A neoliberalização da resposta ao HIV e o desmonte da resposta brasileira; a implementação da estratégia 90-90-90; a experiência latino-americana no acesso a medicamentos e a construção da agenda de acesso a medicamentos pelo movimento social foram alguns dos temas abordados durante o Seminário “Política de Acesso a Medicamentos e Direitos Humanos”, organizado pela ABIA e o Grupo de Trabalho de Propriedade Intelectual (GTPI) – coletivo de ativistas, coordenado pela ABIA.
O encontro, que aconteceu de 26 a 28 de setembro no Rio de Janeiro, reuniu ativistas, acadêmicos e especialistas do Brasil, Argentina, Peru, Colômbia, Marrocos, África do Sul e Rússia. O público (280 inscritos) ou participou presencialmente ou assistiu via transmissão ao vivo, que foi amplamente divulgada nas redes sociais (500 pessoas acompanharam o evento online).
A solenidade de abertura aconteceu na noite do dia 26/09. A palestra magna foi ministrada pelo embaixador Celso Amorim, atual Presidente do Conselho Executivo da UNITAID (Agência Internacional de Medicamentos para o Combate à AIDS) que relembrou momentos importantes sobre as negociações relacionadas às patentes. E destacou que o relatório divulgado recentemente pelo Painel de Alto Nível da ONU tem como ponto mais importante o tema da propriedade intelectual. A noite contou ainda com a participação de Richard Parker, diretor-presidente da ABIA, que declarou as boas-vindas aos participantes.
O evento ofereceu seis mesas com palestras relevantes de mais de 20 especialistas, tais como Lynete Mabote (Arasa, África do Sul), Lorena Di Giano (RedLAM), Javier Llamosa (AIS, Peru) e ainda Richard Parker, Pedro Chequer, Renata Reis e Eloan Pinheiro, dentre outros.
No dia 27, na mesa “Sustentabilidade, sistemas de saúde e direitos humanos”, a sul-africana Lynette Mabote (ARASA) questionou como é possível a África do Sul e outros países se preocuparem com a meta 90-90-90 se outras metas ainda não avançaram. ”A meta anterior 0-0-0 (0% de casos de infecção, 0% de discriminação e 0% de óbitos), que deveria ser cumprida até 2015, não foi atingida”, denunciou.
Já Richard Parker (ABIA) afirmou que fatores como o incentivo a uma resposta à epidemia somente pelo viés biomédico e a pressão conservadora contribuíram para o desmonte da resposta brasileira nos últimos anos. E lembrou que historicamente, a pressão do movimento social foi motor para muitas conquistas brasileiras no campo da AIDS. “Só mobilização política faz alguma coisa acontecer”, disse.
Ainda na mesa sobre “Sustentabilidade, sistemas de saúde e direitos humanos”, Lorena Di Giano (RedLAM) destacou os preços abusivos dos medicamentos essenciais na Argentina e em outros países da América Latina e denunciou o ataque de gigantes farmacêuticas a países e suas salvaguardas.
Medicamentos e direitos
Já Mayra Vasquez (Ifarma), na mesa “Incorporando práticas, medicamentos e direitos: o ativismo terapêutico em perspectiva” contou sobre a experiência colombiana com o mecanismo da licença compulsória. Segundo Vasquez, o país tem sofrido represália de farmacêuticas por utilizar a medida. Para ela, os esforços para produção regional da América Latina seria uma das principais soluções para as demandas e entraves com patentes dos países dessa região.
Javier Llamoza (AIS), ao abordar o uso do atazanavir no Peru, revelou que entre 2013 e 2014 o país gastou 53% do orçamento da AIDS apenas com o medicamento. O preço abusivo e a dificuldade em negociar com a farmacêutica levaram o país a requisitar a licença compulsória do medicamento.
Para o ativista Gonzalo Berrón (FES e Vigência), as patentes garantem o direito das corporações farmacêuticas em detrimento dos direitos das pessoas, além de blindar a capacidade do Estado de fazer política pública. Ele aponta que os princípios norteadores dos direitos humanos que tangem a negociação com empresas (proteger, cuidar e remediar) não são cumpridos.
Hepatite C
No último dia, aconteceu a mesa dedicada ao tema da Hepatite C e a ampliação do acesso a direitos. Pedro Villard, do GTPI/ABIA, destacou a ausência do tema nas agendas de saúde. “Qual escândalo seria se a AIDS tivesse cura e isso não fosse divulgado? Isso aconteceu com a Hepatite C”, provocou, defendendo que o movimento AIDS se aproxime cada vez mais ao de Hepatites.
A consultora Eloan Pinheiro lembrou que só no Brasil há cerca de 600 mil casos confirmados de Hepatites e apenas 39% desses casos e 4% dos estimados são tratados no país. “O Estado não está se responsabilizando pela patologia”, declarou.
Arair Azambuja, do Movimento Brasileiro de Luta Contra as Hepatites Virais, denunciou que, em 2014, o Brasil contabilizou oito mil pessoas com câncer hepático. Dessas, apenas 1.756 fizeram transplante hepático. Azambuja apresentou uma pesquisa realizada nos Estados Unidos, que indica que 75% da população entre 52 e 70 anos do país tem Hepatite C. No Brasil, a faixa etária dos mais afetados pela doença é de 51 a 60 anos.
Ao final do encontro, Veriano Terto Jr., coordenador da área de acesso a tratamento da ABIA, pediu a colaboração de todos para a continuidade de ações e a articulação entre redes regionais e globais para o alcance da justiça social, da universalidade e da equidade, princípios do SUS.
O diretor-presidente da ABIA, Richard Parker, complementou, ressaltando que a colaboração, sobretudo a internacional, e também as redes construídas dão esperança para uma base de resistência frente aos tempos sombrios e de tendências conservadoras e neoliberais.