Marclei da Silva Guimarães[1]
“Somos olhados como perigo para outros, ou como impuros porque nossos fluidos vitais (sangue, esperma, fluidos vaginais, leite materno) estão contaminados[2] pelo HIV. Há pessoas que nos olham como se nós fôssemos o próprio vírus (Pereira, Beloqui & Casanova. Brasil Sem Discriminação – Criminalização e Exclusão Social. 1. ed. São Paulo, GIV, 2014)”
Para o movimento social brasileiro de AIDS a transmissão do HIV deve ser tratada como caso de saúde pública, de justiça social e de direitos humanos e não como caso de polícia nem de justiça penal.
As condenações penais pelos Tribunais de Justiça do Brasil sinalizam que o Judiciário tem a ideia de que as políticas públicas do poder Executivo para prevenção e tratamento de doenças não estão funcionando, e, por isso, o direito penal, a última intervenção política a ser intentada, deve entrar em ação.
Criminalizar questões de saúde pública, como a transmissão do HIV, não é uma política de Estado apropriada, porque mina os esforços do Estado para combater a epidemia. No Executivo – o braço administrativo do Estado, por exemplo, é sabido que a criminalização da transmissão do HIV afasta as pessoas da testagem e impede o diagnóstico precoce da infecção, o tratamento adequado, além da diminuição de infecções oportunistas e de óbitos e a quebra na cadeia de transmissão do HIV. Ou seja, a criminalização impede a redução do número de novos casos de HIV e AIDS, proporcionando o efeito contrário ao desejado por toda política estatal, seja executiva, legislativa ou judiciária.
Há grandes limites das leis penais para controlarem epidemias, no caso, pela difícil correlação entre a criminalização da transmissão do HIV e a redução da propagação da epidemia de AIDS.
O presente parecer objetiva apresentar um ensaio jurídico legal (estudo do Código Penal pátrio), jurisprudencial e doutrinário em direito penal brasileiro sobre a criminalização da transmissão do HIV, tendo como intuito rejeitar as proposições legislativas no Brasil que visam a publicar Lei penal específica (especial / extravagante) sobre a exposição e a transmissão do HIV, conforme o Projeto de Lei (PL) 198 / 2015 (reapresentação do PL 130 / 1999) e PL 1048 / 2015 e PL 1971 / 2015 que estão os três apensados entre si.
É importante destacar que o PL 198 / 2015 não visa a “criminalizar” a transmissão do HIV no Brasil, mas, sim, tornar crime hediondo a transmissão deliberada (intencional / dolosa) do vírus da AIDS, inserindo no artigo 1º da Lei n. 8.072/90 (Lei de crimes hediondos) o inciso IX – “transmitir e infectar, consciente e deliberadamente a outrem com o vírus da AIDS” -, sob a justificativa de que a AIDS é doença incurável e mortal.
Nesse sentido, torna-se muito oportuno questionar o que significa juridicamente tornar um crime hediondo. Como resposta, é crucial esclarecer que tornar um delito hediondo não significa criar um crime, punir uma conduta nem aumentar uma pena, mas, trazer mais severidade a condutas já tipificadas como crimes, dificultando e endurecendo a concessão de certos benefícios penais, após a condenação e durante a execução da pena. Tudo isso, em grande parte, por forte influência da mídia.
Por exemplo, nos crimes hediondos, não é possível a concessão da anistia, graça, indulto nem da fiança. Além disso, nestes tipos de delitos (hediondos), apenas cabe liberdade provisória sem fiança, progressão de regime (não depois de cumprido 1/6 da pena como nos crimes não hediondos, mas após cumprir 2/5 da reprimenda, se condenado primário, ou 3/5 da pena, se condenado reincidente, sendo, tal reflexo jurídico, flagrantemente desfavorável à pessoa que cumpre pena por infrações penais reconhecidas como hediondas). Cabe, ainda, nestes tipos de delitos hediondos: 1) apelação em liberdade (o que não difere dos crimes não hediondos), 2) prisão temporária de 30 dias prorrogável por mais 30 dias, em caso de extrema necessidade comprovada (obs. quando as prisões temporárias, para protegerem as investigações da polícia, em crimes não hediondos, apresentam um tempo menor de duração: 5 + 5 dias de prorrogação). Cabe também, para os crimes hediondos: relaxamento de prisão por excesso de prazo (como nos crimes não hediondos), e, livramento (liberdade) condicional pelo cumprimento de 2/3 da pena para o condenado não reincidente em crime doloso. Isso é diferente para os crimes não hediondos, quando a liberdade condicional pode ser concedida com o cumprimento de 1/3 da pena para condenado não reincidente em crime doloso ou com o cumprimento da metade da reprimenda se o condenado for reincidente em crime doloso, desde que tenha bom comportamento na prisão.
