Richard Parker, diretor-presidente da ABIA, faz uma análise crítica sobre o discurso do fim da AIDS que circula hoje no mundo para a repórter especial da Folha de São Paulo, Claudia Collucci. Leia a entrevista na íntegra:
FALAR EM CURA PARA A AIDS É CRIAR UMA CORTINA DE FUMAÇA, DIZ ANTROPÓLOGO
A ideia de que o fim da Aids está próximo começa a ser propagada em eventos internacionais sobre a doença, mas ela serve apenas como “cortina de fumaça” para que governos escondam o corte de recursos para os programas e a falta de acesso a antirretrovirais mais modernos.
Para o antropólogo americano Richard Parker, 60, professor titular emérito na Universidade de Columbia (Nova York), apesar dos avanços reais no tratamento da Aids, há desafios imensos, como o fato de que 50% dos doentes não têm acesso à terapia.
O diretor-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids diz que até o bem sucedido programa de HIV/Aids do Brasil começou a perder força, com dificuldade de incorporar drogas mais caras e problemas de logística.
Folha – Há muitos discursos anunciando que o fim da Aids está próximo. Isso é real?
Richard Parker – Esses discursos triunfalistas se inspiram em um progresso real, na ampliação do acesso ao tratamento e na eficácia de novos antirretrovirais, além da possibilidade de usá-los na prevenção da infecção com profilaxia pós-exposição (PEP) e profilaxia pré-exposição (PrEP).
O problema é que os discursos sobre o fim da Aids ignoram a dura realidade da epidemia na maioria dos países e comunidades afetadas. Já se passaram 20 anos desde o anúncio de tratamentos eficazes e, apesar dos esforços, cerca de 50% das pessoas ainda estão sem acesso a eles.
Em muitos países, os medicamentos são ultrapassados, com efeitos colaterais importantes, algo que que poderíamos chamar de “acesso de segunda classe”.
Por que há tanto silêncio em relação a essas questões?
A ganância das farmacêuticas, o atual sistema de patentes, a falta de compromisso e investimento por parte dos governos, e assim por diante.
Apesar de avanços, existe uma falta de compromisso com a prevenção.
Em escala global, o número de novas infecções pelo HIV não tem caído desde 2010, porque nunca se garantiu o acesso à prevenção como um direito de todos, sobretudo por causa do estigma e da discriminação que ainda cercam a epidemia.
Por tratar de questões como a sexualidade e o uso de drogas, a maioria das sociedades deixa de investir na prevenção ou investe em maneiras preconceituosas e contraprodutivas, sem enfrentar as barreiras que deixam as pessoas vulneráveis.
Então é irreal a meta de se acabar com a Aids até 2030?
A nossa leitura crítica reconhece que falta muito para o fim da Aids. E o maior problema é que a comemoração antecipada sobre essa meta serve como uma cortina de fumaça, e esconde a dura realidade da persistência da epidemia em quase todos os países. Esconde o sofrimento das pessoas que ainda não têm acesso ao tratamento. Esconde as expressivas taxas de mortalidade, mesmo em países com acesso universal, como o Brasil. E esconde a falta de acesso à prevenção.
Isso também tem impacto no futuro do financiamento dos programas de Aids?
A situação política em quase todos os países doadores beira uma tragédia. É nítido que os recursos para financiamento da saúde, de modo geral, e da Aids, especificamente, vão diminuir tanto por parte dos países doadores (EUA e Europa) quanto por parte da capacidade de planejamento nos países mais afetados pela epidemia.
Na medida que o ímpeto de [Donald] Trump e outros é colocar “a América em primeiro lugar”, recursos para apoiar o desenvolvimento de outros países e regiões vão diminuir drasticamente.
E a ideia de que a Aids está prestes a acabar oferece uma justificativa perfeita –o risco para programas de Aids é real. Pela primeira vez desde a sua criação, o Unaids sofre sérias ameaças de cortes de verba. Em outros países, inclusive o Brasil, o neoliberalismo econômico e sua ênfase em ajustes fiscais ameaçam a continuidade de programas.
Quais países pobres já enfrentam o corte de recursos?
Depois de uma década de aumentos de investimento ao longo dos anos 2000 –devido principalmente às grandes iniciativas como o programa Pepfar do governo dos EUA e do Fundo Global para Aids, Tuberculose e Malária, incentivado pela ONU–, hoje assistimos o que podemos chamar de “scale-down” ou a retirada de apoio.
O Pepfar já iniciou a retirada de apoio nos seus países prioritários, tais como Vietnã, África do Sul, Tanzânia, e outros, principalmente na África. E o Fundo Global não consegue receber todo o dinheiro prometido pelos países doadores.
Enquanto a indústria farmacêutica oferece descontos para países com extrema pobreza, ela mesma cobra preços mais altos nos países de renda média e nos emergentes, que têm menos acesso ao dinheiro da cooperação internacional.
Isso dificulta a adoção de medicamentos antirretrovirais de segunda e terceira geração, com menos efeitos colaterais. Um problema que afeta diretamente o Brasil.
O país nunca recebeu apoio externo para bancar o custo de remédios, mas, ao longo dos anos, recebeu financiamentos para apoiar os outros componentes de um programa integral de enfrentamento ao HIV/AIDS.
As fontes de apoio internacional, porém, não existem mais. E há impacto direto na capacidade de o país de manter a qualidade dos outros serviços que fazem parte de uma resposta adequada à epidemia.
Existe risco de reemergência da epidemia no Brasil?
Ao longo dos anos 1990 e 2000, o Brasil construiu uma resposta à epidemia que foi extremamente bem-sucedida. Infelizmente, no começo dos anos 2010, esse compromisso começou a ficar menos evidente. O governo não conseguiu resistir às pressões dos setores conservadores, e abandonou as campanhas de prevenção e luta contra o estigma e a discriminação.
Muitas organizações da sociedade civil fecharam. E até o bem-sucedido programa de acesso aos medicamentos começou a perder força, com dificuldade de incorporar novas drogas mais caras e crescentes problemas de logística no fornecimento de medicamentos.
Esses retrocessos coexistem com outras ações que podem ser avaliadas positivamente. Testagem rápida pode ser um ganho, mas vamos ter que avaliar as suas consequências. A disponibilidade de PEP é certamente um ganho, mas não tem sido bem divulgada e pode limitar a sua eficácia.
A disponibilidade de PrEP tem sido anunciada pelo Ministério da Saúde, sem de fato ter sido ofertada. Finalmente parece que neste ano vai virar uma realidade, mas vamos ter que esperar para ver.
Há omissão dos programas governamentais em relação à concentração da infecção pelo HIV entre jovens gays e outras populações?
Não há dúvida que há uma omissão histórica em relação à concentração da infecção pelo HIV entre jovens gays e outras populações marginalizadas.
Podemos ver isso claramente na sequência de casos de censura de campanhas de prevenção para essas populações a partir de 2010.
No último ano, as campanhas melhoraram e podemos notar pelo menos uma tentativa de retomar a preocupação com as barreiras do estigma e da discriminação. O contexto político polarizado com tremenda falta de liderança com relação às questões sociais, de um modo geral, dificulta muito esse resgate.
–
Raio-X
Idade
60 anos
Atuação
Diretor-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), professor titular emérito e membro do Comitê de Pensamento Global na Universidade de Columbia (Nova York); autor de mais de 250 publicações científicas
Fonte: Folha de S. Paulo