Os primeiros autotestes para detecção do HIV aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)[1,2] estão chegando das farmácias às mãos dos pacientes. Trata-se de testes rápidos que utilizam fluido da mucosa oral ou uma gota do sangue da polpa digital, cuja execução, leitura e interpretação de resultados podem ser feitas em privacidade em, no máximo, 30 minutos. O resultado, qualitativo, aparece na forma de linhas coloridas fáceis de interpretar.
Nos primeiros cinco meses no mercado brasileiro, o teste de sangue Action, teve 32.481 unidades vendidas, segundo informou ao Medscape a Orangelife, fabricante do produto. Comercializado em farmácias por cerca de R$ 70, o teste teve o público masculino, na faixa etária entre 27 e 47 anos, responsável por 90% das vendas, segundo dados do fabricante. Já o HIV Detect Oral ECO Teste, para a detecção qualitativa de anticorpos do HIV 1/2 em amostras de fluido oral estará disponível no final de fevereiro a um preço de entre R$ 65 e R$ 85, segundo informa a Eco Diagnóstica. A previsão é que a fábrica, localizada numa pequena cidade de 24 000 habitantes no estado de Minas Gerais, venda 50.000 testes no primeiro ano. Outro exame, o Saliteste HIVpara detecção qualitativa de anticorpos para o VIH 1 e 2 na mucosa oral exsudada da Ebram Produtos Laboratoriais, de São Paulo, informa previsão de chegada no mercado até o final do mês de março.
O projeto “A Hora é Agora”, da cidade de Curitiba foi a primeira iniciativa do tipo no mundo. Coordenada pelo Instituto Nacional de Infectologia (INI/Fiocruz) a plataforma virtual e-testing permite que os usuários recebam o teste de fluido oral em casa. De dezembro de 2014 até setembro de 2016, mais de 6 mil pessoas fizeram a solicitação pelo website e receberam o teste pelo correio ou o retiraram na farmácia.[3] Hoje é possível solicitar o teste também por aplicativos de smartphone, disponíveis para os sistemas Androide IOS. Outros testes rápidos, produzidos pelo laboratório Bio-Manguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz, são levados com frequência por organizações não-governamentais (ONGs) a universidades, boates e comunidades[4].
De uma forma ou outra, as perguntas sobre testes feitos em âmbito privado, vêm aparecendo de forma crescente nos consultórios. Isso porque um problema que já é aguardado, e que vai recair sobre toda a classe médica, refere-se ao acompanhamento inicial do usuário com resultado positivo para o vírus causador da aids.
Com sensibilidade e especificidade >99,9%, estes produtos não têm valor diagnóstico, são considerados exames de rastreamento que precisam de um segundo teste confirmatório. Também não são novos. Há tempo eles se destinam a uso profissional (laboratórios de análises clínicas, hospitais, clínicas médicas, laboratórios de pesquisa, universidades e órgãos públicos). A novidade, é que agora estão sendo utilizados por usuários leigos, sem qualquer acompanhamento.
O coordenador de HIV e AIDS da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), Dr. José Valdez Ramalho Madruga, reconhece nestes testes um avanço positivo “porque eles facilitam o acesso”.
“Há pessoas que antes iam doar sangue só para fazer a testagem. Nos congressos internacionais sempre há exemplos de quanto a facilidade de acesso ao teste também facilita o diagnóstico. Há pessoas que têm receio ou se recusam a ir ao hospital, e a grande vantagem é que o indivíduo decide com quem quer compartilhar o resultado”.
“Estes testes são confiáveis, que devem ser incentivados”, concorda o Dr. Mauro Romero Leal Passos, Professor-Titular e chefe do Setor de DST (MIP/CMB) da Universidade Federal Fluminense, presidente da Sociedade Brasileira de DST, e editor-chefe do Brazilian Journal of STD.
“São importantes porque servem como primeiro teste, uma triagem, uma oportunidade, um ponto de partida.”
