Em entrevista à HuffPost Brasil, o diretor-presidente da ABIA, Richard Parker, afirmou: “O Brasil tem uma história exemplar no tratamento do HIV/AIDS e não pode aceitar retrocessos”. A reportagem traz também as análises da diretora do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (Unaids) no Brasil, Georgiana Braga-Orillard.
Confira a reportagem completa a seguir:
Em 30 anos de luta contra o HIV e a AIDS, o Brasil se consolidou como referência mundial no combate à epidemia. Desde 1996 o País oferece tratamento gratuito no sistema público de saúde e conseguiu reduzir significativamente o número de mortes. Por outro lado, ainda registra cerca de 40 mil novos casos de infecção por HIV a cada ano.
A falha da política pública brasileira está na prevenção, na avaliação de líderes da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) e do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS no Brasil (Unaids) ouvidos pelo HuffPost Brasil. Mesmo com problemas, no entanto, os representantes defendem que o programa tenha sua continuidade garantida pelo próximo governo.
“O Brasil tem uma história exemplar no enfrentamento da epidemia de HIV/Aids e não pode aceitar retrocessos”, afirmou Richard Parker, diretor-presidente da ABIA, às vésperas do Dia Mundial de Luta contra a Aids, celebrado neste sábado (1º).
O Ministério da Saúde estima que cerca de 866 mil pessoas vivam com HIV/AIDS no Brasil, sendo 731 mil já diagnosticadas. Até setembro deste ano, 585 mil estavam em tratamento e recebiam os antirretrovirais pelo SUS. O investimento destinado para o departamento de HIV/AIDS em 2018 foi de R$ 1,7 bilhão. Os recursos vêm integralmente dos cofres da União.
Parker, que atualmente dirige a entidade fundada em 1987 pelo sociólogo e ativista Herbert de Souza, o Betinho, para combater a epidemia, vê com preocupação algumas falas de ministros indicados pelo presidente eleito Jair Bolsonaro.
“A gente já vê os novos ministros falando que a discussão da sexualidade não deve acontecer nas escolas, mas somente entre os jovens e os seus pais”, diz o antropólogo. O futuro ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, reforçou exatamente a ideia que a educação sexual é tema para ser tratado dentro de casa e chegou a dizer, em entrevista ao jornal O Globo, que tem ressalvas quanto à condução que o Brasil faz de ações contra o HIV.
O Brasil tem uma história exemplar no enfrentamento da epidemia de HIV/AIDS e não pode aceitar retrocessos. Richard Parker
Para o diretor-presidente da ABIA, isso mostra que as políticas de prevenção, que já vêm sendo enfraquecidas na última década, não terão a prioridade necessária para ajudar no controle da epidemia no novo governo.
Na avaliação de Parker, também não houve manifestação de Bolsonaro e sua equipe no sentido de assegurar que a sistema público de saúde continuará fornecendo a medicação para quem vive com HIV e AIDS no Brasil. “É fundamental primeiro garantir a continuidade das ações bem sucedidas que estão em curso, como, por exemplo, o acesso universal aos medicamentos. Até agora o novo governo não fez nada que sugere que entende a importância disso.”
Entenda: HIV x AIDS
HIV é a sigla em inglês do vírus da imunodeficiência humana. Causador da AIDS, ele ataca o sistema imunológico, responsável por defender o organismo de doenças. As células mais atingidas são os linfócitos T CD4+. O vírus altera o DNA dessa célula e assim faz cópias de si mesmo. Depois de se multiplicar, rompe os linfócitos em busca de outros para continuar a infecção.
Ter o HIV não é a mesma coisa que ter AIDS. Muitas pessoas vivem com o vírus por anos sem apresentar sintomas e sem desenvolver a doença. Mas ainda assim, podem transmiti-lo em relações sexuais desprotegidas, pelo compartilhamento de objetos cortantes contaminados ou durante a gravidez e a amamentação, de mãe para filho.
Fonte: Ministério da Saúde
“A vantagem que existe no Brasil é que o tratamento é garantido por lei. Nós já tivemos trocas de governo desde a implementação da legislação e não houve risco, porque o texto não deixa margem para interpretação do Executivo”, pondera a diretora da Unaids no Brasil, Georgiana Braga-Orillard. Para ela, garantir na legislação o acesso aos antirretrovirais de forma gratuita e universal foi um dos grandes êxitos do País no combate à epidemia.
A lei à qual ela se refere foi aprovada pelo Congresso e sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso em novembro de 1996. Com ela, o Ministério da Saúde passou a distribuir pelo SUS os 7 medicamentos que compunham o coquetel antiaids. Na época, a pasta afirmou que o Brasil foi o primeiro País a oferecer todos os remédios do coquetel na sua rede pública de saúde.
Metodologia ‘terrorista’
A resposta à epidemia de Aids no Brasil começou nos anos 80 de uma maneira mais limitada e “terrorista”, segundo Richard Parker. A atuação do governo na época foi muito criticada pelas ONGs e movimentos sociais que atuavam no combate à doença. O antropólogo relata que, após as críticas e com a Constituição de 1988, que estabeleceu a saúde como um direito, começou a se desenhar a política pública que se tornaria referência no mundo.
A vantagem que existe no Brasil é que o tratamento é garantido por lei. Georgiana Braga-Orillard
“O sucesso nos tratamentos usando uma terapia combinada de antirretrovirais para controlar a infecção começou a aparecer pela primeira vez nas pesquisas em 1996. Muito rapidamente o Brasil conseguiu passar uma lei que garantia acesso aos antirretrovirais para todos os cidadãos que necessitavam”, conta.
Outro marco importante, lembra Parker, foi a derrubada da patente do Efavirenz, antirretroviral utilizado por pessoas com HIV e distribuído pelo SUS, em 2007. Com a decisão do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o governo pôde importar o remédio de outro fabricante, não mais do laboratório americano que detinha a patente, por um valor 70% menor.
Mais recentemente, em 2013, no governo de Dilma Rousseff, o Brasil se antecipou à orientação da Organização Mundial da Saúde, de 2015, e passou a distribuir a medicação para qualquer pessoa diagnosticada com HIV/AIDS, independente da quantidade de vírus que ela apresentasse no corpo. A mudança, explica Braga-Orillard, faz com que o tratamento seja iniciado logo após o teste que indique a presença do HIV no corpo, antes do desenvolvimento da AIDS ou de outras doenças oportunistas.
“Estamos vendo o resultado disso hoje, com a queda no número de óbitos”, afirma. Dados mais recentes do Ministério da Saúde revelam que a taxa mortalidade por Aids no País caiu 15,8% entre 2014 e 2017, de 5,7 para 4,8 óbitos a cada 100 mil habitantes. Foram 11 mil mortes no ano passado, contra o pico de mais de 15 mil mortes registrado em 1996.
Além de um tratamento antecipado, também influencia no resultado positivo a qualidade do medicamento distribuído. Das 585 mil pessoas com HIV/AIDS em tratamento pelo SUS, 87% fazem uso do Dolutegravir, considerado um dos melhores remédios disponíveis para combater a infecção atualmente. Segundo o ministério, o medicamento aumenta em 42% a chance de supressão viral – que é diminuição da carga viral do HIV no sangue – entre adultos, quando comparado ao tratamento anterior, usando o Efavirenz.
Estamos vendo o resultado disso hoje, com a queda no número de óbitos. Richard Parker
Entre os que usam o melhor medicamento, 90% já atingiram a supressão viral, ou seja, a carga de HIV no seu sangue é indetectável e não há risco de transmissão pela via sexual. “Hoje nosso objetivo é que as pessoas fiquem indetectáveis”, afirma a diretora da Unaids.
Os antirretrovirais também estão disponíveis no SUS como forma de prevenção. A PEP (Profilaxia Pós-Exposição) é utilizada como medicação de emergência em até 72 horas após qualquer situação em que exista risco de contato com o HIV, inclusive por vítimas de violência sexual. O tratamento dura 28 dias e impede a multiplicação e sobrevivência do vírus no organismo.
