Em carta enviada ao Ministro da Saúde, Arthur Chioro, ao Secretário de Vigilância e Saúde, Jarbas Barbosa e ao Fábio Mesquita do Programa de AIDS, o Grupo de Trabalho em Propriedade Intelectual (GTPI/Rebrip), coordenado pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), cobra do Ministério da Saúde a incorporação no SUS do medicamento Dolutegravir, uma nova opção terapêutica que tem alta efetividade na supressão do vírus e menos efeitos adversos, além de facilitar a adesão do paciente e dificultar o aparecimento de resistência.
Tendo em vista o impacto que o medicamento pode ter no controle da doença e na melhoria da qualidade de vida das pessoas vivendo com HIV, o GTPI solicita que o Ministério tome as medidas necessárias para ofertar este medicamento aos usuários do SUS, a fim de que os pacientes que precisem dele não fiquem descobertos.
O GTPI, que há mais de 10 anos atua em defesa do acesso a medicamento, ressalta ainda que é necessário uma análise rigorosa dos preços que serão praticados na comercialização deste medicamento. O fato deste medicamento ser objeto de diversos pedidos de patente indica que ele pode ser comercializado em situação de monopólio, colocando em risco a universalidade do acesso e a sustentabilidade financeira do programa brasileiro de tratamento.
A título de comparação, o medicamento Raltegravir, que é da mesma classe terapêutica do Dolutegravir, é hoje o medicamento mais caro fornecido no Brasil, custando cerca de R$ 10.000,00 por paciente/ano. O Raltegravir é comprado exclusivamente da empresa Merck, que solicitou uma série de patentes para este medicamento. A situação pode se repetir com o Dolutegravir, que por ser mais novo pode ser ainda mais caro.
Por essas razões o GTPI recomenda que o ministério considere utilizar os laboratórios públicos para estimar o custo de produção do Dolutegravir, use medidas previstas em lei para iniciar antecipadamente o desenvolvimento de uma versão genérica e utilize mecanismos voltados para a redução de preços, como a licença compulsória.
Leia abaixo a carta encaminhada às autoridades:
Rio de janeiro, 08/01/2015
Excelentíssimo Ministro Arthur Chioro,
Ministério da Saúde – MS
Esplanada dos Ministérios, Bloco “G”
70.058-900 – Brasília/DF
CC: Dr. Jarbas Barbosa
Secretaria de Vigilância em Saúde
Esplanada dos Ministérios, Bloco “G”, Sobreloja
70.058-900 – Brasília/DF
CC: Dr. Fábio Mesquita
Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Doenças Sexualmente Transmissíveis, Síndrome da Imunodeficiência Adquirida e Hepatites Virais
SAF SUL, Trecho 2, Bloco F, Torre I, Ed, Premium, Terreo 70058-900 Brasília/DF
PERSPECTIVAS DA SOCIEDADE CIVIL SOBRE ACESSO AO MEDICAMENTO DOLUTEGRAVIR NO BRASIL
O Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI)[1], coordenado pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) e membro da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), é um grupo formado por organizações da sociedade civil, pesquisadores e ativistas que há mais de 10 anos defende uma perspectiva de interesse público no debate sobre acesso a medicamentos. Desde 2003, desenvolve atividades voltadas para a diminuição dos impactos negativos das patentes sobre políticas públicas de saúde no Brasil e no Sul Global.
Uma parte significativa do GTPI é formada por organizações de pessoas vivendo com HIV e usuários do SUS. Nesse sentido, a demanda pelo fornecimento universal, gratuito e sustentável dos tratamentos mais promissores para enfrentar a aids é uma marca importante deste coletivo.
No início dos anos 1990, o tratamento da aids foi revolucionado com os potentes antirretrovirais. As combinações de medicamentos multirresistentes diminuíram substancialmente a progressão da doença, infecções oportunistas, hospitalizações e mortes.
Em 1998, a Política Nacional de Medicamentos consolidou a assistência farmacêutica como um compromisso político do governo brasileiro, sendo elaborada uma Relação Nacional de Medicamentos (Rename) que abrangesse pelo menos 80% das necessidades do país de acordo com o perfil de morbimortalidade da população, comprovação de eficácia, segurança e menor custo possível dos medicamentos. Atualmente estão disponíveis 21 antirretrovirais no SUS, dos quais dez são produzidos localmente.
