O Centro Cultural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, recebeu o 2ª dia de atividades do II Seminário de Capacitação em HIV – Aprimorando o Debate III, cujo tema é “Estigma, Pânico Moral e Violência Estrutural”. Organizado pela ABIA – e com o apoio de ONGs e parceiros locais – o evento reúne até sexta-feira (17/05), estudantes de diversas áreas, ativistas, pessoas vivendo com HIV/AIDS, pesquisadores e profissionais da saúde para debater e refletir acerca do impacto do estigma, da discriminação e da violência estrutural na epidemia de HIV/AIDS, no acesso aos serviços de saúde de modo geral e na vida das populações marginalizadas.
Pela manhã, a mesa “Estigma e Pânico moral: ataques ao gênero, sexualidade e a luta contra a AIDS” reuniu pesquisadores do campo do direito, da saúde e da sexualidade para debater sobre o tema do painel em meio ao avanço do conservadorismo e da LGBTfobia no cenário político atual. “Os processos de estigmatização acabam alimentando um ciclo de violências estruturais que privam os indivíduos afetados por ele de seus direitos, inclusive o da saúde, o que fica evidente no caso da epidemia de HIV/AIDS”, afirmou o desembargador federal da 4ª Região, Roger Raupp Rios.
De acordo com o juiz, o estigma é onipresente: está no campo individual, na percepção sobre si mesmo (e sobre o outro), nas relações sociais e nas estruturas e espaços de poder. Rios também criticou o texto da proposta da nova reforma da previdência que proíbe o acesso à serviços de saúde via aparato legal ou jurídico: “O texto é uma violência estrutural e que incide no próprio princípio é da discriminação, que é o ato de restringir o gozo ou exercício, em condições de igualdade, dos direitos humanos e fundamentais”.
A mobilização do aparato legal para coibir ou reforçar práticas discriminatórias fundamentadas no estigma foi questionada pelo psicólogo e pesquisador Ângelo Brandelli durante a apresentação da pesquisa “Homoafetividade e a Política de Sexualidade no campo do HIV e da AIDS”. Brandelli falou sobre o princípio da afetividade, mobilizado por setores do movimento social e LGBT em defesa do casamento igualitário e da união estável entre pessoas do mesmo sexo no Brasil. Segundo ele, esses grupos procuraram localizar na constituição o princípio da afetividade como direito que fundamentaria a união entre pessoas do mesmo sexo numa tentativa de afastar o estigma relacionados à sexualidade LGBT. E também buscam associar casais “homo afetivos” a valores positivos relacionados a casais heterossexuais, como o desejo de sedimentar laços familiares.
A estratégia contribuiu para o que o pesquisador chama de “dessexualização” da sexualidade, cada vez presente nas campanhas de saúde que tratam sobre o HIV e AIDS, mas sem mencionar o sexo: “O que mobiliza a estigmatização e a violência contra as populações LGBTs é o sexo! Mudar a concepção de homossexualidade para homoafetividade não afeta as estruturas de poder que sedimentam a LGBTfobia e cria um dispositivo para regular as formas não-heterossexuais de sexualidade”, criticou.
A regulação da sexualidade e a perseguição aos grupos com comportamentos considerados pelo conjunto da sociedade como “desviantes” também foram abordados por Sonia Corrêa, pesquisadora feminista e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e política (SPW, sigla em inglês), secretariado pela ABIA. Durante sua participação, Corrêa apresentou dados do Projeto Género & Politica en América Latina (G&PAL), do SPW. O estudo acompanha as estratégias e os atores dos movimentos anti-gênero em nove países latino-americanos e identifica como setores religiosos têm retornado às ideias do “direito natural” atacando as fundações dos direitos humanos e dos movimentos sociais.