Antes de reconhecermos os reflexos jurídicos por se tornar um delito em crime hediondo, interessante é assinalar que o projeto político e ideológico que embasa essa crescente tendência de tornar um delito em crime hediondo é o movimento da Lei e Ordem, surgido nos EUA, e que pretende punir tudo, mudar a sociedade pela punição penal em contraposição ao direito penal mínimo. Um dos princípios basilares deste direito é conceber o direito criminal como a ultima ratio, a última razão, quando outros ramos do direito, por exemplo, o direito civil, através de ações de responsabilidade civil por danos materiais e / ou morais, não se afigurarem mais eficazes para apaziguar a sociedade nem oferecer uma resposta eficiente por parte do Estado. Outro ponto político ideológico que embasa a Lei de crimes hediondos é o movimento de Tolerância Zero (para o traficante) X a redução de dano para o usuário, bem representado pelos EUA, onde a droga é caso de polícia, tanto para os traficantes quanto para os usuários, sendo, a solução, o encarceramento massivo. O tratamento é um pouco diferente do Brasil, onde a droga é caso de polícia para o traficante e caso de saúde pública para o usuário.
No Brasil, em termos históricos, nos anos 1990, havia uma onda de crimes de extorsão mediante sequestro de grandes poderosos, nascendo a Lei de crimes hediondos para repelir tais condutas criminosas. Em 1994, com a morte da atriz Daniela Perez, a imprensa descobriu que o homicídio não era delito hediondo e se fez o movimento para tornar o homicídio qualificado crime hediondo. Já em 1998, houve o escândalo das pílulas de farinha, assim, a alteração de medicações passou a ser considerada crime hediondo. Em 2009, o estupro e o estupro de vulnerável passaram a ser reconhecidos juridicamente como delitos hediondos. Para a nossa Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88), Tráfico, Tortura e Terrorismo são crimes equiparados a hediondos, ou seja, não são hediondos, mas as consequências jurídicas são as mesmas. O genocídio também é reconhecido como crime hediondo, entre outros crimes da Lei 8.072/90.
O artigo 1º da Lei 8.072/90 e seus incisos preveem, taxativamente, quais são os crimes hediondos, pois o Brasil adotou o critério legal, ou seja, é hediondo aquele crime previsto expressamente na Lei de crimes hediondos n. 8.072/90.
Por seu turno, o PL 1048 / 2015 tipifica o crime “de perigo de contágio de moléstia incurável”, acrescentando o parágrafo único ao artigo 131 do Código Penal (CP), na esteira do que já decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF), órgão máximo do Poder Judiciário e guardião de nossa CRFB/88, num caso de transmissão sexual do HIV. A justificativa do PL foi conferir maior efetividade e reprovabilidade no combate ao comportamento social do clube do carimbo: grupo de homossexuais soropositivos que divulgam informações na internet sobre como transmitir a AIDS, pois, pela interpretação dada pelo PL, se todos tiverem AIDS, não será mais problema social. Além do bareback[3] e carimbadas[4], como problemas de saúde pública, há os bugchasers[5]: roleta russa de sexo em encontros em casas noturnas, como preocupação da proposição legislativa.
O PL se reporta a um último boletim epidemiológico de AIDS em que se constata que a doença avança mais em homossexuais do que em heterossexuais. Como se não bastasse, o PL diz que visa não só coibir a disseminação da AIDS, mas de todas as moléstias incuráveis, como se toda doença incurável fosse grave para a medicina (o que não é verdade, pois existem patologias incuráveis que não são graves, e doenças graves que são curáveis). No entanto, esse não é o ponto a ressaltar, mas o preconceito, o estigma, a discriminação e a exclusão da pessoa vivendo com HIV e AIDS, pois, é claro que o PL tem como alvo principal e primordial e, talvez, único, a transmissão do HIV e não de outras doenças graves e incuráveis.
Além disso, juridicamente, a pena sendo aumentada para dois anos, no mínimo, como intenta o PL 1048 / 2015, afasta a possibilidade do Ministério Público (MP) propor a suspensão condicional do processo que é oferecida para crime, cuja pena mínima é de um ano. De outro modo, considerando o artigo 131 do CP atualmente vigente, aumenta-se a pena tanto para a transmissão do HIV quanto, o que é mais grave, para a exposição ao HIV, quando não há a infecção pelo vírus. Outro ponto jurídico relevante é que aumentando a pena máxima do delito para mais de quatro anos (no caso, oito anos), afasta-se a possibilidade de o juiz converter / substituir a pena privativa de liberdade aplicada por pena restritiva de direitos, já que tal possibilidade só é dada ao magistrado em condenações de até quatro anos. Vejamos a nova redação proposta pelo PL 1048 / 2015 ao artigo 131 do CP.
Artigo 131…
perigo de contágio de moléstia incurável
parágrafo único – “se a moléstia é incurável”:
pena – reclusão de dois a oito anos, e multa.
Devemos destacar, ainda, que tal proposição legislativa além de aumentar a pena mínima da exposição ou mesmo da transmissão do HIV de um para dois anos, se considerando o atual artigo 131 do CP vigente – afastando a possibilidade de concessão de suspensão condicional do processo e de substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos – acaba por igualar a punição deste novo crime (“perigo de contágio de moléstia grave e incurável”) à pena da lesão corporal dolosa gravíssima consumada por transmissão de enfermidade incurável (artigo 129, parágrafo 2º, inciso II do CP). Ou seja, equipara o artigo 131 do CP ao artigo 129, parágrafo 2º, inciso II do CP. Ou ainda, equipara o “crime de perigo de contágio de moléstia grave e incurável” ao crime de lesão dolosa gravíssima consumada, mostrando a vontade do legislador de atribuir um alto grau de desvalor à exposição ou transmissão, por exemplo, do HIV.
Já o PL 1971 / 2015 altera o artigo 131 do CP para incluir, especificamente, como Lei penal especial dentro mesmo do Código Penal, o crime de transmissão proposital (dolosa) do vírus da imunodeficiência humana (HIV), punido com reclusão de 06 a 08 anos e multa.
Artigo 131…
parágrafo único – “se da conduta resulta a efetiva transmissão do vírus da imunodeficiência humana (HIV) a outrem, a pena é de reclusão, de seis a oito anos, e multa”.
A justificativa é a existência do clube dos “carimbadores” e a inexistência de tipo penal específico para a transmissão do HIV. Além disso, os Tribunais vêm enquadrando a transmissão do HIV como tentativa de homicídio, lesão corporal gravíssima por transmissão de enfermidade incurável (artigo 129, parágrafo 2º, II do CP) ou crime de “perigo de contágio venéreo” (artigo 130 do CP). Os três crimes com penas diferentes. O que não é verdade, pois juízes de 1º grau e desembargadores de Tribunais de Justiça ou Ministros já enquadraram a transmissão do HIV como o crime do artigo 131 do CP. O PL afirma que não é tentativa de homicídio (a que está se referindo? À transmissão / infecção do HIV?) porque não há o animus de provocar a morte imediata, mas de fazer a pessoa sofrer as consequências de ser portadora de uma enfermidade incurável. O PL ainda mostra que o “crime de perigo de contágio de moléstia venérea” (artigo 130 do CP) possui uma pena muito branda, ou seja, quatro anos de reclusão no máximo, caso o agente tenha a intenção de transmitir a moléstia. Mostra também que a população jovem tem se infectado mais e que é preciso haver uma pena mais rígida para coibir a proliferação da doença e deve existir uma recriminação severa contra a impunidade.
Após tal justificativa, é estarrecedor denunciar que essa proposição legislativa, ao penalizar a transmissão do HIV com pena mínima de seis anos, apesar de dizer que a infecção pelo vírus não é uma tentativa de homicídio (doloso), equipara a infecção pelo HIV à pena mínima do homicídio doloso simples consumado que é justamente a reprimenda de seis anos. Isto é um total disparate, um fato ilógico e um retrocesso jurídico, já que muitas decisões judiciais não mais enquadram a transmissão do HIV sem a morte como tentativa de homicídio doloso simples nem mesmo como tentativa de homicídio doloso qualificado. Desse modo, que lógica e política criminal é essa que equipara a pena mínima do homicídio doloso simples consumado à pena mínima da transmissão deliberada do HIV? Além disso, juridicamente, ao se colocar como pena mínima seis anos para o delito em comento, se nega ao condenado iniciar a execução de sua pena no regime aberto, pois tal quantidade mínima de punição já dá ensejo de início a um regime de cumprimento de pena mais gravoso, qual seja, o semiaberto, não havendo mesmo a possibilidade de o juiz substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de direito (prestação de serviços comunitários ou em entidades públicas), haja vista, a pena mínima ultrapassar a quatro anos de reclusão.
Por sua vez, para parte de renomada doutrina penal brasileira, o crime atual do artigo 131 do CP é delito formal com dolo de dano (lesão), ou seja, não precisa do resultado infecção / transmissão para o crime restar consumado, pois a transmissão de moléstia grave é mero exaurimento do crime.
Assim, destacamos que tal delito criminaliza a exposição, ou seja, o ato (prática) com o fim de transmitir moléstia grave e infecciosa, mesmo não havendo a infecção, restando o crime consumado e não se reconhecendo nesse ponto o delito em sua forma tentada. Muito importante assinalar que, no direito penal brasileiro, a pena para o crime consumado doloso é sempre maior que a reprimenda para o crime doloso na forma tentada que recebe uma redução de 1/3 a 2/3 em relação à pena do delito consumado.
Ainda para parte da doutrina penal brasileira, o atual crime do artigo 131 do CP, penalizando a pessoa com reclusão de um a quatro anos, é tido como delito de consumação antecipada (explicação já dada acima sobre ser delito formal e não crime material), além de ser crime de ação / forma livre, cabendo, para caracterizar tal delito, qualquer meio de execução, seja sexual ou não sexual. Tal infração penal não admite o dolo eventual nem a modalidade culposa (crime culposo tem sua pena aplicada bem menor que a pena do delito doloso), mas apenas o dolo direto de dano e o fim especial de agir (praticar ato com o fim de transmitir moléstia grave e infecciosa).
Por certo, para a doutrina penal brasileira, o contágio de moléstia grave é uma lesão corporal, mas está disposto na parte dos crimes de periclatação (perigo) da vida e da saúde (o legislador protegeu a vida e a saúde ao prever esses crimes de perigo), violando mesmo o bem humano jurídico da saúde quando a lesão é leve, exceto se há lesão grave ou gravíssima, como parece ser o caso da transmissão do HIV, quando o enquadramento deverá ocorrer em outro crime, por exemplo, na própria lesão grave ou gravíssima, respectivamente, delitos previstos no artigo 129, parágrafo 1º, inciso III e no artigo 129, parágrafo 2º, inciso II, ambos do CP.
Ainda sob a ótica da doutrina penal brasileira, por exemplo, para Damásio (2009), se houver a transmissão de enfermidade incurável, o agente deve responder por lesão corporal dolosa gravíssima (artigo 129, parágrafo 2º, inciso II, CP, como já decidiu o STJ) ou por lesão corporal dolosa grave (artigo 129, parágrafo 1º, CP). Mas a lesão corporal dolosa leve ficaria absorvida pelo próprio crime do artigo 131 do CP. Para este autor, o crime do artigo 131 do CP pode admitir ou não a forma tentada: se for preciso apenas um ato / prática não admitiria a tentativa, mas se for preciso mais de um ato / prática, pode ocorrer a tentativa (lembrem-se de que se o juiz reconhecer que o crime foi tentado a pena será menor do que a reprimenda para o delito consumado).
Dito isso, por certo, podemos dizer que o crime atual do artigo 131 do CP criminaliza a exposição (o ato com o fim de transmitir moléstia grave, sem haver a infecção), ou mesmo a transmissão do HIV, como bem quer a vontade do legislador atual no PL 1048 / 2015, só que aumentando a pena de um a quatro anos para dois a oito anos, o que trará reflexos jurídicos mais gravosos na execução da pena.
