O 5º e último dia de lives da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) teve como proposta trazer reflexões sobre “O Retorno do Estigma e Discriminação e os Direitos Humanos” durante o “Seminário HIV/AIDS em tempos de COVID-19 – Aprimorando o Debate III”.
A mesa de apresentação virtual teve como palestrantes, Richard Parker (diretor-presidente da ABIA), Angélica Basthi (jornalista e coordenadora de comunicação da instituição) e Veriano Terto Jr (vice-presidente). Juntos, os três tiveram a responsabilidade de buscar respostas para indagações sobre: como as políticas de atenção à epidemia produzem e reforçam diferenças e desigualdades? Como os determinantes sociais da epidemia de HIV/AIDS e de COVID-19 se relacionam? Como promover o marco dos direitos humanos frente a esse cenário de exceção? E responder a estas questões considerando o cenário em que o racismo, a LGBTQIfobia e outros determinantes sociais e políticos atuam em condições de desagravo e vulnerabilidade em saúde para as populações mais estigmatizadas.
O retorno do estigma e discriminação em tempos de HIV/AIDS e COVID-19
Antes de iniciar mais um dia de apresentação Richard Parker buscou fazer um breve agradecimento. “Quero, antes de tudo, agradecer a toda a equipe da ABIA, desde a parte de projetos e assistência, até a parte administrativa por permitir isso aqui acontecer, disse. Em seguida, Parker dividiu a apresentação em três momentos para facilitar a leitura de suas observações.
A primeira parte foi sobre o repensar acerca do estigma e da discriminação no contexto da epidemia do HIV/AIDS. Para Parker, o momento atual de enfrentamento da COVID-19 faz um link direto com questões historicamente vividas no HIV/AIDS: estigma, discriminação e preconceito com o “vírus chinês” ou a lógica da pessoa ser vista como a doença. De acordo com ele, dentro do repensar desse estigma é preciso refletir que se trata de um complexo processo social vinculado à opressão e exclusão. Para contextualizar, Parker trouxe dois pensamentos ou correntes, que nos últimos 20 anos vêm sendo a tônica do exercício de seu ofício dentro do processo de reflexão: o estigma como diferença indesejável (citando Goffman) e o estigma como processo social (citando Parker & Aggleton).
Natureza do Estigma
“Como um conceito estratégico, o estigma está ligado ao poder e é fator de desequilíbrio, querendo fazer das coisas e pessoas algo normalizante”. E essa ação do poder com a cultura que transforma as diferenças em desigualdades está ligado à natureza desses processos que permitem ler o estigma como contextual, histórico, como fenômeno colocado estrategicamente e como fenômeno que produz e reproduz relações sociais e desigualdades.
“A luta contra estigma e discriminação tem que passar pelo combate a esses eixos, senão não será possível. É preciso olhar para as intersecções das opressões”, alerta Parker. Outro ponto interessante de sua apresentação foi sobre a aliança do estigma e discriminação com a violência estrutural como, por exemplo: 1)Desigualdades de gênero, 2) Opressão social, 3) Racismo e discriminação étnica e 4) Desigualdade de idade/faixa etária.
Estigma e Preconceito
São dois conceitos estruturantes, segundo Parker, mas com características diferentes na prática. O estigma liga-se a condições relativamente ‘incomuns’ (desfiguração física, doença mental, HIV/AIDS e COVID-19). Já o preconceito aparece sob condições mais comuns de desigualdade (gênero/sexualidade, idade, raça/etnia e classe).
“E por isso os direitos humanos são e devem ser um projeto político necessário para que possamos construir e caminhar na prática enfrentando esses dilemas na vida atual em meio a essas epidemias”, finalizou o antropólogo. Parker também chamou atenção para a importância e urgência das insurgência e do apoio – bem como o enfrentamento – ao racismo e à discriminação que ganhou espaço em todo o mundo via Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), após a morte do afro americano George Floyd.
Racismo
E foi justamente com base nisso que a 2ª palestrante do webnário, Angélica Basthi, iniciou após o diretor-presidente da ABIA. A coordenadora de comunicação da instituição abriu sua fala com uma definição sobre “o que é racismo” do jurista e filósofo Sílvio de Almeida. Em suma, o termo é definido pelo intelectual como “uma forma sistemática de discriminação fundamentado na raça e que se manifesta por meio de práticas conscientes”.
“Isso é importante para a gente entender as estruturas sociais e sistêmicas que sustentam a raça, o sujeito racializado e determina o privilégio de nossa sociedade por meio das relações econômicas, institucionais, de política, de trabalho e outros”, reforçou Basthi. “Essas estruturas convergem e operam reproduzindo cenas de determinadas formas em que esses sujeitos racializados não têm direitos assegurados sob nenhuma forma”, completa.