O aumento no tempo de sobrevida das pessoas vivendo com HIV da década de 1980 em comparação com a década seguinte está relacionado principalmente ao tipo de tratamento antirretroviral utilizado.
Recentemente, surgiu uma nova classe terapêutica: os inibidores de integrase. Estudos mostram que regimes de tratamento usando medicamentos da classe dos inibidores de integrase (dolutegravir, raltegravir e elvitegravir) têm sido geralmente efetivos e bem tolerados. Esses agentes são recomendados principalmente para paciente com perfil lipídico anormal ou com fatores de risco para doenças coronarianas, por terem menor efeito sobre o colesterol e os triglicerídeos.
O dolutegravir é um novo medicamento dessa classe de inibidores de integrase, utilizado para o controle virológico, é bem tolerado, eficaz, pode ser administrado uma vez por dia, tem demonstrado alta barreira ao desenvolvimento de resistência e maior eficácia em comparação com à combinação de primeira linha. Atualmente está sendo estudado em formulações pediátricas.
Em comparação com outros medicamentos da mesma classe terapêutica, o dolutegravir apresenta menos interações medicamentosas, é menos propenso a desenvolver resistência, tem um regime de administração mais conveniente, porque é administrado uma vez por dia, e pode ser utilizado em pacientes que estão recebendo terapia de primeira linha. Se os pacientes apresentarem alto risco de desenvolvimento de reações adversas, comorbidades ou baixa adesão, o dolutegravir é uma escolha acertada, em função dessas características mencionadas.
O dolutegravir está disponível na formulação de 50 mg, e também na combinação com abacavir-lamivudina. Os regimes de administração preconizados são:
– Dolutegravir 50 mg + abacavir-lamivudina 600/300 mg uma vez por dia
– Dolutegravir 50 mg + tenofovir-entricitabina 300/200 mg uma vez por dia
Apesar do número limitado de estudos de longo prazo nos regimes com dolutegravir, vários estudos mostraram que esse medicamento é bem tolerado e efetivo na supressão do HIV. Embora estudos adicionais sejam necessários para determinar se a utilização ótima do medicamento é apropriada para o tratamento inicial de HIV em países de baixa e média renda, o dolutegravir vai ser uma droga crítica para melhorar o tratamento do HIV.
O medicamento foi aprovado pela agência norte-americana Food and Drug Administration (FDA) em agosto de 2013, pela europeia European Medicines Agency (EMA) em janeiro de 2014 e pela Anvisa em fevereiro de 2014.
Ainda não há solicitações e nem está em andamento a avaliação sobre a incorporação do dolutegravir na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS – Conitec. Conforme normativas vigentes, para a incorporação de medicamentos por meio da Conitec, é necessário fazer estudos de impacto e avaliações econômicas na perspectiva do SUS.
Para que a incorporação do medicamento seja avaliada e realizada o mais rapidamente pela Conitec e considerando a importância da utilização desse medicamento para as situações elencadas anteriormente, solicitamos que o Ministério da Saúde proponha estudos nesse sentido e analise a possibilidade de incorporação do dolutegravir no SUS, a fim de que os pacientes que precisem desse medicamento não fiquem descobertos.
A incorporação do medicamento deve ser acompanhada da alteração do protocolo clínico e das diretrizes terapêuticas para o tratamento da aids, a ser realizada em conjunto pelo Ministério da Saúde e pela Conitec. Dessa forma, a utilização do medicamento pode ser realizada racionalmente: de forma adequada às condições clínicas, em doses de acordo com as necessidades de cada paciente, pelo período de tempo adequado e ao menor custo para si e para a comunidade.
Ainda não estão disponíveis versões genéricas do medicamento e nem há uma sistematização de preços internacionais disponíveis. É extremamente necessário que o governo brasileiro verifique o preço pelo qual o medicamento está sendo comercializado nos países de renda média e que utilize os laboratórios públicos para estimar o custo de produção a fim de que possam haver negociações com a empresa farmacêutica, sem colocar em risco a sustentabilidade do SUS. Entendemos que a incorporação de tecnologias deve assegurar a observância do principio da universalidade no acesso e ser acompanhada por estratégias de garantia da sustentabilidade, com ênfase no uso de mecanismos voltados para a redução de preços, como a licença compulsória.
Os pedidos de patente do composto base do dolutegravir estão pendentes no Brasil e, se concedidas, as patentes não devem expirar antes de 2026. O pedido de patente para o composto base fez uso das reivindicações de “Markush”, possibilitando à empresa solicitar proteção para milhares de moléculas em uma única aplicação, inibindo potencialmente pesquisa e desenvolvimento do dolutegravir e outros inibidores de integrase da mesma família de moléculas. Várias patentes secundárias cobrindo intermediários e combinações foram solicitadas, que não devem expirar antes de 2029.
Como os pedidos de patente estão em análise pelo Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (Inpi), o Ministério da Saúde pode solicitar o exame prioritário para acelerar a análise dos pedidos. Dessa forma, com a concessão ou não do pedido podem ser tomadas medidas para restrição da situação de monopólio, criada pela concessão ou expectativa de concessão da patente, possibilitando a produção e comercialização de medicamentos genéricos, concorrência, redução do preço do medicamento e ampliação do acesso.
O Brasil tornou-se capaz de produzir muitos produtos para a saúde nos últimos 30 anos, contudo há dependência quando se fala na necessidade de importação para obter novas tecnologias em saúde. O fortalecimento da produção pública de medicamentos vem sendo considerada uma possível estratégia para reduzir os preços, garantir acesso aos usuários do SUS e diminuir a dependência do país. Como o medicamento ainda não está livre do monopólio patentário, pode ser utilizada a exceção Bolar para permitir o desenvolvimento do medicamento e o registro sanitário antes do fim da patente.
Em abril de 2014, foi anunciado um acordo de licença voluntária pelo mecanismo internacional Medicines Patent Pool para dois produtos: formulação pediátrica e adulta de dolutegravir. A licença exclui países de renda média, como o Brasil.
Em função desse contexto descrito e da urgência do tratamento para os pacientes que assim forem elegíveis, solicitamos que o Ministério da Saúde demande a incorporação do dolutegravir no SUS, de acordo com as exigências técnicas do processo de incorporação, e utilize as medidas de proteção à saúde previstas nas leis nacionais e internacionais para reduzir o preço do medicamento a fim de ofertá-lo de forma ampla.
REFERÊNCIAS
• Anvisa. Consulta de produtos. Medicamentos. http://www7.anvisa.gov.br/datavisa/consulta_produto/Medicamentos/frmConsultaMedicamentos.asp.
• Conitec. Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. http://conitec.gov.br/.
• Marins, J. R. P.; Jamal, L. F.; Chen, S. Y.; Barros, M. B.; Hudes, E. S.; Barbosa, A. A.; Chequer, P.; Teixeira, P. R.; Hearst, N. Dramatic improvement in survival among adult Brazilian AIDS patients. AIDS, v. 17, n. 11, p.1675-1682, 2003.
• Médicines Sans Frontières. Untangling the web of price reductions: a pricing guide for the purchase of ARVs for developing countries. 17th Edition. Geneva: Médicines sans frontière, 2014. http://www.msfaccess.org/sites/default/files/MSF_UTW_17th_Edition_4_b.pdf.
• Ministério da Saúde. Portaria GM n°. 3.916 de 30 de outubro de 1998. Aprova a Política Nacional de Medicamentos, cuja integra consta no anexo desta portaria. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF: 10 nov. 1998.
Ministério da Saúde. Secretaria de vigilância em saúde. Departamento de DST, Aids e hepatites virais. Boletim epidemiológico – Aids e DST. Ano II, n. 1. Brasília: Ministério da Saúde, 2013. 64 p.
• Up to Date. Clinical trials of HIV antiretroviral therapy: integrase inhibitors. 2013.
________________________________________
[1] O GTPI é composto por: Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS– ABIA (coordenação); Conectas Direitos Humanos; FENAFAR –Federação Nacional dos Farmacêuticos; GESTOS – Soropositividade, Comunicação & Gênero; Grupo de Apoio à Prevenção da AIDS – São Paulo– GAPA/SP; Grupo de Apoio à Prevenção da AIDS – Rio Grande do Sul– GAPA/RS; Grupo de Incentivo à Vida – GIV; Grupo Pela Vidda – São Paulo; Grupo Pela Vidda – Rio de Janeiro; Grupo de Resistência Asa Branca – GRAB; IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor; Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS – Núcleo São Luís do Maranhão; Universidades Aliadas por Medicamentos Essenciais – UAEM.