A ABIA vem a público se manifestar sobre o relatório divulgado pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) em relação ao atual estado da epidemia de AIDS no mundo. O relatório foi lançado poucos dias antes da Conferência Internacional de AIDS, iniciada nesta segunda-feira (23/07), em Amsterdã (Holanda).
Pela primeira vez, o documento aponta que as metas globais para eliminação da AIDS até 2030 correm o risco de não serem cumpridas. A ABIA reconhece que esta postura mais realista do UNAIDS pode significar um avanço no enfrentamento da epidemia da AIDS. Ao ser mais realista, o UNAIDS ajuda a chamar a atenção para os obstáculos que tem dificultado a resposta à AIDS a nível global.
Desde 2015, ao lado de outras organizações no Brasil e no mundo, a ABIA alerta para os números alarmantes da epidemia em expansão e para as barreiras estruturais que impedem o acesso ao tratamento e à prevenção de milhões de pessoas no mundo.
“Os dados que dispomos mostram a epidemia se expandindo, ficando cada vez pior – uma visão que de fato, é muito mais verdadeira do que os dados que a visão oficial divulga em nível global”, afirmou Richard Parker, na publicação “O fim da AIDS?”, disponível para download no site da ABIA.
Lembramos que a sociedade civil aponta há anos para as fragilidades de discursos triunfalistas seja em torno do “fim da AIDS” ou do suposto “sucesso da resposta global e nacional”.
Compartilhamos a relevância do fato de mais 2,3 milhões de pessoas terem obtido acesso ao tratamento apenas no último ano. Contudo, salientamos ser inadmissível que 26 milhões de pessoas ainda não tenham acesso ao tratamento.
Se o mundo tem conseguido ampliar o acesso para 2,3 milhões de pessoas por ano, isto quer dizer que falta ainda mais de uma década para alcançar o contingente de pessoas que hoje não tem acesso ao tratamento — e isto tomando por base uma realidade em que as novas infecções sejam zeradas por completo. Lembramos que após vários anos de promessas globais sobre o fim da AIDS, estamos diante de uma conta que simplesmente não fecha.
Além disso, é notório questionarmos: quem são as 26 milhões de pessoas sem acesso hoje ao tratamento? Qual é a área geográfica que habitam no planeta? Por que não têm acesso? Quantos anos serão necessários para atingir o acesso universal?
Entre os graves problemas apontados no relatório, está o lento avanço no tratamento da AIDS em crianças. No entanto, salientamos que não há interesse das indústrias farmacêuticas em criar formulações de antirretrovirais mais recentes para o público infantil. O acesso a medicamentos atualizados e efetivos para esta parcela da população ainda deixa a desejar.
O próprio UNAIDS afirma que “só metade (52%) de todas as crianças que vivem com HIV está recebendo tratamento; 110.000 crianças morreram por doenças relacionadas à AIDS em 2017”.
Reforçamos que a desigualdade do acesso a um pré-natal adequado para as populações mais pobres, como acontece no Brasil e em outros países, contribui para a disseminação do HIV na população infantil.
Para a ABIA, este cenário preocupante é resultado da inércia, da inação e da lentidão dos países e seus governantes no desenvolvimento de políticas e ações na saúde pública. No Brasil e em vários países no mundo, alguns dos fatores que mais têm influenciado negativamente na resposta à epidemia são:
- O grave aumento no número e casos de AIDS entre jovens, homossexuais e população de mulheres cis/trans e travestis;
- O contexto social conservador que alimenta a violência estrutural (racismo, sexismo, homofobia e transfobia) e dificulta a prevenção nas populações mais vulneráveis;
- O contexto social conservador que impede a prevenção para a população jovem ao dificultar o tema da sexualidade nas escolas e o acesso ao preservativo para a população mais jovem;
- Apesar de alguns países oferecerem o acesso universal aos antirretrovirais, há falhas sistemáticas no abastecimento destes medicamentos como tem ocorrido recentemente no Brasil, na Argentina, entre outros;
- As falhas no abastecimento têm colocado em risco a sustentabilidade do acesso e favorecido o abandono e interrupções no tratamento da população HIV positiva;
- As crises políticas internas, guerras civis e crises econômicas têm acabado com a resposta à epidemia em vários países. O caso mais dramático e mais recente é a Venezuela;
- As desigualdades na assistência e no acesso aos serviços de saúde têm causado cenários perturbadores como o caso da cidade do Rio de Janeiro que exibe uma taxa de mortalidade 3 vezes mais alta que a média nacional;
- O estigma em relação ao HIV tem se manifestado no Brasil e em outros países por meio de projetos de lei anacrônicos e preconceituosos para reforçar a criminalização da transmissão do HIV, impedir a imigração de pessoas soropositivas, justificar deportações, excluir pessoas soropositivas do mercado de trabalho, entre outros.
Diante deste cenário, é importante valorizar os avanços e conquistas, sem perder a perspectiva dos problemas que impedem que os avanços sejam mais rápidos, mais amplos e mais sustentáveis.
Concordamos que são necessários mais investimentos por parte de governos e países na resposta a AIDS. Porém, como fazer isso com governos orientados cada vez mais por interesses de mercado e não pelo bem-estar social? Como aumentar mais 4,9 bilhões de dólares em países de baixa e média renda até 2020 como sugere o UNAIDS?
Os investimentos devem estar alinhados com a promoção aos direitos humanos, incluindo o direito à saúde, direito à vida e à cidadania plena. Esperamos que a 22ª Conferência Internacional de AIDS, em Amsterdã, dê um significativo passo neste sentido.
Rio de Janeiro, 24 de julho de 2018
Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS