Três décadas de epidemia do HIV/Aids e os desafios persistem mesmo com os avanços biomédicos e a contínua mobilização de movimentos de direitos humanos. Na semana em que se comemorou mais um Dia Mundial de Luta contra a Aids (01/12), dados lançados pelo Ministério da Saúde brasileiro mostram que a infecção pelo vírus aumentou mais de 50% entre a população de 15 a 24 anos nos últimos seis anos. Relatório da UNAIDS de meados deste ano já apontava o crescimento de 11% nos casos de infecção entre a população brasileira de 2005 a 2013, tendência oposta à média mundial (infecções diminuíram 13% nos últimos três anos). Esse cenário evidencia tanto os limites e fragilidades da resposta à epidemia quanto a necessidade de reflexão sobre as formas de mobilização para enfrentar a situação.
Desde os anos 1990, a produção de antirretrovirais (ARVs) tem sido crescente e figurado como ferramenta central para o enfrentamento global da epidemia. A partir de 1996, o Ministério da Saúde brasileiro passou a distribuir gratuitamente e de forma universal a medicação ARV na rede pública de saúde. No ano passado, a oferta do coquetel para todos os indivíduos diagnosticados com o vírus – independe da manifestação da doença – tornou-se regra do protocolo clínico e das diretrizes terapêuticas. A aposta biomédica contra a epidemia tem sido a tônica mundial, conforme demonstra decisão desta semana da Organização Mundial da Saúde (OMS) de expandir a Profilaxia Pós-Exposição (PEP) para todos os indivíduos envolvidos em situação de risco de transmissão, e não mais apenas para aquelas pessoas vítimas de estupro ou envolvidas em acidentes ocupacionais com agulhas contaminadas. Em julho, a OMS já tinha definido novas diretrizes, recomendando a algumas populações-chave – como homens que fazem sexo com homens (HSH), trabalhadores/as do sexo e indivíduos transgêneros – a ingestão de ARV como método de prevenção, a chamada Profilaxia Pré-Exposição (PrEP).
Nesse cenário, cabe interrogar-se sobre o panorama brasileiro. Por que as estratégias de prevenção não têm dado certo? Por que no Brasil a infecção entre os jovens vem crescendo em uma velocidade bem maior que da população geral? Especialistas afirmam que a expansão da epidemia, sobretudo entre os jovens, tem como motivo principal um comportamento sexual menos preocupado com a doença, por estes acreditarem que hoje ninguém mais morra de Aids, ou que se contrair o vírus é só tomar o remédio – disponível para todos no Sistema Único de Saúde (SUS) – e estará tudo bem, aspectos descritos por pesquisadores como “banalização da AIDS” e “otimismo”.
De fato, os avanços biomédicos alteraram, em alguma medida, a representação dominante do início da epidemia de que ter o vírus significava uma “sentença de morte”. No entanto, isso não explica integralmente a situação. Pelo contrário, a responsabilização pode ser um caminho que ofusca as fragilidades da rede pública de saúde, não reflete criticamente a respeito da concepção das estratégias de prevenção e ignora, por fim, as relações de opressão e marginalização baseadas em desigualdades de gênero, cor/raça, sexo, renda, entre outros marcadores sociais da diferença, que vulnerabilizam mais alguns indivíduos e grupos em comparação a outros.
A omissão e o descuido em relação às desigualdades sociais de diversas ordens que marcam a sociedade brasileira são fatores importantes para a compreensão do crescimento da epidemia no país. Também os problemas na rede pública de saúde compõem esse cenário, pois são comuns denúncias de atendimentos precários e falta de remédios em unidades de saúde em diversos estados, o que muitas vezes provoca o desestímulo e a descontinuidade no tratamento por parte de pacientes.
Nos últimos anos, à medida que a alternativa medicalizante tem sido priorizada pelos gestores, a perspectiva de direitos humanos tem sido enfraquecida. Isso é notável nos recuos do governo federal em campanhas recentes de prevenção destinadas a grupos vulneráveis (como HSH e travestis – e prostitutas).
Desde a aparição da doença nos anos 1980, a luta contra o estigma e o preconceito tem sido uma bandeira central para os movimentos de combate à doença, pautados nos direitos humanos. Ser portador do vírus implicava – e ainda implica – forte carga moral por associar os soropositivos a uma série de estigmas, tais como o da culpa pela infecção e o da figura sexualmente desviante, promíscua e “perigosa” para a população como um todo. Tais estigmas recaíram de maneira flagrante sobre os homossexuais, nos primeiros momentos da epidemia, imagens que foram afastadas devido à forte ação desses mesmos movimentos. Por isso, a concepção de direitos humanos constitui uma ferramenta importante, pois o estigma é, em si, um forte obstáculo à prevenção e ao tratamento da Aids, conforme uma série de estudos demonstram.
Prova disso é o aumento da epidemia entre as mulheres. Os homens continuam sendo os mais afetados pelo vírus, mas a diferença em relação a elas caiu ao longo dos anos: em 1989, a proporção era de seis casos da doença no sexo masculino para cada caso no sexo feminino. Em 2011, a proporção passou a ser de 1,7 casos em homens para cada mulher infectada: um cenário em que a vulnerabilidade social é fator importante para a análise, na medida em que as relações desiguais de gênero colocam a mulher em situação vulnerável, por exemplo, na hora de negociar a camisinha com seu parceiro.
Com relação a outros grupos vulneráveis – como os jovens – uma das ações mais notáveis é a dos jovens vivendo com HIV/Aids, que tem protagonizado ações junto a gestores, profissionais de saúde e movimentos sociais, através da Rede Nacional de Adolescentes e Jovens Vivendo com HIV/Aids (RNAJVHA), e das Redes Regionais e Estaduais filiadas à RNAJVHA . A proposta é pautada pela ideia de fortalecer esses indivíduos em termos políticos e sociais, apostando na atenção integral à saúde como maneira de demonstrar que a doença não significa morte. No entanto, conforme a antropóloga Cláudia Cunha analisou em seu estudo de doutorado, a iniciativa apresenta alguns problemas, como o “fantasma” da responsabilização ao gerar, através da operação de protagonismo, o contra-efeito de produzir socialmente indivíduos percebidos como “descontrolados”, “irresponsáveis” e potencialmente “perigosos”.
Nesse contexto, o cenário brasileiro situa-se em um momento paradoxal: contrariamente à tendência mundial de redução de novas infecções e ao forte investimento em prevenção biomédica, o país assiste à expansão da epidemia, notadamente entre populações vulneráveis. A sociedade civil e os movimentos sociais têm demandado mudanças nas estratégias de prevenção e tratamento. De um lado, a taxa de mortalidade reduz-se (caiu 13% entre 2000 e 2013, de acordo com o Ministério da Saúde) – o que pode ser lido como um atestado de eficácia da medicação ARV. Do outro lado, o vírus continua a circular por novos corpos em um ritmo considerável. Quais são, nesse sentido, as respostas adequadas para dar conta dessa realidade? O Ministério da Saúde lançou no dia 01/12 a campanha “#Partiu teste”, voltada para a população jovem em um esforço para que o número estimado de pessoas que desconhecem sua soropositividade (150 mil, segundo o Ministério da Saúde) diminua. Talvez as respostas para o panorama atual sejam ampliar os esforços para além da ação biomédica, através de ações que também priorizem a dimensão social da epidemia e que sejam baseadas na ideia de direitos humanos. Assim, é possível que se saiba, de fato, quem são os jovens que irão “partir para o teste” e quais as suas realidades.
A saída pra essa situação não é simples e tampouco nova. Desde o início da década de 90, o conceito de vulnerabilidade aplicado ao contexto da epidemia já sinalizava para a importância de compreender que a AIDS varia de região para região do mundo, estando diretamente relacionada aos contextos sociais, notadamente aqueles marcados pela pobreza e desigualdade social. Assim, no contexto brasileiro, os riscos de infecção pelo HIV aos quais estão submetidos jovens de camadas médias e altas e aqueles de camadas populares são bastante diferentes. O contexto onde se pratica o sexo, com que tipo de parceiro(s), premido por determinados roteiros sexuais culturalmente marcados, submetido ou não a situações de coerção e violência, com ou sem acesso a serviços de saúde, resultam em distintas possibilidades de “se prevenir” da doença. É preciso então, no que tange à prevenção, retomar a velha receita de atentar para os valores culturais e contextos de vida dos indivíduos, aqueles mesmos que os tornam atores sociais.
Artigo assinado por Cláudia Carneiro da Cunha – antropóloga, pós-doutoranda em Saúde Coletiva no Instituto de Medicina Social/Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Fábio Grotz – jornalista, mestre em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2013) e Washington Castilhos – jornalista e ativista pelos direitos sexuais, pós-graduado em Gênero e Sexualidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2011).
Fonte: CLAM