vivem com HIV, sobretudo no sul global, continuam sofrendo os graves efeitos colaterais de médio e longo prazo causados por medicamentos considerados ultrapassados pela comunidade científica. O acesso aos antirretrovirais de última geração permanece restrito aos países mais ricos. Ou seja, o alto preços dos medicamentos impede o acesso universal ao tratamento e amplia o sofrimento humano nos países mais pobres.
Além disso, o relatório do UNAIDS reconhece o uso das flexibilidades do Acordo TRIPS, como a licença compulsória, como estratégias importantes na redução de preço de medicamentos. A licença compulsória tem sido uma das principais reivindicações da sociedade civil organizada, em especial do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI), coordenado pela ABIA. Contudo, a mera menção à licença compulsória não mudará as perspectivas de acesso a medicamentos na América Latina, especialmente porque a ONU não oferece nenhum apoio aos países que buscam emitir licenças compulsórias e defender a saúde sobre os interesses comerciais das corporações farmacêuticas. Lembramos que de toda a América Latina apenas dois países usaram este mecanismo, Brasil (um medicamento) e Equador (cinco medicamentos), e que Peru e Colômbia sofreram ameaças de represálias por parte de EUA e Europa ao tentar emitir licenças compulsórias.
Falência
Destacamos ainda que, segundo o documento, 90% de todas as novas infecções na América Latina estão concentradas em sete países. E o Brasil é líder em novas infecções com quase a metade dos casos. O Brasil permanece fora da tendência de queda do número de novas infecções no mundo. Para nós, na ABIA, a epidemia continua como uma grave realidade. Não apenas pelo aumento do número de novas infecções, mas como um país que oferece acesso universal tem uma taxa de mortalidade estabilizada entre 12 a 15 mil mortes por ano?
Outrora reconhecido como modelo no enfrentamento à epidemia, hoje perdemos para países como Colômbia, El Salvador, Nicarágua e Uruguai que registraram, respectivamente, uma redução de cerca de 20% no número absoluto de casos de AIDS entre 2010 e 2016. Enquanto no Brasil a taxa obteve um aumento de 3% no mesmo período.
É lamentável que o Ministério da Saúde considere este dado positivo na medida em que se consolida um fator de estabilidade da epidemia no país. Consideramos esta suposta estabilidade algo negativo, uma vez que é preciso reduzir o número de infecções e ampliar o acesso ao tratamento com base na garantia dos direitos humanos.
Registramos que enquanto é celebrado a entrada de mais pessoas nos esquemas de tratamento, pouco se menciona no relatório sobre a questão da retenção destes pacientes nos sistemas de saúde. A África do Sul, país apontado no relatório como exemplo na inclusão de mais pessoas em tratamento, traz preocupações, pois dado circulado durante a Conferência Mundial de AIDS, em 2016, dos 3 milhões de pessoas que iniciaram o tratamento entre 2010 e 2017 já havia uma taxa de abandono de 50%.
Também nos chama atenção a ausência de qualquer menção sobre a precariedade crescente em sistemas de saúde público nacionais como Chile, Brasil e Argentina a partir do fortalecimento de políticas neoliberais – que impõem ajustes e cortes nos gastos sociais – podem estar relacionadas ao aumento dos casos de AIDS. Bem como as profundas crises políticas e econômicas tanto na América Latina (Venezuela) quanto na África do Norte (Líbia e Egito).
O que este relatório ajuda para sustentabilidade econômica para os programas de AIDS em países que alcançaram excelentes resultados no passado recente?
Rio de Janeiro, 21 de julho de 2017
Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS