O Rio de Janeiro é segundo estado no Brasil com o maior número de óbitos em decorrência da AIDS (9,4 óbitos a cada 100 mil hab.), ficando atrás somente do Rio Grande do Sul (11,1 a cada 100 mil hab). E será o quarto no Brasil a ser contemplado com o “Acordo de Cooperação Interfederativa”. Estabelecida pelo Decreto 7.508/2011, a “parceria interfederativa” dispõe sobre a articulação para melhorar a organização do Sistema Único de Saúde (SUS): do planejamento da saúde à assistência à saúde por meio da liberação de recursos para ações estratégicas. No caso do Rio de Janeiro, o objetivo é melhorar os indicadores da epidemia de HIV/AIDS e principalmente reduzir a mortalidade por AIDS.
Os aportes irão para o “Plano Estratégico de Controle da Epidemia de HIV/AIDS, Sífilis e Hepatites Virais”, elaborado por meio de uma parceria entre a Fundação Oswaldo Cruz, o Ministério da Saúde e a Secretária Estadual de Saúde (SES). O plano já tem sido implementado no estado desde o segundo semestre de 2018. Embora a sociedade civil e o movimento AIDS do Rio de Janeiro tenham acompanhado a interfederativa desde os debates iniciais em torno da proposta, até o momento as ONGS estão à deriva do processo, conforme esclarece Juan Carlos Raxach, coordenador da área de promoção da saúde e prevenção, da ABIA.
Segundo ele, a não inclusão das comunidades afetadas e da sociedade civil no plano de trabalho é um grave problema da parceria. Nesta entrevista, Raxach explica sobre a parceria interfederativa e quais são os principais desafios para eficácia da medida. Também reforça a importância da articulação entre estado e sociedade civil na resposta à epidemia: “Se esses recursos forem bem administrados, coletados e se é feito um bom trabalho, a cara da AIDS do Rio de Janeiro pode mudar muito […]. Mas na medida que se deu a parceria entre governo e sociedade civil, o que eu não vejo nesse caso, poderia melhorar muito mais”, afirmou. Confira a entrevista completa:
ABIA: Defina o que é o Acordo de Cooperação Interfederativa.
Juan Carlos Raxach: O Acordo de Cooperação Interfederativa é uma ação que se propõe a contribuir com a melhora técnica dos indicadores de HIV/AIDS no Rio de Janeiro por meio da liberação de recursos extras para melhorar a resposta à epidemia no estado. A primeira vez que se falou sobre essa parceria foi em 2013 com o então coordenador do Departamento de DST e AIDS do Ministério da Saúde, Fábio Mesquita. A primeira reunião, que contou com a participação da ABIA, aconteceu em 2014. De lá para cá, as ONGs continuaram monitorando a situação da epidemia e registrando o aumento da mortalidade por AIDS no estado apesar do discurso sobre a política “Testar e Tratar”. Monitoramos também sobre a falta de profissionais de saúde, o momento da desterritorialização e descentralização dos centros especializados que acompanhavam as pessoas que vivem com HIV /AIDS na Atenção Básica. A partir deste cenário, muito se discutiu sobre os recursos da Interfederativa nesta reunião. Tínhamos perguntas tais como: para onde iriam os recursos, quem iria receber e como isso seria feito. Ao longo deste processo, um dos agravantes foram as trocas dos governantes no estado e isso atrasou bastante a implementação da Interfederativa no Rio de Janeiro. Aparentemente, o atual governante decidiu assinar o acordo para que as coisas prosseguissem.
No entanto, o Acordo de Cooperação Interfederativa tem alguns desafios. Por exemplo, não há profissionais de saúde para a Atenção Básica no Rio de Janeiro. As pessoas não conseguem atendimento nas Clínicas da Família, porque não tem médico. Os profissionais estão com os pagamentos atrasados. E no caso da AIDS, a Interfederativa propõe recursos destinados para a contratação de profissionais de saúde que vão atender exclusivamente a pessoa com HIV. Como vai ser destinar esses recursos apenas para uma patologia? As outras ficarão desassistidas? É claro que o HIV/AIDS é um agravante e precisa de uma atenção, mas temos que nos unir, porque há outras patologias e o problema é geral.
ABIA: Como foi a última reunião sobre a implementação da Interfederativa no estado do Rio de Janeiro?
Juan Carlos Raxach: Os recursos serão administrados pela Fiocruz. Esta instituição e a SES-RJ, elaboraram um plano de intervenção que contém vários indicadores sobre a epidemia de HIV/AIDS. A parceria já está acontecendo, o plano de trabalho foi implementado ainda no 2º semestre de 2018 e de lá para cá, estão sendo compilados dados que foram enviados pelos representantes dos municípios do Rio de Janeiro. As ONGs não participaram da elaboração desse material. Este nos foi apresentado já pronto numa reunião em que estiveram presentes representantes do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz), da SES-RJ, técnicos do Ministério da Saúde e unidades de saúde participantes dos municípios do RJ.
O foco desse plano de trabalho é a redução da mortalidade e a implementação da prevenção combinada. O Rio de janeiro é o segundo maior estado com maior número de mortes pela epidemia de AIDS. O plano também prevê o monitoramento e redução das mortes por tuberculose associada à AIDS, entre outros. Hoje, este plano já está em execução. Foram contratados profissionais e alguns municípios já começaram a reportar os dados e avaliar esses indicadores, como por exemplo, o que mede o abandono do tratamento. Nesta reunião, a ABIA chamou a atenção sobre a importância de colocar o porquê tem ocorrido o abandono do sistema. A partir da nossa fala, foi criado esse indicador também. É preciso entender o porquê a pessoa não está indo fazer o tratamento, se o ambiente não é acolhedor, ou se há outra causa. E a partir da nossa intervenção, foi criado um indicador para medir isso também.
Além disso, questionamos os indicadores sobre a AIDS e tuberculose, já que os números não estavam batendo pois não há um monitoramento adequado sobre a AIDS e a tuberculose. Também questionamos sobre os medicamentos que não estão sendo comprados e que a avaliação qualitativa precisa ser aprimorada. Na avaliação do monitoramento, em nenhum momento foi falado e sobre a estratégia, qual a estratégia? Também não sabemos.
ABIA: Há outros desafios a serem enfrentados?
Juan Carlos Raxach: Sim, há outras perguntas ainda não respondidas. Não sabemos qual o montante total de dinheiro que vai ser liberado pela interfederativa. Nós ligamos para a SES-RJ e solicitamos uma reunião com o Fórum Estadual das ONGs/AIDS para que isso seja esclarecido. Não sabemos como esse recurso vai entrar, quanto vai ser destinado para as organizações, como vai se dar o acesso e nem o porquê não haverá um edital.
Outra pergunta é sobre como vão fazer com que a rede de serviços se integrem e de fato produzam e mapeiem os dados que a interfederativa precisa para acompanhar e melhorar esses indicadores. A palavra que usamos na reunião foi harmonização de todas as pessoas envolvidas, desde os profissionais de saúde até às ONGs, para se ter um dado fiel do que realmente está ocorrendo na ponta. Precisamos também saber como e por quem vai ser feito o monitoramento, sugerimos que a sociedade civil seja contratada para de 15 em 15 dias coletar esses dados e fazer esse monitoramento na Atenção Básica. Não basta falar em recompilação dos números. Esses números já estão aí, contudo, quanto mais eu os vejo, mais estranhos me parecem. Também precisamos levantar dados qualitativos e saber como vamos compilar esses dados, saber como está a questão do estigma, da discriminação, e do acolhimento. Pode ser que a pessoa esteja abandonando o tratamento, mas qual é a causa deste abandono? Há vários fatores possíveis como a falta de recursos para fazer o acompanhamento, ou pode ser um problema do atendimento do serviço, pode ser um problema de estigmatização. Até agora nada disso foi falado.
ABIA: Como está a participação da sociedade civil neste processo?
Juan Carlos Raxach: O principal problema é a ausência da sociedade civil na criação desse plano de ação estratégico. Não houve a inclusão da sociedade civil na elaboração dos indicadores. E sem a participação da sociedade civil, não vejo como fazer esse enfrentamento do HIV/AIDS. Na última reunião aberta sobre a interfederativa, aportamos muito conhecimento para esses indicadores: mostramos o que estava errado, o que tinha que ser melhorado. Mas continuamos sem saber quais recursos irão chegar para a sociedade civil contribuir nesse processo de melhora dos indicadores de saúde. Ou seja, o papel da sociedade civil neste trabalho por enquanto ainda é uma grande incógnita. Quando foi levantada a questão dos recursos para as ONGS houve um embate bem forte. De um lado a Fiocruz dizendo que não haveria recursos para ONGs. De outro, os representantes das ONGS argumentaram que as ONGS estão fechando por falta de recursos e também lembraram, pela própria história da AIDS no Brasil, da importância que as ONGs façam parte deste processo a fim de dar efetividade às ações. Os representantes da Secretaria de Saúde concordaram com isso e confirmaram que haveria recursos para as ONGs. Aparentemente os recursos existem e deverá ser publicado um edital com bolsas e as ONGs deverão se candidatar para conseguir acessar estes recursos. Mas este será outro problema, pois precisa ficar estabelecido o que é a bolsa, qual o seu significado, quem estará apto a se candidatar, como será a concorrência e quem terá o poder de decisão no processo seletivo: a Fiocruz, a Secretaria Estadual de Saúde ou o Ministério da Saúde? Também podem decidir que os recursos não venham para as ONGs e sim que profissionais de saúde graduados sejam contratados, por exemplo. Por esses motivos, solicitamos uma reunião com a Secretaria Estatual de Saúde com o Fórum de ONGS/AIDS do Estado do RJ para que tudo isso seja esclarecido.
ABIA: O que está acontecendo hoje com sociedade civil e a resposta à epidemia hoje no estado?
Juan Carlos Raxach: No Rio de Janeiro, a sociedade civil está completamente desestruturada e com pouco conhecimento mesmo. Há algum conhecimento político, mas não há um conhecimento técnico e pouco conhecimento sobre as questões ligadas à epidemia. Os jovens, por exemplo, sabem muito pouco dessas patologias, das complicações pelas quais as pessoas estão morrendo. O jovem, na verdade, não sabe muita coisa sobre a AIDS. Sabem de prevenção combinada, sobre a PrEP, sobre os medicamentos e até do Testar e Tratar. Mas sobre a AIDS enquanto adoecimento, sobre o acesso rápido a rede de serviços, sobre a internação, não sabem. Ninguém briga por um leito! Existe uma rede informal que funciona, em que a ABIA está inserida e também a coordenadora do Programa de DST. Pessoas costumam recorrer à ABIA em busca de ajuda para internação, ou por que está faltando algum medicamento. Entramos no circuito e conseguimos ajudar a resolver. E aí tem aquela ideia de que a ABIA é muito boa, mas não deve ser assim. Isso tem que acabar. Não é ABIA, nem ninguém, é o SUS, é o sistema. É preciso ter uma rede formal, pegar essa rede informal que funciona e formalizá-la de maneira que todas as pessoas sejam representadas e atendidas. Sabemos que para uma pessoa que conseguimos atendimento, tem quatro que não conseguem, pois não tem a quem recorrer. E com certeza há muito mais pessoas morrendo na emergência que chegam e não são atendidas, não são diagnosticadas porque os profissionais não sabem diagnosticar por exemplo, quem está num quadro epiléptico, ou teve acidente vascular ou se é uma neurotoxoplasmose causada pelo HIV. As pessoas morrem por AIDS e essas mortes não entram nos óbitos. Não tenho dados sobre isso, mas sei que é um retrato do que acontece.
ABIA: Qual deverá ser o impacto da interfederativa na epidemia de HIV/AIDS no estado?
Juan Carlos Raxach: Se esses recursos forem bem administrados, coletados e se fizermos um bom trabalho, a cara da AIDS do Rio de Janeiro pode mudar muito com relação a mortalidade… enfim trabalhar uma série de questões, se contratar profissionais de saúde para fazer esse acompanhamento dos pacientes com HIV/AIDS e tuberculose, verificando a questão da adesão ao tratamento, acolhimento, carga viral e CD4, claro que vai mudar! Mas na medida que realmente se deu a parceria entre governo e sociedade civil, o que eu não vejo nesse caso, vai melhorar muito mais! Por que os profissionais que estavam lá tinham “conhecimento” para tratar o vírus biológico, mas não sabem como trabalhar o vírus ideológico, a questão do estigma, da discriminação… Todas essas questões devem ser trabalhadas também junto à comunidade, não apenas nos núcleos de Atenção Básica. Isso seria de fato um plano de trabalho riquíssimo dentro da saúde da família, com um plano de intervenção na comunidade. Mas a grande incógnita é se haverá isso.
Reportagem: Maria Lucia Meira (estagiária)
Supervisão e edição: Angélica Basthi