Devido a uma política historicamente progressista para o tratamento e a prevenção do HIV/AIDS em articulação com os direitos humanos, o Brasil tem sido considerado um importante bastião na resposta à epidemia da AIDS no mundo. A crescente influência do conservadorismo no país, entretanto, aponta para um futuro incerto do Brasil como um líder desta luta.
À medida que as infecções por HIV aumentam de maneira alarmante nas populações marginalizadas em todo o planeta, os órgãos governamentais internacionais de HIV/AIDS se veem compelidos a considerar os determinantes sociais e estruturais que concentraram injustamente a incidência da epidemia em comunidades vulneráveis.
As falhas produzidas por políticas anteriores que priorizavam ações verticalizadas de cima para baixo contribuíram para que a mobilização comunitária e coletiva se encontre na vanguarda do debate global sobre HIV/AIDS. Mesmo assim, o governo Bolsonaro parece estar empurrando a resposta brasileira na direção oposta.
Na publicação mais recente da revista internacional The Lancet HIV, publicada em outubro de 2019, dois artigos analisam as ameaças que o governo Bolsonaro representa ao histórico e bem-sucedido programa do Brasil na resposta ao HIV e à AIDS.
O primeiro artigo sobre da revista, “O populismo ameaça a resposta brasileira ao HIV/AIDS”, analisa as implicações nacionais promovidas pela marca ultraconservadora das políticas populistas de Bolsonaro, enquanto o segundo artigo, “ABIA: mantendo o interesse pelo HIV no Brasil” avalia a importância da sociedade civil na luta pela manutenção de uma abordagem baseada em direitos na política de HIV/AIDS. Embora cada artigo critique a administração brasileira atual através de diferentes lentes analíticas, ambos concluem que o progresso em direção a um futuro livre de HIV/AIDS depende quase inteiramente da inclusão social e da mobilização comunitária.
Tecendo uma crítica à visão retógrada de Bolsonaro sobre governança, o artigo “O populismo ameaça a resposta brasileira ao HIV/AIDS” destaca a desumanidade do plano de HIV/AIDS proposto pela presente administração. Desde a sua campanha em 2018, o atual presidente cultivou uma estrutura permissiva à retórica de ódio e de ações violentas contra comunidades estigmatizadas. A forma como reitera e aprofunda as divisões sociais contraria a mudança cultural necessária para reprimir a epidemia de HIV em comunidades vulneráveis e, como resultado, falha em respeitar os direitos humanos aos quais todas as pessoas têm direito.
Além de exacerbar e até promover as desigualdades sociais que impulsionam a epidemia de HIV, Bolsonaro também começou a desmantelar as instituições que foram construídas ao longo de décadas para apoiar a resposta nacional ao HIV/AIDS no Brasil nos primeiros meses de seu governo. Sob o pretexto de estar realizando uma reestruturação institucional, o governo Bolsonaro eliminou o Departamento de HIV/AIDS do Ministério da Saúde em maio de 2019 e, posteriormente, censurou em julho, a comunicação governamental sobre o HIV que não obedeça à diretriz míope baseada em “valores familiares” tradicionais e heterossexuais. Ao silenciar nacionalmente o movimento de HIV, Bolsonaro impede que muitas comunidades vulneráveis – como PVHIV, profissionais do sexo e a comunidade LGBTQ – acessem os cuidados vitais necessários para lidar com a doença. Assim, restaura-se uma postura arcaica e cruel que ignora os abusos de direitos humanos e o atual aumento das mortes por AIDS.
No Brasil, a resposta ao HIV é historicamente ligada à luta pela própria democracia, e as ONGs têm sido fundamentais para conectar esses dois movimentos. A Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) serviu particularmente como uma das lideranças mais proeminentes do movimento de HIV/AIDS no Brasil e o artigo da Lancet “ABIA: mantendo o interesse pelo HIV no Brasil” destaca a importância e a singularidade desta organização na liderança da resposta brasileira ao HIV/AIDS. Com uma rede de defensores e pesquisadores do HIV em todo o mundo, a ABIA produz constantemente publicações e material educativo de alta qualidade, que garantem o acesso à informação das comunidades mais vulneráveis à epidemia. A ABIA está comprometida com a busca pela justiça social e, embora a organização esteja enraizada em bases comunitárias, a influência da ABIA afeta todas as áreas da resposta ao HIV/AIDS.
Historicamente, a ABIA desempenhou um papel significativo na fundação do Conselho Internacional de Organizações de Serviços à AIDS (LACCASO), na aprovação da lei brasileira de acesso às terapias antirretrovirais e na criação do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI). Altamente qualificada em defesa dos direitos humanos e em mobilização comunitária, a ABIA amplia efetivamente as vozes dos mais vulneráveis de uma maneira que ressoa com uma audiência global e estimula mudanças consideráveis em termos de políticas.
Apesar das ONGs terem sido especialmente bem-sucedidas em pressionar por mudanças no Brasil, os consistentes recuos do financiamento de HIV para ONGs nos últimos anos reduziram severamente a capacidade operacional de muitas ONGs na área. Na ABIA, o financiamento atual para vários projetos proveniente do governo federal corre sérios riscos de não ser renovado devido à aversão de Bolsonaro aos movimentos de direitos humanos.
Assim, recomendamos esta edição mais recente da revista Lancet sobre HIV, que fornece um valioso panorama sobre a história de luta por justiça social no Brasil. Enquanto o estigma e a discriminação crescentes forem reforçados pela administração atual brasileira, ameaçam o progresso em direção a um futuro livre de HIV/AIDS, ameaça também a força comprovada que comunidades e organizações da sociedade civil, como a ABIA, oferece esperança em meio a um ambiente político desalentador.
Acesse os artigos completos (em inglês) a seguir:
Populism treathens Brazil´s HIV/AIDS response
ABIA: maintaining interest in HIV in Brazil