Por sua vez, para Capez (2008), o atual crime do artigo 131 do CP tutela (protege) a saúde e a incolumidade física da pessoa contra “moléstia grave contagiosa”, por exemplo, a AIDS, sendo uma tentativa de lesão grave. Este autor hipotetiza que se houver a “transmissão de doença grave e contagiosa”, o agente deve responder por homicídio doloso consumado ou tentado (o que o movimento social de AIDS e a própria jurisprudência penal brasileira têm rechaçado) ou lesão culposa ou homicídio culposo (estas duas últimas classificações / enquadramentos / capitulações / tipificações são menos gravosas para eventuais e futuras condenações penais de pessoas vivendo com HIV/AIDS). Ou, ainda, se houver transmissão da moléstia grave, responder por lesão dolosa grave ou gravíssima, pois a lesão leve fica absorvida pelo próprio crime do artigo 131 do CP. E se com a transmissão da moléstia grave ocorrer a morte, o agente pode, como alternativa ao homicídio doloso consumado, responder por lesão seguida de morte (dolo pela lesão e culpa pela morte), com pena de reclusão de quatro a doze anos, como já foi julgado pela justiça penal brasileira, mais especificamente, pelo TJ-RJ (Tribunal de Justiça).
Cabe ressaltar que a pena atual do artigo 131 do CP, reclusão de um a quatro anos, permite a aplicação da suspensão condicional do processo, mas as penas mínimas propostas pelas duas proposições legislativas analisadas (PL 1048 / 2015 e PL 1971 / 2015) afastarão por completo tal benefício concedido ao réu.
Por outro lado, para Greco (2010), o delito atual do artigo 131 do CP tutela a saúde e a integridade corporal, mas havendo a transmissão de moléstia grave e mortal e letal, o agente deve responder por homicídio doloso consumado ou por lesão seguida de morte, se ocorrer a morte, ou homicídio doloso tentado, se houver a infecção, mas não a morte. No entanto, se houver culpa e não dolo, o agente deve responder por lesão culposa ou homicídio culposo (enquadramentos menos gravosos para as pessoas vivendo com HIV/AIDS). O autor afirma que a AIDS é doença incurável e letal e querer transmitir o HIV, com dolo de matar (se fosse possível mesmo matar, grifo nosso), o agente deve responder por tentativa de homicídio (doloso) ou homicídio doloso consumado se houver a morte. Já o movimento social brasileiro de AIDS discorda desta tese, veementemente, com base nos avanços científicos no tratamento do HIV/AIDS, e não apenas na ideologia dos direitos humanos.
Já Prado (2010) diz que o crime atual do artigo 131 do CP tutela a saúde e a vida contra a transmissão de moléstia grave (seja ela aguda, crônica, curável ou incurável e transmitida por infecção, como a AIDS). Havendo a transmissão da moléstia grave, o agente deve responder por lesão dolosa grave ou gravíssima, ou homicídio doloso consumado (ocorrendo a morte), ou homicídio doloso tentado (infecção sem óbito), ou lesão seguida de morte, ou lesão culposa, ou homicídio culposo. Que se o agente empregar o meio sexual para transmitir a moléstia grave, deve responder pelo crime do artigo 130, parágrafo 1º do CP (intenção de transmitir moléstia venérea).
Bitencourt (2008) diz que o crime atual do artigo 131 do CP tutela a saúde e a incolumidade física, sendo crime de perigo com dolo direto (não eventual) de dano, não cabendo mesmo a modalidade culposa desse delito. Além de não ser uma tentativa de lesão corporal leve, no entanto, pune a exposição ao perigo, ou seja, a probabilidade de dano à saúde. O autor entende que a AIDS é “moléstia grave, contagiosa e transmissível”, não sendo uma doença venérea porque não se transmite apenas pelas vias sexuais. O delito do artigo 131 do CP admite a execução por qualquer meio fora o sexual. Havendo a transmissão da moléstia grave, o agente deve responder por homicídio doloso consumado ou tentado, lesão culposa, homicídio culposo, lesão dolosa gravíssima (diferentemente de outros doutrinadores, afirma que a lesão grave é absorvida pelo “crime de perigo de contágio de moléstia grave”), lesão seguida de morte. Para este autor, tal delito é crime de perigo concreto – deve ser provado, no processo penal, o risco e perigo real de probabilidade de dano à saúde do suposto ofendido -, formal, doloso (dolo direto e não eventual de dano) e de consumação antecipada. Contrapõe o enquadramento no crime do artigo 131 do CP ao crime do artigo 130 do CP: moléstia venérea grave + meio não sexual ou não libidinoso configura o crime do artigo 131 do CP X moléstia venérea + relação sexual ou ato libidinoso pode configurar o crime do artigo 130 do CP. Além disso, diz que “o contágio por moléstia grave não afasta o tipo penal consumado do artigo 131 do CP”, pois a transmissão de doença grave é mero exaurimento do referido crime que resta mesmo consumado apenas havendo a exposição sem a infecção, por exemplo, pelo HIV.
