A Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS – ABIA, ONG fundada em 1986 que desde então tem monitorado e incidido em políticas públicas de saúde com foco específico nas políticas de enfrentamento à epidemia de AIDS, vem à público repudiar veementemente a Resolução n° 2238 de 13 de janeiro de 2014 publicada pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS), que “cria procedimentos de acompanhamento, com análise e aprovação de prestação de contas e liberação de recursos dos contratos de gestão pela Comissão Técnica de Acompanhamento (CTA)”.
Segundo a Resolução, a criação da CTA é decorrente da necessidade da avaliação da gestão e dos serviços oferecidos pelas Organizações Sociais de Saúde (OSs). Ainda estipula que a CTA terá poder para acompanhar, analisar e aprovar a prestação de contas das OSs que tiverem contrato com a SMS.
À primeira vista, a atitude é admirável e cumpre requisitos previstos na lei que regulamenta a contratação de OSs. No entanto, a composição estipulada para a CTA é uma afronta à história da construção do SUS: dos seis assentos titulares e quatro suplentes, todos são destinados a subsecretarias da SMS e não há lugar qualquer para a participação da sociedade civil.
É importante lembrar que a participação da sociedade civil através do controle social está prevista no artigo 198, inciso III da Constituição Federal Brasileira de 1988, que estabelece a participação social como uma das diretrizes das ações e serviços do SUS, além de ser um princípio legitimado pela Lei nº. 8.080/90. É fundamental também ressaltar que esta participação é muito mais ampla e não se restringe apenas ao controle e à fiscalização dos gastos em saúde, mas pressupõe controle social sobre a elaboração, organização, gestão e intervenção nos processos de formação das políticas de saúde.
Regulamentando-se como um espaço democrático para a luta a favor do direito à saúde, o SUS ainda dispõe da lei nº 8.142 de 28 de dezembro de 1990 que tem como finalidade a criação dos Conselhos e Conferências de Saúde, nas esferas municipal, estadual e federal, como espaço de representação e deliberação da comunidade, principalmente sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros pertinentes à saúde. Tal fato, ao que parece, está sendo ser ignorado pela SMS e esquecido pela Resolução aqui questionada, uma vez que não prevê nos Conselhos de Saúde a apresentação da análise e da aprovação da prestação de contas. A formatação de uma Comissão de acompanhamento de políticas de saúde que não conte com a participação de nenhuma representação da sociedade civil é ilegal e ilegítima.
Contudo, não se trata aqui somente de um dispositivo legal, mas também de questões e lutas históricas que estão sendo desprezadas e desvalorizadas. A intersetorialidade é um dos aspectos que consagrou o Programa de AIDS brasileiro como um modelo a ser seguido internacionalmente. Além disso, se mostrou uma experiência por meio da qual os usuários do sistema de saúde puderam levar sua perspectiva crítica de maneira colaborativa para o âmago da formulação e execução das políticas de saúde, reforçando e construindo democraticamente um sistema público, universal e integral.
Ainda podemos localizar a composição da recém criada Comissão em um contexto de violações de direitos e atos autoritários da gestão Eduardo Paes à frente da Prefeitura do Rio de Janeiro. Basta lembrar as remoções forçadas de comunidades inteiras, no contexto dos megaeventos; as abordagens violentas sobre vendedores ambulantes por agentes da Guarda Municipal; os aumentos na tarifa dos ônibus municipais, os cortes orçamentários destinados à saúde; a precarização e degradação dos serviços hospitalares; a terceirização dos serviços de saúde, dentre outros episódios.
Finalmente, exigimos a revogação imediata da Resolução SMS n° 2238 e publicação de novo instrumento, respeitando os princípios legais e constitucionais do SUS e garantido participação social nos espaços institucionais criados pelo poder municipal do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, 23 de fevereiro de 2014