A Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) atualiza o seu posicionamento na resposta à epidemia no Brasil diante do anúncio do Consenso de Vancouver, divulgado durante a 8ª Conferência Internacional sobre Patogênese, Tratamento e Prevenção do HIV (IAS, 2015) – realizada de 19 a 22 de julho, em Vancouver, Canadá – e do recente artigo sobre o Início do Tratamento com Antirretroviral (START, sigla em inglês) lançado, em maio, pelo Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NHI, sigla em inglês).
Recebemos com cautela os dois documentos:
- Reconhecemos o avanço de importantes estudos, como o START que tornou evidente que iniciar o tratamento já no momento do diagnóstico da infecção pelo HIV mais do que dobra as chances de sobrevivência e de vida saudável dos portadores do HIV. Apesar da evidência científica e do impacto desta medida para o fim da epidemia, alertamos que na atual conjuntura mundial há pouca chance de alcançar esta meta, sobretudo, se considerarmos os recursos atualmente disponíveis. Lamentavelmente, há uma tendência de redução do financiamento global e do compromisso de lideranças internacionais para responder à epidemia a nível mundial. Se, de fato, estamos neste franco avanço das descobertas científicas e próximos ao fim da epidemia no mundo, quem pagará a conta? Além de declarações animadoras, o mundo precisa de propostas políticas concretas que indiquem qual é o caminho para realizar, na prática, as promessas destes novos dados científicos.
- Reconhecemos a importância do Consenso de Vancouver admitir que “barreiras legais e políticas, bem como aquelas impostas pelo preconceito, devem ser confrontadas e desmontadas”. Lamentamos, contudo, que o documento não especifique quais barreiras devem ser confrontadas para consolidar um avanço real na resposta à epidemia no mundo. Em vários países, a situação legal da homossexualidade é uma ameaça para políticas de prevenção frente ao HIV. Além disso, há regiões onde prevalece a criminalização da prostituição e do uso de drogas, o que se constitui num obstáculo ao enfrentamento da epidemia. Outro fator preocupante que limita irracionalmente os esforços da saúde pública é a criminalização da transmissão do HIV em alguns países. No Brasil, especificamente, enfrentamos pressões para tornar a transmissão intencional do HIV como crime hediondo, o que trará um impacto negativo na saúde pública e na garantia dos direitos humanos. Reforçamos que o Consenso de Vancouver teria uma contribuição mais efetiva se tivesse sido mais preciso.
- Concordamos com a anuência de Vancouver sobre “todos, independentemente da situação legal ou social, raça, gênero ou origem ter acesso ao tratamento e à prevenção” no mundo. Faltou, contudo, incluir a categoria orientação sexual no documento que explicitaria a inclusão das demandas LGBT, um dos grupos mais afetados pela epidemia. Além disso, no caso brasileiro, para garantir que todos tenham acesso, preocupa-nos a ausência de políticas públicas comprometidas a reter as pessoas dentro do sistema público de saúde. Não temos uma prática que garanta o aconselhamento adequado (ou seja, o acesso às informações sobre os métodos disponíveis no tratamento e prevenção) e também desconhecemos a taxa de abandono das pessoas soropositivas do sistema de saúde. É preciso construir políticas públicas que garantam um sistema de saúde apto e funcional para receber e manter as pessoas diagnosticadas ou recém-diagnosticadas. Reforçamos a necessidade de mobilização, informação e participação da sociedade civil na luta pelo acesso ao tratamento e à prevenção.
- Chamamos atenção para o alto preço dos medicamentos. Lembramos também que foi a redução de preço que permitiu termos hoje algo em torno de 15 milhões de pessoas em tratamento no mundo. Ou seja, são 20 milhões de pessoas sem acesso ao tratamento em todo o planeta. Ressaltamos que as patentes ainda são as principais responsáveis pelos obstáculos no acesso aos medicamentos, sobretudo, nos países do sul global. No Brasil, temos uma legislação de patente com uma pressão cada vez mais forte para aos interesses da indústria farmacêutica em detrimento do benefício público. Além disso, o Sistema Único de Saúde enfrenta hoje a tendência de privatização com a chegada das Organizações Sociais de Saúde (OSS) e cujos modelos exigem um padrão no atendimento que vai na contramão de um planejamento eficaz na resposta à epidemia. Enfatizamos que é preciso garantir a validação dos princípios básicos do SUS em todo território brasileiro e, em especial, no atendimento às pessoas que vivem com HIV. Frisamos também que é preciso retomar a experiência brasileira de distribuição universal dos medicamentos, exigir a quebra de patentes para medicamentos estratégicos e debater a qualidade dos medicamentos de primeira linha hoje disponíveis no país.
- Saudamos o fato do documento de Vancouver reforçar que o método preventivo profilaxia pré-exposição (a PrEP) deve estar disponível para proteger as pessoas em maior risco de contrair o HIV. Enfatizamos que, embora representantes do governo brasileiro tenham sido convidados a participar de uma mesa sobre PrEP na Conferência de Vancouver, até o presente momento o Brasil não adotou o uso contínuo deste tratamento no país.
- Por fim, reforçamos ser imperativo que o Brasil e outros países do Sul global se debrucem imediatamente sobre as persistentes barreiras políticas, sociais, econômicas e culturais – incluindo as questões emocionais relacionadas ao diagnóstico e ao tratamento. É igualmente imperativa a retomada (e/ou o fortalecimento) das parcerias com a sociedade civil a fim de garantir que os benefícios anunciados em Vancouver alcancem todas as pessoas que vivem com/ou padecem em consequência do HIV no mundo.
- Reforçamos também ser imperativo que as instituições internacionais responsáveis pelo Fundo Global (um dos principais mecanismos que mantém financeiramente a resposta à epidemia mundial) repactuem o compromisso de viabilizar recursos para que cerca de outros 20 milhões de pessoas infectadas no mundo tenham acesso ao tratamento. É categórica a criação imediata de políticas concretas que devem ser implementadas no sentido de garantir o acesso de todos ao tratamento, à assistência e à prevenção.
Rio de Janeiro, 24 de julho de 2015.