Percebam que esse discurso de que não existe crime específico no Brasil para enquadrar a transmissão do HIV e que há uma insegurança jurídica por isso, é uma falácia, haja vista o julgador ter que analisar todos os aspectos do caso concreto, inclusive o dolo ou a culpa, para aplicar o dispositivo (crime) mais adequado. Isto tendo à sua disposição alguns artigos do CP que muito se prestam a essa finalidade: artigo 131 (“perigo de contágio de moléstia grave”); artigo 132, caput (perigo para a vida ou saúde de outrem – para casos de exposição ao HIV e em que há o perigo concreto de infecção a ser provado em processo judicial penal); artigo 129, parágrafo 2º, II (lesão corporal gravíssima por transmissão de enfermidade incurável); artigo 129, parágrafo 3º (lesão seguida de morte); artigo 129, parágrafo 6º (lesão culposa em que não há diferenciação para lesões leves, graves e gravíssimas); artigo 129, parágrafo 1º, III (lesão corporal grave por debilidade permanente de função) e, finalmente, artigo 121, parágrafo 3º (homicídio culposo).
Como os senhores estão percebendo, estamos discutindo o direito penal material brasileiro (a matéria penal) e não o direito processual penal pátrio baseado em ritos / procedimentos, regras, atos sequenciais e provas, podendo mesmo, no processo penal, haver a absolvição da pessoa vivendo com HIV e AIDS, também denominada HIV+, soropositiva para o HIV ou portadora do HIV, por falta de provas da autoria ou do dolo. Vale destacar que só é punido crime culposo consumado, pois não existe condenação penal por delito culposo na forma tentada. Sem contar a falta de prova de que a pessoa, supostamente ofendida em sua saúde e vida, não tinha HIV, por exemplo, antes do contato sexual com a pessoa vivendo com HIV/AIDS.
Por fim, não há necessidade jurídica alguma de se publicar uma Lei penal especial / específica / extravagante para punir a exposição ou a transmissão dolosa ou culposa do HIV, haja vista o Código Penal já possuir dispositivos (artigos) que muito bem podem ser aplicados em casos de transmissão dolosa / intencional / deliberada ou mesmo culposa do HIV, especialmente, os artigos que falam sobre os crimes de lesão, como já decidiu o STJ que a transmissão sexual intencional do HIV configura o crime de lesão corporal dolosa gravíssima por transmissão de enfermidade incurável do artigo 129, parágrafo 2º, inciso II do Código Penal (CP).
Lembrando que, juridicamente, no conflito aparente de normas, toda Lei especial, específica ou extravagante afasta (não revoga) a aplicação da Lei geral, no caso, se houver a publicação de uma Lei especial / específica / extravagante para a exposição e a transmissão do HIV, esta norma afastará todos os artigos (normas penais) do Código Penal por ser este uma norma geral. E com essa situação jurídica, teremos penas mais altas para a exposição e transmissão do HIV e um maior endurecimento na aplicação / execução de penas futuras contra pessoas vivendo com HIV / AIDS, como já exposto anteriormente.
Ainda, discordamos dos eminentes Ministros do Colendo STJ (Superior Tribunal de Justiça), ao afirmarmos que tal transmissão deliberada / intencional do HIV muito bem poderia se configurar como lesão corporal dolosa grave por debilidade permanente (não precisa ser perpétua nem eterna, segundo renomados doutrinadores de direito penal brasileiro) de função (imunológica), crime previsto no artigo 129, parágrafo 1º, inciso III do CP, em homenagem ao princípio de direito penal material do in dubio pro reo e ao princípio de direito processual penal do favor–rei: se há, fundada dúvida, na aplicação de um ou outro dispositivo (crime), ou seja, se existe dúvida de que a transmissão dolosa do HIV é lesão dolosa gravíssima ou grave, deve o julgador / juiz / magistrado / desembargador / ministro escolher pelo delito que é mais favorável ao réu, no caso, a lesão grave do artigo 129, parágrafo 1º, III, CP que prevê pena de reclusão de um a cinco anos, cabendo o benefício da suspensão condicional do processo ou a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos.