Já a PrEP (Profilaxia Pré-Exposição), ofertada desde o início do ano, consiste na tomada diária de um comprimido que impede que o vírus causador da Aids infecte o organismo. A terapia é indicada para pessoas que tenham maior chance de entrar em contato com o HIV, como pessoas trans e trabalhadores do sexo. Segundo o ministério, desde a implantação, cerca de 6 mil pessoas já tiveram acesso à PrEP ao menos uma vez.
Por que o País ainda falha na prevenção
Embora a oferta de tratamentos no SUS faça com que o Brasil seja uma referência no combate à Aids, o número alto de novas infecções por ano revela uma falha nas políticas de prevenção, avaliam Richard Parker, da ABIA, e Georgiana Braga-Orillard, da Unaids.
No ano passado, foram diagnosticados 42.420 novos casos de HIV no País, segundo o último Boletim Epidemiológico divulgado pelo Ministério da Saúde. A taxa de detecção de AIDS subiu consideravelmente nos jovens do sexo masculino. Entre os homens de 20 a 24 anos, ela saltou de 15,6 em 2007 para 36,2 a cada 100 mil habitantes em 2017.
Braga-Orillard avalia que um dos problemas está na falha em se comunicar com o jovem de hoje. “Nós como sociedade precisamos entender esse jovem, quais são as suas necessidades e interesses, e dar uma informação adequada a sua idade, para que ele possa entender que a sexualidade é parte da vida”, afirma. “A gente investe tanto para que esses jovens aprendam português, matemática, inglês, porque não entender sobre sexualidade também?”
A Unaids chegou a emitir um alerta de que não será possível atingir a meta global de menos de 500 mil novas infecções por ano até 2020 com atual resposta para a epidemia. “A gente ainda precisa falar muito de prevenção, precisa chegar a populações mais vulneráveis, precisa falar de sexualidade, falar de educação sexual como sociedade, em casa e na escola”, afirma a diretora do programa da ONU no Brasil.
Para Parker, nos anos 1990 e 2000, o País “combinou o direito ao tratamento universal e gratuito com uma abordagem na prevenção baseada nos direitos humanos”, porém, na última década, a segunda parte da equação deixou de ser prioridade. Ele elenca dois fatores para explicar o fenômeno: a ênfase na abordagem biomédica da prevenção, com a adoção de tratamentos mais modernos, como a PrEP e a PEP; e a reação conservadora da sociedade.
Não acho que o problema é tanto sobre o medo. A minha leitura é que nós não conseguimos enfrentar o estigma. Richard Parker
O antropólogo lembra de duas campanhas de prevenção de AIDS do Ministério da Saúde que foram censuradas por pressão dos setores conservadores e religiosos, uma para o Carnaval de 2012, destinada a jovens gays e trans, e outra veiculada em 2013, direcionada a prostitutas.
Público alvo das campanhas censuradas, homens gays, pessoas trans e trabalhadoras do sexo fazem parte das chamadas populações-chave, que estão inseridas em contextos que aumentam suas vulnerabilidades à doença. Segundo o ministério, a epidemia brasileira de AIDS é concentrada nesses grupos. Enquanto a prevalência do HIV na população geral é de 0,4%, ela pode chegar a 10,5% entre gays e outros homens que fazem sexo com homens e 31,2% entre pessoas trans.
“Foi um contraste muito grande com a relativa ousadia que o Brasil tinha mostrado nos anos 90 e 2000 nos seus trabalhos de prevenção. Na época a gente avisou muito claramente que censura de campanhas acabaria resultando na piora da epidemia, e foi isso que aconteceu”, lamenta.
O presidente da ABIA acredita que a discriminação segue sendo o motor da epidemia e critica o discurso repetido pelo futuro ministro da Saúde, de que o acesso ao tratamento “banalizou a doença” e fez com que as pessoas “perdessem o medo da AIDS”.
“Não acho que o problema é tanto sobre o medo. A minha leitura é que nós não conseguimos enfrentar o estigma, a discriminação e a desigualdade da maneira que precisávamos para conseguir que todas as pessoas tenham acesso às ferramentas que precisam para fazer a prevenção e valorizem as suas vidas a ponto de conseguir se proteger – justamente porque a sociedade não as valoriza”, diz Parker.
Fonte: HuffPost Brasil