Dentro de um país notadamente marcado pela desigualdade social, é o próprio Estado que vem sustentando esse tipo de ação. Ação essa cunhada por outro famoso intelectual, Achile Mbembe, como Necropolítica, ou simplesmente, a política de morte. “Nas ações policiais essa política da morte e do terror é reproduzida nas favelas sob a população e juventude negra, principalmente aqui no Rio de Janeiro. Que temos um governador e uma política que mesmo sob proibição dessas ações por conta da pandemia, continuam com suas operações”, criticou Basthi.
No que tange à saúde, o racismo estrutural é reforçado pelo biopoder e pela necropolítica como práticas cotidianas de vulnerabilização quando estes impedem que pessoas negras tenham acesso aos serviços de saúde, promovem doenças e até mortes evitáveis por descaso e falta de atendimentos dos profissionais de saúde que reproduzem a cena da desumanização do corpo negro. “Na AIDS essa política da morte tem sem manifestado no descaso e no silenciamento que vem sendo denunciado sistematicamente por organizações como a ABIA e pelo movimento AIDS”, reforçou Basthi.
A jornalista trouxe números fatídicos que corroboraram suas falas. Dados de 2018 divulgados pelo Ministério da Saúde apontam que dentre os óbitos por raça/cor 39,5% foram de pessoas brancas e 59,9% de pessoas negras. O que para ela desemboca em dois fatores relevantes: 1) que essa política de morte fundamentada pelo racismo estrutural impacta diretamente a população negra e 2) o acesso ao tratamento, à assistência e à adesão tem sido desigual entre negros e brancos, portanto, é preciso adotar medidas e práticas antirracistas para reduzir essas e outras desigualdades.
Em se tratando de COVID-19, o que se vê por aí e é enfatizado pela jornalista, “é mais uma vez as comunidades, o povo negro se mobilizando e praticando a solidariedade entre os seus, nós por nós mesmos, diante da ausência do Estado”. Angélica Basthi ainda aproveitou a oportunidade para denunciar as violências e mortes operadas pela sociedade racista e pela necropolítica no país e trouxe exemplos de mortes trágicas e violentas como a da vereadora Marielle Fraco, do menino Miguel, da menina Ágatha, de jovem Aline Firmino, da Claudia, do João Pedro e tantos outros “que não merecem nosso silenciamento e nem que nos esqueçamos dessas mães, dessas famílias que ficam e sofrem pelo descaso do Estado”.
HIV e luta por direitos em tempos de COVID-19
Lutas, reinvindicações e mobilizações por direitos humanos e garantias fundamentais foram os temas abordados por Veriano Terto Jr, vice-presidente da ABIA. Reforçando as duas apresentações anteriores, Terto Jr repassou conceitos e antropólogos que explicam e estudam estigma, discriminação e preconceito com fatores de HIV.
Veriano trouxe importantes contribuições que ajudam a entender a conjuntura que faz com que a AIDS esteja ligada em questões estigmatizantes, visto como um “desvio moral” e como apresenta sinergia com o racismo, sexismo, homofobia, transfobia etc. “E nisso ora somos tratados como mocinhos ora somos tratados como vilões. Ou somos vistos como coitadinhos, ou proibidos de entrar em alguns países. Criam juízos de valor e isso é político”, critica ele.
Diante do HIV, essas formas discriminatórias se dão por elementos coletivos e individuais que passam desde a testagem obrigatória de determinados grupos ou indivíduos, proibições para a ocupação de cargos e empregos, criminalização da transmissão, até o auto isolamento/exclusão, rejeição, vergonha, revelação do status sorológico, abandono do tratamento etc. E os conceitos-chaves desses alicerces, são: famílias; escolas; trabalhos; sistemas/serviços de saúde; viagem e migração; programas de HIV/AIDS; comunidade local; sistemas jurídicos; políticas econômicas que resultam em disparidades entre grupos e pessoas.
De acordo com Terto Jr., é preciso mudar o panorama e algumas intervenções são determinantes para isso. “Eu rejeito esse conceito de capilaridade que querem impor aos movimentos sociais. Porque o mesmo sistema que produz racismo, ele pode produzir transfobia e sorofobia. Então temos que caminhar juntos e nos alias por quem promove justiça social. Temos que reconhecer o estigma e a discriminação como obstáculos às respostas que queremos, reconhecer o ativismo e organizações comunitárias, praticar a solidariedade com outros grupos e intervir cultural e sistematicamente”, frisou Terto Jr encerrando o 5º dia de lives com a Declaração dos Direitos Fundamentais da Pessoa Portadora do Vírus da AIDS.
Texto: Jean Pierry Oliveira
Edição: Angelica Basthi