[1] Marclei da Silva Guimarães, advogado, OAB-RJ 204.121, e psicólogo, CRP-RJ 22.270, é o autor deste parecer técnico e jurídico. Correio eletrônico: marcleisilvaguimaraes1970@gmail.com
[2] Importa ressaltar que, ao longo do texto, o termo contágio é mal empregado tanto pela Lei penal brasileira, quanto pelos autores de direito penal e pelas proposições legislativas. A forma correta para mencionar sobre as implicações do HIV é “infecção”.
[3] Termo surgido nos anos 1990 para denominar membros de grupos fechados de gays norte-americanos praticantes do sexo sem preservativos e que compartilhavam, de forma consensual, uma série de rituais e práticas sexuais que não previam a proteção do preservativo. A expressão vem do inglês, bareback, usada em rodeios e esportes de montaria em animais sem o uso de selas. A existência de tais grupos organizados, inclusive com regras e valores bem definidos em textos e regulamentos, chegou a projetar uma certa resistência de setores das comunidades gays norte-americanas ao discurso higienista e asséptico propalado pelas campanhas e discursos de prevenção a partir do ponto de vista biomédico. Apesar da existência destes grupos até hoje, trata-se de uma minoria na população mais ampla de homens que fazem sexo com homens. O termo, no entanto, ganhou popularidade, especialmente no mundo gay, inclusive no Brasil e em outros países, e passou a ser usado para qualificar qualquer tipo de sexo entre dois homens sem uso de preservativo, deturpando o significado inicial da prática. É importante, do ponto de vista da prevenção, distinguir o que é sexo sem camisinha de práticas sexuais bareback, já que estas últimas estariam inseridas em outros valores, rituais e regras, que precisam ser considerados.
[4] Vem do termo “carimbadores”, considerado pejorativo e empregado para denominar pessoas vivendo com HIV e AIDS que, deliberadamente e intencionalmente, infectam parceiros sexuais. Em 2015, uma reportagem sensacionalista e alarmista no programa dominical Fantástico da Rede Globo de Televisão, apresentava a suposta existência de um “clube do carimbo”, cujos membros, no caso, os carimbadores, estariam infectando propositalmente seus parceiros. A matéria além de provocar pânico e reforçar estigmas, não tinha nenhum caráter educativo, pois não se importou em saber da situação da carga viral daquelas pessoas, ou se estavam em tratamento, e assim informar que o uso dos antirretrovirais e uma consequente carga viral indetectável, anulam a possibilidade de transmissão do HIV.
[5] Termo em inglês, que nomeia indivíduos gays que buscam sexo desprotegido com pessoas sabidamente soropositivas com o objetivo de contrair o HIV. A contrapartida seria os giftgivers, indivíduos soropositivos que concordariam em fazer sexo desprotegido com os bugchasers para transmitir o HIV. Não se sabe se este fenômeno aconteceria na vida real e com qual extensão. A literatura cientifica indica que, se de fato existe, tal termo e tais práticas seriam adotadas por ínfima parte de indivíduos gays que tiveram comportamentos estudados em pesquisas. Por outro lado, parece ser mais um fenômeno criado e disseminado pela mídia sensacionalista e conservadora, do que uma prática real e significativa nas redes sexuais homossexuais. Os estudos apontam ainda ser mais uma fantasia do que uma prática real na população gay. Tal como os chamados “barebackers e carimbadores” corresponderiam a uma pequena minoria, se é que de fato existem. Apontá-los como um “problema de saúde pública” pode ser expressão de preconceito e ignorância sobre práticas e comportamentos homossexuais e uma forma de escamotear os reais problemas de saúde pública. Estes, sim, podem estar relacionados à falta de campanhas de prevenção, ao sexo desprotegido consensual ou não hetero e homossexual (como vimos, sexo desprotegido não significa “bareback”, “bugchasing” e “carimbar”), à dificuldade no acesso ao preservativo, à ausência de políticas efetivas com novas tecnologias de prevenção, entre outros. Vale ressaltar que tais termos só são empregados para classificar indivíduos e práticas homossexuais. Dificilmente indivíduos heterossexuais seriam classificados como “barebackers”, “bugchasers” ou “carimbadores”, quando praticam sexo sem camisinha.
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Rio de Janeiro, 08 de novembro de 2016