“Esse movimento, que nasce na Igreja Católica e que hoje é ecumênico, é uma reação à incorporação na democracia, a partir da segunda metade do século XX, das questões de gêneros e sexuais tal como os direitos reprodutivos, a inserção das mulheres no mercado, os direitos da população LGBT” apontou a pesquisadora. “É preciso reconhecer o tamanho do impacto da violência estrutural que esse movimento retoma e também como ela se engendra com os setores econômicos e do Estado, prejudicando a vida, quando não efetivamente matando milhares de pessoas”, finalizou Sônia.
Gênero e raça
À tarde, a violência estrutural enfrentada por grupos historicamente marginalizados foi o mote central das reflexões da mesa “Fatores de Violência Estrutural na resposta à AIDS”. A psicóloga, ativista e pesquisadora das questões de gênero, raça e etnia, Maria Luisa Pereira, por exemplo, abordou o impacto do racismo e do sexismo na vida e da saúde das mulheres negras e da população negra em geral. “Diversos estudos apontam que a epidemia de HIV e AIDS é diretamente afetada pelas dificuldades em se prevenir. Ainda hoje é preciso pontuar como a pobreza e a exclusão, além das outras formas de violência estrutural já naturalizadas principalmente no caso da população negra, deixam as pessoas ainda mais vulneráveis ao vírus e a doença ”, afirmou.
Já Célio Golin, presidente e um dos fundadores da ONG Nuances, destacou que desde o início da epidemia a violência estrutural era enfrentada pela comunidade LGBT no contexto do HIV e da AIDS. “As pessoas não assumiam sua sexualidade justamente por conta dos estigmas e patologias associadas a ela, e é nesse contexto que a epidemia de HIV/AIDS chega e coloca a sexualidade no centro das questões de saúde. Às vezes, revelar a sorologia era revelar a sexualidade também. Tanto o HIV quanto a homossexualidade carregavam consigo uma carga de violências muito grandes para se enfrentar, muitos não conseguiam”.
Kátia Edmundo, diretora executiva do Centro de Promoção da Saúde (CEDAPS), expôs sobre as ações que vem realizando no enfrentamento das desigualdades no âmbito da saúde, com foco especifico nas pessoas que vivem com HIV/AIDS, jovens moradores de favela e periferia, população negra e pessoas com deficiência. Uma delas, é a inciativa “Caminhos da inclusão”, que aborda o tema da sexualidade, prevenção do HIV/AIDS e das ISTs e deficiência. “Quando falamos em inclusão não temos a prática de fazer referência às pessoas com deficiência. Todos nós podemos ter ou desenvolver em algum momento alguma limitação ou disfunção. Pensar em violência estrutural é pensar na desigualdade social, no racismo, na LGBTfobia e também de que maneira, eles se incidem sobre os mais diferentes corpos”, lembrou.
Ao final do dia, foi a vez do lançamento e distribuição gratuita dos livros da ABIA (“Vida antes da morte”, e “Aids, a terceira epidemia”, lançados originalmente em 1989 e em 1990, respectivamente) e da Casa Fonte Colombo (“Tratamento como prevenção” e “Que pais é esse?”). Também foram expostos ao público e distribuídos cartazes da ABIA, do Grupo de Apoio à Prevenção da Aids no Rio Grande do Sul (GAPA/RS) e da ONG Nuances.
O projeto Aprimorando o Debate III é uma parceria da ABIA com o Ministério da Saúde que prevê a realização de quatro seminários de capacitação nas regiões Sul e Sudeste do Brasil ao longo de um ano, com o objetivo e aprimorar o conhecimento multisetorial e interdisciplinar em torno da epidemia de HIV/AIDS.
A próxima edição acontecerá de 26 a 28/06 no Rio de Janeiro e terá como tema “Prevenção das ISTs/AIDS: novos desafios na quarta década da epidemia”. Inscreva-se até o dia 20/05 neste link: https://forms.gle/jhriQm2QBV6T91nm8
Reportagem: Maria Lucia Meira (estágio)
Supervisão e edição: Angélica Basthi