A acurácia depende de erros na manipulação, na interpretação de resultados, e de serem utilizados no período de chamada janela imunológica. Um resultado positivo não deve ser interpretado como um diagnóstico positivo. É preciso um teste confirmatório. Um teste não reativo deve ser repetido por aqueles que tenham se testado entre seis e 12 semanas após a possível exposição ao HIV. Pacientes em uso de drogas antirretrovirais para tratamento ou prevenção devem ser orientados a refazer o teste.[5]
Segundo o Dr. Leal Passos, por vezes os médicos demoram em acreditar nestes testes de farmácia que, mesmo simples, não são menos confiáveis. Ele destaca: “O Brasil é muito exigente para o licenciamento destes produtos. Para serem aprovados, devem estar todos dentro do mesmo padrão. Já foram muito testados até porque eram utilizados nos serviços de saúde. No meu serviço sempre fazemos o teste com duas marcas: os dois dando positivo, encaminhamos a outros testes necessários para iniciar e acompanhar o tratamento: carga viral, genotipagem, CD4 e CD8.”
Problemas novos
Os testes rápidos já são parte do sistema público[6], mas os produtos que são vendidos nas farmácias, de forma presencial ou pela internet, podem trazer problemas novos. Sem assessoramento prévio, o resultado poderia ser usado pelos indivíduos para justificar comportamentos de risco. A testagem coercitiva por parte de parceiros sexuais, membros da família ou outros também não pode ser descartada. Entretanto, o problema que deve recair sobre toda a classe médica refere-se ao acompanhamento inicial do usuário .
Segundo as regras para o registro de produtos para diagnóstico in vitro como autoteste para o HIV[7], o fabricante “deve fornecer canal de comunicação telefônico, sem custo, disponível 24 (vinte e quatro) horas por dia, durante 7 (sete) dias por semana, de suporte ao usuário com acesso direto a pessoal capacitado para atender, orientar e encaminhar as demandas do interessado sobre o uso do produto, interpretação dos resultados e como proceder após sua obtenção e a embalagem do produto deve indicar o serviço de atendimento da empresa assim como o serviço Disque-Saúde do Ministério da Saúde.” Apesar do disposto no texto, nas fotos dos produtos e nas bulas fornecidas pelas empresas durante a apuração desta reportagem, não há destaque para essa informação. O site do único teste já está disponível para venda, o Action, quando testado pela redação, não funcionou.
O Dr. Juan Carlos Raxach, coordenador da área de promoção da saúde e prevenção da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) acredita que por falta de acompanhamento adequado, “estes testes podem não ser uma solução, mas um problema.”
“O Brasil não está preparado para acompanhar estas novas formas de testagem por problemas de infra-estrutura no sistema público. Se as pessoas se testam de forma individual, e não a partir de um programa organizado, que os acolha e ajude no atendimento, a primeira consulta pode demorar até seis meses. Nossa experiência mostra que se os pacientes infectados pelo HIV não são atendidos e acompanhados na hora, os indivíduos que se sentem bem e negam a situação, se esquecem. Até lembrar o assunto tempo depois, com os primeiros sintomas da AIDS.”
O Dr. Raxach reconhece que o problema se verifica em grande parte do país, mas destaca que a situação no Rio de Janeiro é muito grave.
Mesmo com estes obstáculos, o Dr. Leal Passos não duvida que a disponibilização dos testes para a população seja um avanço.
Desde 2016 o Conselho Federal de Medicina (CFM) recomenda que o médico verifique nas consultas se seus pacientes realizaram testes sorológicos para sífilis, HIV, e hepatites B e C. Caso não tenham sido realizados, o médico deve orientar o paciente sobre a necessidade, a oportunidade ou a conveniência de fazê-los[9].
Se o resultado for negativo, o médico deve, além de considerar o período da janela imunológica, reforçar a importância da prevenção. Se a infecção comprovada por um segundo teste, o paciente deve receber a orientação necessária e ser encaminhado a um serviço de saúde adequado. De acordo com a Portaria do Ministério da Saúde de 06 de junho de 2014[10], em caso de suspeita ou diagnóstico de HIV, a notificação deve ser feita em até sete dias após a prestação do atendimento ao paciente. A infecção por HIV é listada como uma das doenças de notificação compulsória.
Fonte: Medscape